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Ao surgir o conflito, essa situação pode perdurar ou ser extinta. À extinção do conflito dá-se o nome de solução.
As formas de solução de conflitos consagradas pela doutrina (CINTRA; PELLEGRINI; DINAMARCO, 2002, p.21-22) são distribuídas em três grupos: 1) autodefesa; 2) autocomposição; e 3) heterocomposição.
1.1.1 AUTODEFESA
Ainda que não se conhecesse a história, por meio da lógica seria possível concluir que o homem precede o Direito e o próprio Estado.
Embora se diga que "onde há sociedade há direito" (ubi societas ibi ius), essa assertiva deve ser considerada com cautela.
Primeiro, porque, sua validade depende da idéias subjacentes aos termos sociedade e direito.
Conforme o sentido em que se empregam referidos termos, talvez não seja possível, nem temporalmente, nem espacialmente, determinar a coexistência dos fenômenos.
E mesmo no que toca ao sentido positivista das referidas expressões, haveria hodiernamente provas de que em todo o lugar onde existam homens exista o direito?
Nada obstante, entre aqueles que se aventuraram pelos meandros da razão para desvendar a origem do Direito e do Estado, pode-se citar, v.g., THOMAS HOBBES (2003, p.95), para quem:
Os homens iguais por natureza - Da igualdade deriva a desconfiança - Da desconfiança, a guerra - Fora dos estados civis, há sempre guerra de todos contra todos - Os inconvenientes de uma tal guerra - Numa tal guerra, nada é injusto - As paixões que levam os homens a tender para a paz.
O comportamento humano, assim descrito, retrata a busca natural da autoconservação e da satisfação de desejos pessoais sem as limitações coercitivas estatais.
Mesmo quando o Estado existe, mas é fraco e ausente, dá-se ensejo a este comportamento social.
A título de exemplo pode-se citar a seguinte passagem da obra de HENRI PIRENNE (1982, p.98), quando aborda os riscos que envolviam os mercadores viajantes até os fins do século XIII:
A princípio, os perigos de toda espécie que ameaçavam os mercadores obrigaram-nos a viajar em bandos armados, em verdadeiras caravanas. A segurança existia, unicamente, quando havia força e não podia existir sem agrupamento.
Esse quadro, contudo, continha um alto grau de instabilidade, mesmo com relação aos mais fortes, que estariam sujeitos a ataques de seus semelhantes a qualquer tempo.
Funda-se esse asserto no fato de que, não havendo o Estado, os homens poderiam tentar buscar satisfazer todos os seus desejos e, nesse caso, só seriam impedidos pela força física e a capacidade intelectual de eventuais oponentes.
Por meio dessa auto-satisfação, ou autodefesa, a solução dos conflitos surgidos se dá com a vitória do mais forte, ou mais arguto, em detrimento da integridade do derrotado, seja física, seja moral, incluindo até mesmo a morte.
Talvez em razão do medo e da insegurança constantes, os homens resolvem comprometer-se todos reciprocamente com a fixação de regras a serem seguidas para tornar possível seu convívio de maneira pacífica e harmônica.
Para isso, é criado o Estado, que recebe o monopólio do poder de resolver os conflitos -pela força, se necessário-, salvo em raras exceções.
Tomando-se, por exemplo, o atual ordenamento jurídico brasileiro, tem-se a prova da intenção do Estado no sentido de deter o monopólio da força, na medida em que tipifica a conduta de exercício arbitrário das próprias razões no art. 345 do Código Penal, para a qual é cominada detenção de 15 dias a 1 mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Em certas hipóteses, contudo, diante da constatação inafastável de que o Estado não é onipresente e onipotente, é permitido ao indivíduo a liberdade de agir por si próprio, como, por exemplo, no Código Civil: art. 1210, § 1.º; no Código Penal: art. 23, I, c.c. art. 24 e parágrafos, e art. 23, II, c.c. art. 25. Mas mesmo nestes casos há uma prévia avaliação do Estado no sentido de fixar o que é justo, e com base nisso permitir determinada conduta.
Em sede de direito do trabalho, um direito que ao empregado é dado exercer de ofício, desde que com razoabilidade, é o de greve, previsto no art. 9.º da Constituição da República e regulamentado pela Lei n.º 7.783, de 28 de junho de 1989.
1.1.2 AUTOCOMPOSIÇÃO
Com a criação do Direito, este entendido no sentido de um tipo de ordenamento normativo, que constitui um sistema completo, coerente e uno de normas com eficácia garantida por meio da força (BOBBIO, 1997), a autodefesa, como se viu, deixa de ser a regra e se torna a exceção como forma de solução de conflitos.
