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A posição da invalidade da hipoteca, apenas pelo fato do comprador ter pago
tudo o que comprometeu-se a pagar á incorporadora, porém, não se sustenta a uma
análise técnica da questão (salvo na hipótese de ocorrência de vício na
constituição da hipoteca, ensejando sua anulabilidade).
Fiquemos, por ora, com a hipótese em que a hipoteca foi constituída de forma
isenta de dolo ou simulação. Conforme vimos acima, é possível a um terceiro
(ex. comprador do imóvel) a garantir dívida de alguém (ex. incorporadora),
desde que ele tenha manifestado sua concordância.
é de se ressaltar que, atualmente, inexiste lei proibindo compradores de
autorizar a hipoteca dos seus imóveis. O ato de garantia, a princípio, é
válido.
Esse ponto é, assim, fundamental. Está de boa-fé o banco que, expressamente,
aceitou em hipoteca um imóvel de terceiro ou comprometido a venda, com expressa
autorização do proprietário ou compromissário comprador, para que a
incoporadora obtivesse financiamento?
é evidente que, a princípio, não há de se falar em má-fé do banco ou da
incorporadora, se existente a autorização do adquirente do imóvel. Com efeito,
não há nada de ilícito em alguém garantir dívida de terceiro. é algo até
bastante comum.
Quem concorda em garantir uma dívida de terceiro, mediante hipoteca do imóvel,
deve estar preparado para, eventualmente, responder por essa obrigação. Há uma
expressa assunção desse risco.
A recusa em cumprir o avençado, consistente na garantia hipotecária oferecida
pelo comprador, na hipótese da incoporadora não pagar o que deve ao banco,
configura descumprimento contratual. é princípio elementar do direito civil que
contratos devem ser cumpridos.
Costuma-se alegar que o comprador "não tinha consciência do risco que
corria". Na verdade, a ninguém é possível deixar de sujeitar-se aos
efeitos da lei alegando seu desconhecimento.
A desídia do comprador, no tocante ao deixar de ler um instrumento de contrato
ou deixar de contratar um profissional especializado para fazê-lo, não pode ter
o condão de eximir o comprador incauto dos efeitos danosos que possam do
contrato advir.
Importante lembrar, assim, que quem não deseja correr os riscos de comprar algo
que não existe (e talvez nem venha a existir) deve comprar algo que já está
pronto. Quem não deseja correr o risco de ter o imóvel penhorado não deve concordar
em dar em hipoteca o seu imóvel para garantia do débito da incorporadora.
Por outro lado, o que deve o agente financeiro fazer, para preservar seu
direito, é tão somente registrar seu contrato de mútuo com garantia hipotecária
na matrícula do imóvel, de modo que os futuros compradores desse imóvel poderão
saber, mediante simples pedido de certidão, que o imóvel está hipotecado.
Ficam, assim, protegidos os terceiros de boa-fé, que não comprarão ou imóvel
hipotecado ou, se quiserem, saberão do risco que estão correndo.
Ademais, não há necessidade alguma do credor hipotecário avisar pessoalmente
compradores ou quem quer que seja, exatamente porque inexiste qualquer norma
nesse sentido. Se há anterior e expressa concordância dos compradores em admitir
hipoteca sobre seus imóveis, não há de se falar, a princípio, em má-fé do
agente financeiro.
é de se lembrar que as instituições financeiras somente irão financiar imóveis
se tiverem garantia bastante de receberem seu crédito. Dentro do contexto
liberal em que vivemos, os serviços bancários não são serviço público, mas sim
atividade econômica. Com efeito, o que os bancos (empresas como quaisquer
outras) querem é lucro: o financiamento da produção é apenas um meio e não um
fim. Se não há perspectiva de lucro, não haverá financiamento. é o preço que se
paga no capitalismo.
é de se notar, ademais, que o financiamento da construção civil, a despeito da
ausência de intenção de filantropia por parte dos bancos, é benéfica para a
sociedade, que precisa de imóveis.
Não é de se estranhar que a jurisprudência predominante sempre acolheu a
posição da validade da hipoteca, na hipótese de inocorrência de vício de
vontade, acompanhando uma orientação pacífica da doutrina.
Essa é, inclusive, a orientação da Terceira Turma do C. STJ, como se vê do
seguinte julgado:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - AGRAVO REGIMENTAL - CONTRATO MÚTUO E HIPOTECA-
COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA EMBARGOS DE TERCEIROS.
I - Se a credora hipotecária não participou da avença, nem liberou os agravantes do vínculo hipotecário, sendo este real e não pessoal, qualquer negócio entre a Incorporadora e os promitentes compradores é inoponível á ora agravada e exequente que, titular do direito de sequela, pode exercer o seu direito de excutir o bem objeto da hipoteca para pagamento do seu crédito.
