Este artigo é um desdobramento de minha tese de doutorado, intitulada Individualismo, família e projeto: negociando identidades em casais formados por judeus e não judeus, defendida em dezembro de 2006 no PPGAS/MN/UFRJ. Minha intenção foi apreender a lógica e os valores que regem este tipo de união matrimonial, as afinidades que criaram as condições para o encontro e o modo como a nascente família nuclear lida com as diferenças culturais que permanecem a despeito da união.
Diferenças estas que não se resumem, necessariamente, ao pertencimento étnico, ao menos no caso do parceiro judeu. Tratei especificamente de casais formados por judeus e não judeus oriundos das camadas médias moradores da zona sul da cidade do Rio de Janeiro.
O foco, aqui, recai sobre o modo como os parceiros vivem a experiência do casamento com alguém que exibe uma identidade étnica ou religiosa distinta, as convergências e divergências internas e os desafios relativos á educação dos filhos. Não se trata, simplesmente, de contrariar a visão exterior, romantizando o casal "misto", mas sim de dar voz aos atores diretamente envolvidos, possibilitando a construção de uma narrativa distinta daquela fornecida pela simples, estigmatizada e empobrecida, rotulação da díade como uma "mistura" de elementos díspares. O casamento "misto" é entendido como a ante-sala da assimilação (no sentido de indiferença á identidade étnica) pelos gatekeepers da etnia*, no caso dos judeus, a tal ponto que esse tipo de casamento merece uma denominação própria. é por isso que a referência á "mistura" como um problema social estará associada, sobretudo, á manutenção da identidade judaicas nas gerações futuras nos depoimentos de ambos os parceiros, judeus e não judeus.
*Agradeço aos comentários e sugestões da professora Bila Sorj, que participou do meu exame de qualificação de projeto. O termo "gatekeepeers" foi citado por ela durante sua exposição, encaixando-seperfeitamente na minha linha de raciocínio que tenta dar conta das relações entre Tradição e Modernidade
e a relativização da autoridade concedida aos "guardiões da verdade" na determinação de valores ecomportamentos socialmente legítimos.
Perguntei aos entrevistados se enxergavam seu casamento como "misto". Muitos deles me perguntavam se me referia ao fato da união envolver judeus e não judeus. Tive de explicar que o adjetivo "misto" é largamente utilizado pela comunidade judaica ao referir-se a casamentos exogâmicos, ressaltando ainda que evitei defini-los, de antemão, como tal já que, não raro, a expressão "casamento misto" está carregada de sentido negativo, tom quase acusatório ou de pesar. "Lá se vai mais uma ovelha desgarrada...".
A "mistura" pode estar associada á oposição homem / mulher, á identidade sexual. A essência da diferença é anterior a qualquer diferenciação baseada em atributos culturais, é dada biologicamente. O casamento homogêneo, aqui, diz respeito á homossexualidade, e não a heterogamia religiosa ou cultural. Nas palavras de um entrevistado (não judeu, psicanalista, 44 anos), "todo casamento é misto. O casamento que não é misto é casamento gay". Neste sentido, a influência da polarização judeu / não judeu não é mais ou menos decisiva para o sucesso ou fracasso do relacionamento, mais uma dentre inúmeras outras diferenças que o casal pode vir a apresentar. é qualitativamente equivalente a qualquer outro incômodo ou intolerância a determinados gostos ou valores que o parceiro apresente ao longo da vida.
Diferentemente do que dizia Platão a respeito do amor, um ser que mediava o humano e o divino objetivando a conquista da beleza, o amor moderno, segundo Simmel (1971), é o primeiro a reconhecer que há algo de inalcançável no outro. Que o absolutismo do self individual ergue uma parede entre dois seres humanos que mesmo o mais apaixonado desejo de ambos não é capaz de remover, tornando ilusória qualquer possessão real de algo a mais do que a possibilidade de ser amado de volta. O argumento da distância intransponível parece ir ao encontro das expressões como "tem sempre uma diferença" e "são dois sujeitos", usadas pelo mesmo entrevistado citado acima ao mostrar-se surpreso com a proposta de um rabino para que procurasse, juntamente com a esposa, ajuda psicológica para resolver o "problema" do casamento misto. Seguindo este raciocínio, o casamento entre dois judeus não seria menos "misto" do que um casamento envolvendo um judeu e um não judeu. A natureza da diferença entre os sujeitos não é mais a identidade sexual, fisiológica, mas o reconhecimento de idiossincrasias individuais, equivalente ao "individualismo qualitativo" simmeliano.
A mistura também está associada a diferenças religiosas, não tanto á identidade religiosa em si quanto o grau de religiosidade apresentado pelo parceiro. Quanto mais "fervoroso"† ele é, mais "misto" o casamento se transforma. O que não leva, necessariamente, a conflitos internos relacionados á educação dos filhos ou á não aceitação mútua de que cada parceiro traga para o relacionamento "máscaras sociais" sem ressonância no outro.
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