Uma forma de solução que já existia e continua existindo, e com base na qual o próprio Estado é criado, é a autocomposição.
A autocomposição é fundada no acordo de vontades, pressupondo pacificidade e liberdade.
é preferível à intervenção de terceiros, uma vez que expressará, no mais das vezes, o verdadeiro anseio dos envolvidos.
Essa afirmação se faz tendo em vista que, sendo o resultado da livre e espontánea vontade destes, será uma forma efetiva de solução com a seguinte vantagem: não haverá sentimento de injustiça em relação ao acordo firmado, pois "volenti non fit injuria", conforme lembra IMMANUEL KANT (2002, p.252).
A autocomposição é dividida por CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p.119-121) em unilateral e bilateral. Dentro daquela estaria a renúncia ou submissão. Nesta, a transação.
Em uma outra obra, este doutrinador leciona, juntamente com ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA e ADA PELLEGRINI GRINOVER (2002, p. 21):
Além da autotutela, outra solução possível seria, nos sistemas primitivos, a autocomposição (a qual, de resto, perdura residualmente no direito moderno): uma das partes em conflito, ou ambas, abrem mão do interesse ou de parte dele. São três as formas de autocomposição (as quais, de certa maneira, sobrevivem até hoje com referência aos interesses disponíveis): a) desistência (renúncia à pretensão); b) submissão (renúncia à resistência oferecida à pretensão); c) transação (concessões recíprocas). Todas essas soluções têm em comum a circunstáncia de serem parciais - no sentido de que dependem da vontade e da atividade de uma ou de ambas as partes envolvidas. (destaques do original)
Não se pode, entretanto, concordar totalmente com essa sistematização das formas de autocomposição.
Em primeiro lugar, quanto ao termo "desistência", tomado tecnicamente, tem significado tão-somente processual, de tal sorte que, mesmo se a pretensão for extinta definitivamente, o conflito poderá subsistir. Vide, por exemplo, a perempção (art. 267, V, Código de Processo Civil) e a prescrição (art. 269, IV, Código de Processo Civil), que apenas determinam o posicionamento estatal diante de um conflito ao qual é chamado a intervir. Assim, a desistência pode ser apenas indício de que o conflito cessou, e não representar a própria autocomposição.
Vale lembrar que a desistência não se confunde com a renúncia. O legislador do Código de Processo Civil deixa isso bem claro ao prever esta no art. 269, V e no art. 794, III, e aquela no art. 267, VIII.
O mesmo se diga em relação à "submissão", pois, se tomada no sentido de "reconhecimento da procedência do pedido", é apenas fenômeno processual que autoriza o juiz decidir a favor de quem formulou o pedido (art. 269, II, Código de Processo Civil).
Entretanto, se a submissão consistir na própria satisfação pelo réu da prestação que lhe é exigida, aí sim estará terminado o conflito. Se execução estiver em curso, será extinta nos termos do art. 794, I, Código de Processo Civil. Já o pedido em sede de processo de conhecimento não poderá ser apreciado, em razão de carência da ação (art. 267, VI, Código de Processo Civil).
A renúncia é o ato de despojar-se do direito. é uma "declaração unilateral de vontade com que o titular de um direito retira-se da respectiva relação jurídica" (CUNHA, 2003, p. 222).
1.1.3 HETEROCOMPOSIÇÃO
Como visto no tópico anterior, embora a autocomposição seja a forma ideal de solução de conflitos, apresenta o inconveniente de depender da vontade das partes, bem como da confiança recíproca, o que nem sempre ocorre.
Com a criação do Estado, e conseguinte monopolização da força, cabe a ele resolver os conflitos quando não há acordo entre dois indivíduos.
Conquanto faça valer um ideal de justiça preestabelecido legalmente, a composição heterogênea normalmente irá satisfazer somente a uma das partes do conflito, pois aquela a quem for negada a situação perseguida muito provavelmente não cederá de bom grado.
Talvez sejam os referidos inconvenientes da autocomposição a que ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p.21-22) se referem como sendo seus males:
Quando, pouco a pouco, os indivíduos foram-se apercebendo dos males desse sistema [autocomposição], eles começaram a preferir, ao invés da solução parcial dos seus interesses (parcial = por ato das próprias partes), uma solução amigável e imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança mútua em quem as partes se louvam para que resolvam os conflitos. Essa interferência, em geral, era confiada aos sacerdotes, cujas ligações com as divindades garantiam soluções acertadas, de acordo com a vontade dos deuses; ou aos anciãos, que conheciam os costumes do grupo social integrado pelos interessados. E a decisão do árbitro pauta-se pelos padrões acolhidos pela convicção coletiva, inclusive pelos costumes. Historicamente, pois, surge o juiz antes do legislador.