II - O contrato de mútuo e hipoteca previa a transferência do referido débito hipotecário proporcionalmente aos adquirentes das unidades imobiliárias bem como, a responsabilidade da construtora pela liquidação do débito. Sendo esta disposição, tinham conhecimento do risco do negócio.
III - Agravo Regimental improvido."
(STJ, Terceira Turma, Agravo nº 161052/SP, Relator Ministro WALDEMAR ZVEITER, j. em 15/10/1998, DJ de 07/12/98, p.81)
Contudo, também recentemente, por ocasião do julgamento, em 06/10/98, do
Recurso Especial nº 171.421, por maioria (vencido o Min. César Asfor Rocha), a
Quarta Turma criou um precedente que rompe com a tradição do Direito Civil, no
tocante aos financiamentos de imóveis celebrados no âmbito do Sistema
Financeiro da Habitação.
Em linhas gerais, esse julgamento afirmou que, nos contratos celebrados no
âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, a disciplina jurídica da hipoteca
seria distinta.
Afirmou expressamente o Min. Ruy Rosado de Aguiar, relator designado para o
acórdão em questão:
"A hipoteca que o financiador da construtora instituiu sobre o imóvel
garantia a dívida dela enquanto o bem permanecesse na propriedade da devedora:
havendo transferência, por escritura pública de compra e venda ou de promessa
de compra e venda, o crédito da sociedade de crédito imobiliário passou a
incidir sobre 'os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades
habitacionais integrantes do projeto financiado' (art. 22 da Lei nº 4.864/65)
sendo ineficaz em relação ao terceiro adquirente a garantia hipotecária instituída
pela construtora em favor do agente imobiliário que financiou o projeto."
A análise dessa orientação passa pela interpretação do caput do art. 22, da Lei
nº 4.864/65, que assim dispõe:
"Art. 22. Os créditos abertos nos termos do artigo anterior pelas Caixas
Econômicas, bem como pelas sociedades de crédito imobiliário, poderão ser
garantidos pela caução, a cessão parcial ou a cessão fiduciária dos direitos
decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes
do projeto financiado."
Como se pode bem notar, em nenhum momento, ao contrário do que conclui o trecho
do voto supra transcrito, o art. 22, da Lei nº 4.864/65, determina que o
direito de hipoteca da instituição financeira seja convertido em direito de
crédito contra o comprador. Apenas diz que a cessão pode existir. Não afirma
que se existir a cessão a hipoteca irá desaparecer ou não será válida contra o
comprador.
Com a devida venia, hipoteca é direito real. é de sua natureza a validade e
eficácia contra o adquirente. Se não for assim, não é direito real, não é
hipoteca.
O que o julgamento em questão fez foi afirmar que a hipoteca de imóveis,
ocorrida no âmbito do SFH, não é eficaz contra os compradores. Ou seja, afirmou
o julgado que essa "hipoteca" não é erga omnes, mas sim direito
pessoal contra a incorporadora, por ser apenas válida enquanto o imóvel
permanecer na propriedade da incorporadora.
O comprador do imóvel pode não ter tido ciência do risco que corria ao celebrar
um contrato que autorizava a incorporadora a hipotecar a unidade imobiliária
adquirida, por não ter lido o contrato ou por não ter contratado um
profissional especializado na matéria para assessorá-lo.
Interessante notar, a esse respeito, o que afirmou o voto vencedor o Min. Bueno
de Souza, por ocasião do julgamento em análise:
"Vejamos o caso da hipoteca outorgada como pacto adjeto de contrato de
mútuo para financiamento de construção de edifício residencial. Vamos, como
juízes - proponho eu -, encarar a realidade que está diante de nós. Qual de nós
mesmos, julgadores, ao adquirir um apartamento financiado - parece que devamos
ter incorrido nessa emergência - foi ao registro de imóveis para verificar se
toda a documentação necessária para a regularização legal da incorporação está
realmente depositada? O depósito no registro de imóveis não exclui
litigiosidade em torno do tema. Verificar, por meio de advogado competente, a
regularidade dessa documentação, é algo que raramente ocorre. O princípio da
boa-fé leva o público a crer que certas empresas incorporadoras e construtoras
que tanto investem na publicidade são confiáveis. é impossível negar a
realidade das grandes cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, em que até os
advogados têm a maior dificuldade para obter acesso aos livros do registro de
imóveis."
