Exercício de funções eleitorais, pelos Promotores de Justiça, perante os juízes e Juntas Eleitorais. Poder de designação do Ministério Público Estadual

Enviado por Emerson Garcia


  1. Introdução
  2. A autonomia do ministério público
  3. A autonomia funcional do ministério público
  4. A autonomia administrativa do ministério público
  5. Designação de membros do ministério público para o exercício de funções eleitorais
  6. Conclusões

Tese aprovada no XV Congresso Nacional do Ministério Público, realizado na Cidade de Gramado/RS, no período de 1. a 5 de outubro de 2003

Síntese Dogmática: A Constituição da República, arejada pelos influxos democráticos que se espraiaram pelo País com a derrocada do último período autoritário, outorgou ao Ministério Público relevantes atribuições, dentre as quais a de defesa do regime democrático.

Além dos instrumentos diretamente relacionados á consecução da atividade finalística da Instituição, foi ela circundada de garantias que, a um só tempo, buscam assegurar sua identidade existencial e afastar a ingerência de fatores exógenos em sua operacionalização, o que, em última ratio, visa a assegurar o livre exercício de suas funções. Dentre essas garantias, merecem ser mencionadas a autonomia administrativa e a autonomia funcional da Instituição, asseguradas pelo art. 127, § 2º, da Carta de 1988.

Autonomia, em essência, é o designativo que indica a prerrogativa de estabelecer a própria normatização a ser seguida, observados os balizamentos traçados pela norma superior que a instituiu. A autonomia funcional resguarda o livre exercício da atividade finalística, enquanto a autonomia administrativa assegura ao Ministério Público a prerrogativa de praticar atos administrativos auto-executórios relacionados á administração, á aquisição de bens e á gestão dos seus quadros de pessoal. Sob essa última epígrafe, por evidente, se inclui o poder de designar os agentes que exercerão as distintas funções previstas no ordenamento.

Identificadas essas duas dimensões da autonomia outorgada ao Ministério Público, é possível concluir pela inconstitucionalidade do art. 79, parágrafo único, da Lei Complementar nº 75/93, que assegurou ao Procurador-Regional Eleitoral, membro do Ministério Público Federal, o poder de realizar as designações dos Promotores de Justiça que exercerão funções eleitorais.

À mingua de qualquer restrição no texto constitucional, não se questiona a legitimidade do referido diploma legal ao atribuir ao Ministério Público da União o exercício da função eleitoral. A Carta de 1988 não previu a existência de uma Instituição dotada de individualidade própria com a atribuição, única e exclusiva, de exercer a função eleitoral, o que permitiu fosse ele inserida, pela Lei Complementar nº 75/93, no rol de atribuições do Ministério Público Federal. Apesar disso, não se pode confundir o exercício de uma função com o poder de estruturar, organizar e comandar os serviços necessários á sua execução, o que é abrangido pelo espectro da autonomia administrativa. Essa conclusão é robustecida ao constatarmos que, perante os órgãos jurisdicionais de primeira instância, a função eleitoral será exercida por integrantes dos Ministérios Públicos Estaduais. Considerando que tanto o Ministério Público da União como os congêneres estaduais auferem a sua autonomia administrativa na Constituição, não poderia ser ela restringida por uma norma infraconstitucional, que deveria ficar adstrita á regulamentação do exercício funcional.

Além do vício material, o preceito analisado é formalmente inconstitucional, pois, ao imiscuir-se no poder de designação dos membros dos Ministérios Públicos estaduais, adentrou em seara que deveria ser objeto de regulamentação pela Lei Orgânica Nacional, diploma que veicula as normas gerais a serem observadas pelas leis estaduais. Tendo a Lei Complementar nº 75/93 se originado de projeto encaminhado pelo Procurador-Geral da República, está ela dissonante do art. 61, § 1º, I, d, da Constituição, que dispõe tratar-se de matéria de iniciativa privativa do Presidente da República.

Pelas razões expostas, as designações eleitorais devem ser realizadas em harmonia com o previsto nos arts. 10, IX, h e 73 da Lei nº 8.625/93, que concentra esse poder nos Procuradores-Gerais de Justiça, agentes que exercem as respectivas chefias dos Ministérios Públicos Estaduais.

I. Introdução

Na dicção do art. 1º, caput, da Constituição da República, a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. A democracia, princípio fundamental do Estado brasileiro, se efetiva a partir da concreção dos mecanismos destinados a assegurar o liberalismo político, permitindo a participação do verdadeiro detentor do poder nos destinos do Estado. Além de versar sobre os instrumentos implicitamente destinados á preservação da democracia, a Constituição da República, em seu art. 127, caput, dispôs, de forma expressa, que ao Ministério Público incumbe a defesa do regime democrático. Esse mandamento, aliás, foi repetido pelo art. 1º da Lei nº 8.625/93. Uma das formas mais basilares de cumprimento desse dever institucional, estando nele implícita, reside na utilização de todos os meios necessários para assegurar a normalidade e a legitimidade do procedimento eletivo. Nesse sentido, é expresso o art. 72, caput, da Lei Complementar nº 75/93: "Compete ao Ministério Público Federal exercer, no que couber, junto á Justiça Eleitoral, as funções do Ministério Público, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral". Apesar de inerente ao Ministério Público Federal, o exercício da função eleitoral, perante os Juízes e Juntas Eleitorais, é outorgado aos Promotores de Justiça, na condição de Promotores Eleitorais (art. 78 da Lei Complementar nº 75/93).