Ao Estado cabe a solução imposta dos conflitos. Pouco importa se não agradar às partes.
Se o conflito versar sobre direito a uma prestação, o Estado substituirá a própria conduta da parte que se nega a prestar. Se estiver em jogo uma incerteza, ainda que as partes não queiram, juridicamente valerá a declaração do Estado.
Certas relações jurídicas, só ele pode constituir, modificar ou extinguir (ex. casamento.), embora dependa, de certo modo, de uma conduta dos particulares.
Nos casos em que for necessário utilizar a força, o exercício desta será indelegável, salvo raras exceções.
Assim, historicamente, com o fortalecimento do Estado, ele
[...]impõe-se sobre os particulares e, prescindindo da voluntária submissão destes, impõe-lhes autoritativamente a sua solução para os conflitos de interesses. À atividade mediante a qual os juízes estatais examinam as pretensões e resolvem conflitos dá-se o nome de jurisdição.
[...]
As considerações acima mostram que, antes de o Estado conquistar para si o poder de declarar qual o direito no caso concreto e promover a sua realização prática (jurisdição), houve três fases distintas: a) autotutela; b) arbitragem facultativa; c) arbitragem obrigatória. A autocomposição, forma de solução parcial dos conflitos, é tão antiga quanto a autotutela. O processo surgiu com a arbitragem obrigatória. A jurisdição, só depois (no sentido em que a entendemos hoje).
é claro que essa evolução não se deu assim linearmente, de maneira límpida e nítida; a história das instituições faz-se através de marchas e contramarchas, entrecortada freqüentemente de retrocessos e estagnações, de modo que a descrição acima constitui apenas uma análise macroscópica da tendência no sentido de chegar ao Estado todo o poder de dirimir conflitos e pacificar pessoas. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2002, p.23)
1.1.4 ARBITRAGEM
Pode causar estranheza o fato de a arbitragem não ter sido mencionada no tópico da heterocomposição.
Porém, se se pensar bem neste instituto, será possível verificar que não se apresenta como mecanismo puro de heterocomposição.
Tratando-se de litígio que verse apenas sobre uma crise de certeza, uma dúvida quanto a uma relação jurídica, poderá ser dito que a arbitragem será mecanismo de heterocomposição na medida em que alguém alheio às partes envolvidas no conflito decide e declara a situação.
Mas, indiretamente, esta solução foi baseada numa autocomposição preestabelecida, ou concordáncia entre as partes no sentido de submeter o conflito, ou a questão, ao árbitro.
Podem as partes até mesmo ter de bom grado acordado que se submeteriam à decisão deste, ainda que se tratasse de direito a uma prestação. E mais ainda. Pode até ocorrer de a prestação ser entregue espontaneamente. Ora. Tudo isso é autocomposição.
E, no Brasil, quando for necessário o emprego da força, a questão deverá ser submetida ao Estado, mais especificamente ao Poder Judiciário, conforme se depreende, por exemplo, dos parágrafos 2.º e 3.º do art. 22 da Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996.
Desse modo, também sob este aspecto, a arbitragem não pode ser considerada heterocomposição.
Isso que foi dito acerca da arbitragem pode levar, em última análise, até mesmo a afirmar que a própria jurisdição tem fundamento em uma autocomposição prévia, quando é firmado o ordenamento jurídico. Mas essa tese necessitaria de mais linhas para ser defendida, e fugiria ao objeto deste trabalho.
1.2 CONCEITO DE TRANSAÇÃO
De acordo com o que foi visto até aqui, a transação é uma modalidade de autocomposição.
Esse parece ser o aspecto preponderante do conceito do instituto, tanto que aparece no primeiro artigo que dele trata no Código Civil - art. 840.
Sobre ela, CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p.460-461) deixou escrito há uns cem anos:
Technicamente o vocábulo encerra um sentido lato e outro mais restricto, que é o objecto que nos vae occupar.
No primeiro sentido comprehende o compromisso e o antigo pacto de juramento - pactum de jurejurando extrajudiciale - no sentido do direito romano e abolido dos costumes modernos. é então toda e qualquer accomodação entre as partes sobre um direito litigioso ou incerto que ella tende a afixar: é o que bem exprime o termo jurídico allemão Auseinandersetzung.
