Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
Conversando com rabinos e outros defensores do casamento endogâmico, fica claro que a preocupação recai menos sobre o casal em si e mais sobre as futuras gerações. As preocupações giram em torno do tipo de educação que a criança irá receber em casa e na escola e por quais rituais passará ao longo da vida. Geralmente as perguntas se resumem ás seguintes: Se for menino, vai ser circuncidado? A criança vai ser batizada? Em que colégio a criança vai estudar? Quais as festas tradicionais a serem celebradas em casa? Natal ou Chanuká (Festa das Luzes, na mesma época do ano)? Se menino, passará pelo ritual judaico da maioridade religiosa, o Bar Mitzvá? Note-se que os rituais dizem respeito a uma visão estritamente religiosa da identidade judaica, em oposição a uma hipotética identidade católica do parceiro, se levarmos em conta que o Brasil ainda é considerado o "maior país católico do mundo".
Um dos argumentos utilizados contra o casamento envolvendo duas tradições religiosas (geralmente judaísmo e catolicismo) é o da impossibilidade de transmiti-las sem criar dilemas psicológicos nos filhos. Presos entre as duas, as rainbow children (Azoulay, 1997) não conseguem construir um sentimento de pertença, sentir-se parte de qualquer uma delas, baixando sua auto-estima e criando conflitos internos relativos á lealdade parental. Afinal de contas, devem seguir a tradição religiosa do pai ou da mãe?
As crianças são vistas como incapazes de escolher uma das duas ou, por que não, ambas as tradições se assim desejarem, sendo de extrema importância a decisão do casal sobre a orientação religiosa a ser transmitida aos filhos ao invés de "empurrar com a barriga", para o futuro, uma decisão que influenciará a própria saúde mental da criança. Além disso, a resolução do dilema concorreria para a união, estabilidade e segurança familiares‡.
Evita-se o que a literatura sobre o tema cunhou de "bomba-relógio" ou "soluções band-aid", que não resolvem os problemas, adiando-os para um futuro incerto. O casal prefere não encarar diferenças que consideram importantes, trocando o diálogo aberto pelo lema "o amor supera todas as barreiras", que funciona até o momento em que nasce o primeiro filho e, com ele, aflora a importância de transmitir a tradição herdada dos avós e dos pais.
No lugar da "solução band-aid", adotada por apenas um casal, quanto á educação religiosa a ser transmitida, privilegia-se o diálogo aberto com filhos dandolhes total liberdade de escolha por uma ou outra tradição religiosa. A tolerância pela decisão individual não impede que filhos se sintam constrangidos em "desapontar" um dos pais. A lógica que parece reger os relacionamentos entre pais e filhos, nestes casos, é o "dos males, o menor", ou seja, é melhor deixar a criança á vontade para decidir o que quer ser, ainda que a decisão cause dor por não corresponder ás expectativas de um dos pais, do que não ter contato com nenhuma das duas tradições ou ser privado do conhecimento de qualquer uma delas. é mais fácil contornar possíveis remorsos quanto á escolha feita, menos por ambigüidades internas e mais por medo de ferir suscetibilidades paternas ou maternas, do que se arrepender tardiamente de não ter oferecido aos filhos o direito de decidir que caminho tomar com relação á sua identidade religiosa ou cultural.
Uma conseqüência tão ou mais negativa que a impossibilidade da dupla pertença (na visão dos defensores da endogamia) e a marginalidade ou liminaridade entre duas tradições, não estando "nem lá nem cá", permanecendo eternamente nas franjas dos grupos aos quais deseja participar, é a ausência de referências simbólicas no ambiente familiar. No intuito de preservar a relação conjugal, o casal se exime da responsabilidade de cultivar nos filhos valores caros á maneira como eles próprios se vêem no mundo, ou seja, suas identidades sociais. Pior do que ter excesso de referências de identidade é não ter nenhuma. A situação ganha contornos dramáticos quando as crianças perguntam aos pais o porquê de não poderem participar desta ou daquela cerimônia já que "todo mundo está fazendo" (quer dizer, os colegas de colégio e os amigos do prédio). A possibilidade de ser igual aos amigos, criando e mantendo laços de solidariedade e de identidade, é limitada ao decidirem pela neutralidade.