Com a devida venia do ilustre julgador, é preciso estimular a utilização da
advocacia preventiva. é necessário dizer á sociedade que os advogados e demais
profissionais devem ser contratados também para cuidar para que problemas não
surjam (até porque é muito mais barato) e não apenas para agir corretivamente,
depois que os problemas tiverem surgido.
O princípio da proteção da boa-fé não pode ter o alcance que propõe esse voto:
não é possível premiar o comprador incauto, em detrimento do credor zeloso; a
ninguém é lícito alegar a própria torpeza em seu benefício.
Por outro lado, para saber se um imóvel está hipotecado, basta telefonar para
um despachante e receber em casa a certidão do imóvel: se não constar lá
registro de hipoteca, hipoteca não há, pois não há hipoteca sem registro. Para
saber se o imóvel adquirido poderá ser hipotecado, basta ler o instrumento do
contrato de compra: se não estiver escrito nele que a incorporadora poderá
hipotecar o imóvel, a hipoteca não poderá será válida contra o comprador que
registrou seu título ou já ingressou na posse do imóvel.
A aquisição de um imóvel é algo extremamente importante e não deve ser tratada
de forma leviana. Não é possível, assim, infirmar uma hipoteca, só porque o
comprador deixou de tomar as mínimas cautelas devidas, tal como ler o
instrumento de contrato que se assina, e foi prejudicado em decorrência dessa
falta de cuidado.
Além disso, após o episódio Encol, não é mais possível afirmar (antes já não
era...) que as pessoas tenham plena confiança nas incorporadoras, só porque
elas investem em publicidade...
Assim, com a devida venia, s. m. j., a razão está com o voto vencido do
Ministro César Asfor Rocha e com a orientação da Terceira Turma. Deve ser
reputada como válida a hipoteca, devidamente registrada, na hipótese em que o
comprador do imóvel autorizou validamente a sua instituição, mesmo no âmbito do
SFH, por ausência de norma a dispor em sentido contrário, conforme vimos acima.
Resta saber, contudo, qual será a posição a ser tomada pela Segunda Seção,
quando a questão for por ela apreciada em sede de embargos de divergência, uma
vez que esse órgão é o competente para dirimir divergência entre julgamentos da
Terceira e Quarta turmas.
Veja qual foi a posição posteriormente adotada pelo STJ no artigo Análise crítica da Súmula nº 308 do STJ
Imaginemos, por outro lado, a hipótese em que uma incorporadora, de forma mais
ou menos simultânea, celebra um contrato de compra e venda ou de compromisso de
compra e venda com alguém e, sem avisá-lo e sem obter sua concordância, celebra
também um contrato de mútuo com garantia hipotecária incidente sobre o mesmo
imóvel.
Há de se ressaltar, inicialmente, que a nossa ordem jurídica repele, de forma
veemente e expressa, que o compromissário vendedor proceda á hipoteca do imóvel
sem avisar o comprador. é o que dispõe o art. 171, II, do Código Penal, que
tipifica como crime essa conduta.
O comprador não tem condições de aferir, objetivamente, se o imóvel a ser
adquirido está ou será onerado, se não há registro da hipoteca da matrícula do
imóvel.
Ao mesmo tempo, o credor não tem condições de presumir a existência do
compromisso de compra e venda, caso ele não esteja registrado e o comprador não
esteja na posse do imóvel (hipótese, ademais, em que não será aplicável a
Súmula nº 84 do STJ).
A toda evidência, incumbe ao adquirente do imóvel a proteção do seu direito. Se
ele age com negligência, no tocante a deixar de registrar seu título quando
possível fazê-lo, deve suportar os ônus de sua desídia. Não seria razoável
proteger um desidioso comprador em detrimento de um diligente credor, que
emprestou dinheiro mediante garantia hipotecária em um negócio que, em
princípio, deve ser reputado como lícito.
O mesmo se diga na hipótese do credor deixar de registrar a sua hipoteca ou
aceitar essa garantia incidente sobre bem na posse de terceiro não anuente.
Assim, a princípio, a questão da validade da hipoteca na hipótese de ausência
de autorização do adquirente, pode ser facilmente solucionada com observância
da boa-fé das partes, aferida de forma objetiva.
Por aferição objetiva da boa-fé, devemos entender um modo de verificação, por
parte do magistrado, quanto a sua existência.
é elemento preponderante para essa aferição a constatação de ter a parte
adotado previamente as cautelas necessárias para saber se a eficácia do seu
negócio (ato jurídico) era juridicamente segura ou não. Por cautelas
necessárias devemos entender as que são possíveis e acessíveis a todos, sendo
hábeis a descobrir os riscos jurídicos do negócio.