Em linhas gerais, o objetivo dessas breves linhas é identificar, á luz da aparente antinomia verificada entre a Lei Orgânica do Ministério Público da União e a Lei Orgânica Nacional dos Ministérios Públicos dos Estados, o órgão responsável pela realização das designações dos Promotores de Justiça para o exercício das funções eleitorais. Nessa perspectiva, será analisado o alcance da autonomia administrativa outorgada ao Ministério Público pela Constituição da República e a compatibilidade desta com o art. 79, parágrafo único, da Lei Complementar nº 75/93, que concentra o poder de designação no Procurador-Regional Eleitoral.

II. A Autonomia do Ministério Público

Etimologicamente, autonomia deriva da união das palavras gregas auto, que indica aquilo que é próprio, e nomia, que significa regra, norma. Em termos gerais, entende-se por autonomia a prerrogativa de estabelecer as próprias normas que devem ser seguidas. Autonomia, por certo, não se confunde com soberania.

A idéia de soberania indica o poder de estabelecer a normatização a ser seguida em determinado território, sem que haja qualquer relação de subordinação a um estamento superior, bem como a aptidão do Estado em se relacionar com os demais na esfera internacional em uma posição de igualdade - ao menos jurídica. A soberania, em seu conceito clássico, que pouco a pouco vem sendo atenuado com a globalização e o imperativo respeito aos direitos fundamentais do homem, era qualificada como absoluta, originária, perpétua, inalienável, imprescritível e indivisível. Diversamente da soberania, a autonomia não apresenta qualquer característica de originariedade, tendo os seus limites traçados pelo próprio poder soberano, no qual encontra o seu fundamento de validade. A autonomia interage com a soberania em uma relação de continência, sendo por ela abrangida.

Em alguns casos, o próprio Constituinte Originário confere autonomia a determinadas estruturas organizacionais: os Poderes, os Entes da Federação, o Ministério Público, as Cortes de Contas, as Universidades etc. Em outros, a autonomia é assegurada pelos organismos que receberam a sua autonomia da Constituição, não existindo qualquer óbice ao surgimento de novas autonomias - desde que observados o procedimento previsto em lei e os limites já traçados para aquele. Nesses casos, ter-se-á uma autonomia "derivada", que será necessariamente mais restrita que aquela possuída pelo ente que a concedeu, o qual já fora limitado pelo Constituinte originário. Como exemplo de autonomia derivada, pode ser mencionada a situação dos órgãos administrativos que, por deliberação do ente federativo, passam a gozar de autonomia.

Constantino Mortati,(1) discorrendo sobre as características intrínsecas e a ratio da autonomia, afirma que "tal termo, segundo o seu significado (do grego: autos - si próprio, nemein - governar), quer significar a liberdade de determinação consentida para um sujeito, traduzindo-se no poder de estabelecer para si a lei reguladora da própria ação, ou, mais compreensivamente, o poder de prover os interesses próprios e, portanto, de gozar e dispor dos meios necessários para obter uma harmônica e coordenada satisfação dos mesmos interesses".

Tratando-se de entes públicos, que devem necessariamente observar as características inatas de um Estado de Direito, dentre as quais avulta o princípio da legalidade, o alcance da autonomia, que encerra um conceito nitidamente polissêmico, haverá de estar delineado na norma. A autonomia, assim, poderá variar em distintos graus, cujo patamar mínimo será a mera autonomia administrativa e o limite máximo a própria soberania.

Especificamente, em relação ao Ministério Público, a Constituição da República lhe assegurou, de forma expressa, autonomia funcional e administrativa (art. 127, § 2º), e, implicitamente, lhe garantiu autonomia financeira (art. 127, § 3º). A Lei nº 8.625/93, em seu art. 3º, fez referência expressa á autonomia nessas três vertentes. Como se vê, á Instituição foi outorgada uma autonomia extremamente elevada, praticamente inviabilizando qualquer ingerência exterior em sua organização. A exceção, por óbvias razões, se situa na ausência de uma ampla autonomia normativa, pois, em um Estado de Direito, é de todo desaconselhável que um órgão, sem a influência de qualquer outro, possa editar toda a normatização que deverá seguir. Evitar esse tipo de inconveniente, aliás, é uma das justificativas do sistema dos freios e contrapesos.


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