O viés cosmopolita destes casais, sua "vocação para o mundo", nas palavras de uma entrevistada, ficabastante nítido quando observamos as expressões e categorias usadas para definir a educação transmitida nas escolas judaicas: "gueto", "endogamia", "comunitária" (em seu sentido negativo) e "penico". Dois pontos devem ser realçados. O primeiro diz respeito á maneira como a escola transmite o passado histórico do povo judeu, carregado de sofrimento, sentimento de culpa e revolta. é importante ressaltar que a recusa em colocar os filhos em escolas católicas também lança mão deste argumento. De acordo com C.K., não judia, a educação católica "enche a cabeça da criança de culpas, ela aprende que ela é pecadora, que ela tem que pagar pelo sacrifício de Cristo". O segundo ponto é o uso da expressão "sair fora do penico" como a representação da visão de mundo cosmopolita, aberta ao mundo. O penico é o lugar onde fica a sujeira e a sujeira, como diz Mary Douglas (1976), "é tudo aquilo que está fora do lugar", desafia uma determinada maneira de organizar a experiência humana a partir de categorias opostas e complementares. Permanecer no "penico" é manter-se "impuro", na "comunidade", ao passo que "purificar-se" é sair do "penico", tornar-se "cosmopolita". O referencial simbólico do que é certo e errado, neste caso, é o inverso daquele utilizado pelos críticos do casamento endogâmico, que consideram a "impureza" a atitude de ultrapassar as fronteiras comunitárias em busca de parceiros no mundo não judaico.
Termos como "comportamento atípico" e "quebra de padrão", usados na caracterização dos casamentos entre judeus e não judeus, nos remetem ao estudo do comportamento desviante em sociedades complexas e as relações entre indivíduo e sociedade, tema fundamental na antropologia urbana. A afirmação de que o casamento "misto" é um "defeito" coloca o problema dos desviantes numa perspectiva patológica. O indivíduo desviante é encarado a partir de um ponto de vista médico, preocupado em distinguir o "são" do "insano", comportamento "normal" e comportamento "anormal". A harmonia e o equilíbrio surgem automaticamente e o sistema funciona "normalmente". A própria noção de desvio e do indivíduo desviante, no entanto, vem carregada de representações morais, implicando a existência de um comportamento ideal responsável pela harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social.
Devemos ter em mente a noção básica de que não existem desviantes em si mesmos, mas uma relação entre indivíduos ou grupos que se investem da prerrogativa de definir que tipo de comportamento é legítimo em determinada situação socialmente construída. O desvio ou o comportamento desviante são uma criação da sociedade, função das regras sociais que definem situações sociais e os tipos de comportamento apropriados a elas. Sendo o desvio conseqüência das respostas dos outros ao ato de uma pessoa, os interessados em compreender o comportamento desviante não podem supor que estejam lidando com uma categoria homogênea que dê conta de toda e qualquer situação§.
A homogeneidade vista a partir do discurso dos parceiros, por sua vez, evidencia o que alguns autores chamam de "homogamia social", ou seja, se por um lado os parceiros diferem em determinados aspectos da vida, como a identidade étnica ou nacional, por outro, há uma similaridade com relação á posição de classe, nível educacional, gostos e estilo de vida. é por este ângulo que os casais se vêem, próximo socialmente. Não enfatizam a diferença, ainda que ela não desapareça e que em algum momento de suas vidas tenham de lidar com a questão da transmissão de "identidades contrastivas" (Cardoso de Oliveira,1974) caso venham a ter filhos.
O olhar que se tem sobre determinado fenômeno determina o que é "normal" e o que é "desviante". Perspectivas distintas sobre o significado do casamento (manutenção da identidade étnica, felicidade conjugal etc.) geram situações de impasse que podem desencadear conflitos sob a forma de acusações, "estratégias mais ou menos conscientes de manipular poder e organizar emoções, delimitando fronteiras" (Velho, 1981), constituindo-se em movimento dramático de tentativa de controle social. Aqueles que se afastam do que é considerado correto dentro de tais circunstâncias sofrem a estigmatização por conta da ação das categorias de acusação. A acusação feita aos judeus que decidem casar com não judeus, de que estariam contribuindo para a extinção dos judeus e do judaísmo num futuro próximo, vem acompanhada de expressões do tipo "holocausto silencioso" e "holocausto espiritual". Tais afirmações estão inseridas num contexto de luta pela definição do que é "certo" e do que é "errado"**.