Não estão, objetivamente, de boa-fé, os incautos (comprador ou banco) que não
tomam cautelas mínimas para proteção do seu direito, tal como na exposto nas
hipóteses mencionadas, em que o compromissário comprador deixa de registrar seu
contrato, sendo-lhe juridicamente possível fazê-lo, ou que o banco aceita a
hipoteca de um bem que está na posse ou com registro de compromisso de venda a
pessoa que não anuiu com a instituição do gravame.
Há uma presunção de ciência da existência do risco, em razão da possibilidade
prática de seu conhecimento previamente á celebração do negócio.
Porém, se ambas as partes estiverem, objetivamente, de boa-fé (isto é, se não
havia a possibilidade de ciência do risco para nenhuma das partes), a questão
se soluciona pela aplicação seca da prioridade registral e da Súmula nº 84, do
STJ.
A hipoteca constituída dessa forma (isto é, sem autorização do adquirente do
imóvel) será considerada válida, caso o adquirente que ainda não está na posse
do imóvel não tenha providenciado o registro do seu contrato antes de ter sido
a hipoteca registrada.
Se o comprador registrar o seu título primeiro, a hipoteca não será eficaz
contra ele, mesmo que o cartório imobiliário a registre. O mesmo se diga na
hipótese de o comprador ingressar na posse do imóvel antes do registro da
hipoteca, a teor do disposto na Súmula nº 84, do STJ.
Diante de dois direitos equivalentes (de propriedade e de garantia, ambos reais
e passíveis de registro) a prioridade é dada áquele que registra primeiro, até
mesmo como forma de incentivar o registro do título. A questão é solucionada
mediante aplicação do princípio da prioridade registral, exceção feita na
hipótese da Súmula nº 84, do STJ, que privilegiou a proteção da posse, por
política judiciária - em oposição á orientação que havia sido estabelecida pelo
STF na época em que julgava matéria de lei federal - em detrimento da aplicação
do princípio da prioridade registral.
A manutenção do direito real será concedida ao mais zeloso, devendo ficar o
menos zeloso com um simples direito pessoal contra o vendedor.
Contudo, restará ao que foi menos zeloso ou menos diligente a possibilidade de,
desincumbindo-se do ônus da prova de eventual dolo ou simulação da parte
contrária, desconstituir a hipoteca do credor ou fazê-la eficaz contra o
comprador, invertendo a situação.
Assim, se o compromissário comprador, que não registrou seu título, conseguir
fazer a prova da ocorrência de dolo ou simulação, a hipoteca será anulada, pois
os negócios jurídicos assim viciados são anuláveis, nos termos do art. 147, II,
do Código Civil. Até que isso ocorra ela é eficaz.
O mesmo se diga do credor que não registrou a hipoteca ou o fez após o registro
do título ou da imissão na posse por parte do comprador.
Como se pode claramente observar, o melhor critério de justiça é o da aferição objetiva
da boa-fé dos interessados. A ordem jurídica fica inteiramente preservada.
Os julgamentos que não levam isso em consideração, embora possam até ter o
nobre propósito de fazer "justiça" em um caso concreto, ao dar um
julgamento a beneficiar uma parte economicamente mais franca, podem acarretar
uma grave situação de incerteza jurídica, transformando o direito em uma
imprevisível "loteria", o que abala e prejudica toda a sociedade.
Com a admissão do princípio da boa-fé objetiva, é sempre protegido o interesse
da pessoa zelosa, que deve, por esta sua característica, ser premiada. Já o
interesse do incauto deve ser sacrificado, se oposto ao da pessoa zelosa. A
justiça será feita no caso concreto sim e, o que é melhor: sem violar qualquer
norma jurídica e contribuindo para a certeza e previsibilidade do direito.
Além disso, a segurança das relações jurídicas será maior, beneficiando toda a
sociedade. Saberá a parte que, tomando as cautelas devidas, seu negócio não
será juridicamente prejudicado. Poderá, sim, ser prejudicado por razões
econômicas, mas não por razões jurídicas. O risco econômico é inerente á
atividade empresarial. Já o risco jurídico deve ser eliminado.
O princípio da boa-fé objetiva, portanto, tem um caráter de segurança jurídica
e de pacificação das relações sociais. Embora não elimine, reduz sensivelmente
o subjetivismo do julgador, diminuindo enormemente o grau de incerteza do
Direito e até mesmo a imprevisibilidade do resultado do processo judicial,
contribuindo para a certeza e o prestígio da função jurisdicional.
Veja também: Posição posteriormente adotada pelo STJ no artigo Análise crítica da Súmula nº 308 do STJ
Autor:
Bruno Mattos E Silva
brunosilva2008[arroba]hotmail.com
(Artigo escrito quando Procurador do INSS nos tribunais superiores)
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