Compra de imóvel e hipoteca: a questão da boa-fé objetiva



  1. A questão vista pela doutrina civilista tradicional.
  2. A validade da hipoteca constituída pela incorporadora mediante autorização do adquirente do imóvel.
  3. A validade da hipoteca licitamente constituída, segundo o STJ. A divergência entre a Terceira e a Quarta Turma. O precedente criado pelo julgamento do REsp nº 171.421 em 06/10/98.
  4. A validade ou invalidade da hipoteca constituída pela incorporadora, sem autorização do adquirente do imóvel. A anulabilidade da hipoteca.
  5. As vantagens da adoção do princípio da boa-fé objetiva.

DA VALIDADE DA HIPOTECA DE UNIDADE ADQUIRIDA EM INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

1.A questão vista pela doutrina civilista tradicional.


A hipoteca cria um direito real de garantia sobre a coisa. Confere ao credor hipotecário um direito erga omnes. O objetivo do credor é ter seu crédito garantido. Assim, há dois direitos equivalentes: o direito do propriedade do imóvel por parte do comprador e o direito do credor á satisfação do seu crédito, que está garantido pelo imóvel.


é por ser um direito real que se afirma que a hipoteca adere á coisa, conferindo ao credor o direito de seqüela, onde quer que ela vá, com quem quer que ela esteja. Se inexiste esse direito de seqüela, não há hipoteca. Pode existir outro direito, mas não hipoteca. Hipoteca é erga omnes. Se ela não for erga omnes, não é hipoteca.


Asssim, a regra geral, por ocasião da aquisição de imóvel, que está validamente hipotecado, com o gravamente devidamente registrado, é simples: o imóvel continua vinculado ao pagamento da dívida, de modo que o comprador poderá perder o direito á propriedade do bem, caso a dívida não seja paga.


A situação não é tão simples nas hipóteses em que o devedor celebra com alguém um compromisso de compra e venda do imóvel, mas o hipoteca para terceira pessoa, de forma mais ou menos simultânea. Pode ser que exista dolo.


Outra situação que enseja controvérsias ocorre quando a incorporadora hipoteca unidades autônomas do edifício, vendidas ou não, para obtenção de financiamento para a construção do mesmo.


Vejamos, assim, essas questões.


Se o comprador registra a sua escritura de compra e venda ou mesmo o seu compromisso de compra e venda, ele passa a ter direito real sobre o imóvel, de proprietário ou de compromissário comprador, respectivamente. Até aqui, nenhuma novidade. Se não consta nenhum registro de hipoteca, com prenotação anterior, o imóvel não poderá ser hipotecado por terceiro, salvo se o comprador consentir.


Se o compromissário comprador não registrar seu título, ele não terá direito real como tal, mas terá a proteção possessória (Súmula nº 84 do STJ), se na posse estiver, salvo no caso de fraude á execução.


Como se vê, essa matéria tem vários desdobramentos. é o que veremos a seguir.

2.A validade da hipoteca constituída pela incorporadora mediante autorização do adquirente do imóvel.


Bastante comum é (e até diríamos: infelizmente é bastante comum) a expressa concordância do adquirente de imóvel incorporado em ser o seu futuro imóvel hipotecado para garantia de financiamento a ser obtido pela incorporadora.


Isso normalmente ocorre por ocasião da contração da compra do imóvel a ser construído ou já em fase de construção. é uma cláusula contratual.


O adquirente, assim, assume a condição de garante da dívida, o que é, evidentemente, permitido pela legislação e aceito pela jurisprudência:


"EXECUÇÃO - DEBITO GARANTIDO POR HIPOTECA DE BEM DE TERCEIRO. RIGOROSAMENTE, O QUE GARANTE DIVIDA ALHEIA SERÁ CONSIDERADO RESPONSÁVEL, MAS NÃO DEVEDOR. PARA FINS DE EXECUÇÃO, ENTRETANTO, EQUIPARAM-SE, E, CONSTITUINDO O CONTRATO DE HIPOTECA TÍTULO CAPAZ DE ENSEJAR A EXECUÇÃO, QUEM DEU A GARANTIA SERÁ NECESSARIAMENTE EXECUTADO QUANDO SE PRETENDA TORNAR AQUELA EFETIVA, NÃO SE IMPONDO TAMBEM O SEJA O DEVEDOR.(...)".

(STJ, Terceira Turma, REsp nº 36581/CE, Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO, j. em 22/08/95, DJ 25/09/95, p. 31102)

O problema surge quando a incorporadora não paga o banco e não tem mais crédito. Há casos em que a incorporadora vai rolando a sua dívida, mediante aquisição de novos financiamentos, que supostamente seriam usados para um atual empreendimento, mas que, na verdade, destinam-se ao pagamento de dívidas oriundas de incorporações pretéritas. O fato é que o comprador, que pagou todo o preço do imóvel e nada deve á incorporadora, pode ficar com o imóvel hipotecado para o banco ao final do contrato. Casos há, tal como ocorrido com numerosos compradores da Encol, em que o imóvel nem mesmo foi totalmente construído, embora já estivesse hipotecado.


Há notícia de um antigo julgamento, com extratos do voto transcritos no livro Compra de imóveis, aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos, no qual o Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo entendeu que a hipoteca não seria válida, por não ter a instituição financeira avisado os compradores. O mesmo ocorreu recentemente, por ocasião do julgamento, por maioria, vencido o Ministro César Asfor Rocha, do REsp nº 171.421/SP, que comentaremos mais adiante.


No momento histórico atual, talvez em razão da magnitude do episódio Encol, o Judiciário está tendente a prestigiar a boa-fé dos compradores que ficaram sem o dinheiro e sem o imóvel, por não terem tido consciência do risco que corriam ao autorizar a incidência de hipoteca sobre o imóvel adquirido.


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