Numa sociedade complexa como a brasileira, é necessário, portanto, abandonar as dicotomias "normal" / "desviante", "sagrado" / "profano", em favor de uma análise da "configuração cultural" de cada situação social que nos é apresentada (Benedict,1959). A luta travada entre acusados e acusadores deve ser entendida como parte de uma luta pelo poder de definir o sistema de representações sociais legítimo, valores e comportamentos socialmente aceitáveis, dentro de um contexto socialmente produzido a partir da interação dos indivíduos.
AZOULAY, Katya Gibel. Black, Jewish and interracial. 1997. Durham: Duke
University Press.
BENEDICT, Ruth. 1959. Patterns of culture. Boston: Houghton Mifflin.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1974. Identidade étnica, identificação e
manipulação. In: Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira.
DOUGLAS, Mary. 1976. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva.
SIMMEL, Georg. 1971. On individuality and social forms. Chicago: The University of
Chicago Press.
VELHO, Gilberto. 1981. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
† Os adjetivos "fervoroso" e "fervorosa" foram utilizados por duas entrevistadas, uma judia e outra não judia. Estão de acordo com as diferenciações que se instituem entre "católicos de batismo" e "católicos praticantes" bem como "judeus de circuncisão" e "judeus praticantes".
‡ Em seu estudo sobre filhos de casais formados por judeus e negros, Azoulay (1997) insiste na compatibilidade de educá-los com um sentimento de dupla herança e pertença, judaica e negra. Esta aproximação elimina a alternativa para aceitar a idéia de "metade branca" e "metade negra" que permeia o discurso público e científico sobre identidades raciais e crianças inter-raciais nos Estados Unidos. A autora não ignora que o casamento através das linhas de cor levanta questões a respeito da lealdade grupal, no entanto, questiona a maneira como se constitui a herança e como ela está ligada ao sentido pessoal de identidade, que é voluntário - oposto ao imposto. A composição de tradições distintas tem seus limites nos EUA: o indivíduo de pele escura que se comporta como judeu (equivalente a "branco" nos EUA), que se identifica tanto como judeu quanto como negro, é discriminado pelos negros "legítimos" por "agir como branco" (no vestir, no falar, nos gestos), e pelos pares judeus brancos, que estranham seu fenótipo, representação de uma suposta identidade africana. A lógica excludente "ou/ou" é substituída pela lógica inclusiva do "e", a da exclusão pela da união.
§Resgatando a idéia de um entrevistado não judeu sobre a "homogamia" enquanto sinônimo de "casamento gay", podemos nos perguntar o que será considerado mais desviante: um heterossexual judeu casar com um não judia ou um judeu assumir sua homossexualidade e casar com outro judeu? Qual "desvio" prevalece? O sexual ou o étnico-religioso?
** A morte do comediante Bussunda, integrante do grupo Casseta & Planeta, filho de mãe judia e pai não judeu convertido á religião judaica, trouxe á tona o tema da continuidade e extinção do povo judeu. Bussunda foi enterrado num cemitério católico, o São João Batista. De acordo com a coluna "Gente Boa", de Joaquim Ferreira dos Santos, publicada no dia 26 de junho de 2006, no jornal O Globo, o então presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro, Osias Wurman, teria afirmado: "A perda da identidade religiosa nesta geração é um holocausto silencioso que vem destruindo o povo judeu". Além de restringir a identidade judaica ao aspecto religioso, a expressão "holocausto silencioso" também é empregada nas acusações feitas aos judeus que pulam os "muros do gueto" e se casam com não judeus.
Autor:
Marcelo Gruman
marcelogruman[arroba]funarte.gov.br
Antropólogo, Doutor em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ), Administrador Cultural/FUNARTE
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|