No sentido restricto, é essa mesma accomodação, mas revestida de característicos accentuados especiaes. é um acto jurídico bilateral, pelo qual, fazendo recíprocas concessões, as partes extinguem obrigações tambem recíprocas.
CLÓVIS BEVILÁQUA (1955, p.144) a define como "um ato jurídico, pelo qual as partes, fazendo-se concessões recíprocas, extinguem obrigações litigiosas ou duvidosas".
Elemento essencial da transação é a reciprocidade de concessões. Quanto a este aspecto, merecem transcrição as palavras de CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p.462):
As concessões reciprocas das partes não implicam proporcionalidade no dado, retido, ou promettido. Ellas podem consistir em satisfazer-se em parte a razão do litigio ou da duvida, ou renuncial-a em parte; reconhecel-a em parte e noutra não; em renuncial-a ou satisfazel-a in totum, uma vez que haja reciprocidade.
Ordinariamente, si não sempre, as concessões contêm renuncia, desistencia de direitos, córtes em pretenções, como meios de poderem as partes chegar a um acordo. Si tal renuncia não tem o carater de reciprocidade, ou ha doação, ou ha remissão de divida; nunca, porém, transacção. Renuncia sem recompensa não é transacção; é liberalidade.
A reciprocidade não é apenas a presença de duas concessões contrapostas. Deve-se ter presente que uma é causa da outra e vice-versa. Mas essa reciprocidade, de acordo com a lição acima, não implica necessariamente proporcionalidade.
Como analogia, imagine-se um contrato de compra e venda em que A se obriga a pagar R$ 300,00 pelo relógio que B oferece. A obrigação de pagar certa quantia em dinheiro só existe em razão da obrigação correlata de transferir o domínio da coisa. Isso, definitivamente, não é a mesma coisa que dois contratos de doação.
Outro ponto de destaque da transação é seu efeito extintivo de obrigações, que, para CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p.463), está relacionado à parte do crédito renunciada por seu titular:
Ora, a transacção não tem em vista crear nenhuma obrigação, nem substituir uma que surge á outra que se extingua e sim extinguir essas obrigações por uma renuncia da parte do sujeito activo do direito de credito.
Note-se que o efeito extintivo atribuído à transação continua sendo ressaltado até os dias de hoje, consoante se observa em ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO (2001, p.192), embora a mencione como contrato e não simplesmente como ato.
Porém, se nem sempre há renúncia, conforme afirma o próprio CARVALHO DE MENDONÇA, haveria sempre o efeito extintivo?
E se, em vez de renunciar a parte do crédito, o credor houvesse entregado certo bem ao devedor para convencê-lo a cumprir a obrigação? Deve ser lembrado que concessão não significa a mesma coisa que renúncia. Nesse caso, a extinção só ocorreria com a entrega da prestação, ou seja, com o pagamento, e não com a transação.
E se há uma relação duvidosa, que se define pela transação, haveria extinção? Somente se o acordo se firmasse aquém do total do crédito. Se as partes solucionassem relação duvidosa, mas acordando em valor superior ao crédito efetivo, estar-se-ia, de fato, criando obrigação.
Além disso, em caso de haver realmente dúvida sobre determinada relação jurídica, ficaria um tanto complexa uma renúncia sobre algo que não se sabe se existe. Seria uma renúncia condicional, cuja condição seria justamente a existência da coisa. Isso porque, não existindo o objeto da renúncia, essa não pode existir (ato jurídico requer objeto).
Vale lembrar que a dúvida ou a litigiosidade representa um óbice à extinção da obrigação, de tal sorte que, sob esse enfoque pode-se dizer que a transação visa a retirar esse impasse, mas com o fim último de extinguir a obrigação. Aqui, a transação não extingue, mas possibilita a extinção.
Acresça-se que, se o próprio CARVALHO DE MENDONÇA menciona que se pode prometer algo para que se chegue a um acordo, pergunta-se: a promessa não obriga?
Ainda dentro do conceito de transação, parece ser entendimento dominante a consideração de que a res dubia seria elemento necessário à transação, conforme lição de OROSIMBO NONATO (1971, p. 296-308).
Entre os juristas trabalhistas, v.g., ARNALDO SÜSSEKIND (2000, 221), e EDUARDO GABRIEL SAAD (1996, p.56) também entendem ser imprescindível a incerteza das relações.
Porém, a transação não é utilizada somente para pôr fim em relações duvidosas. Ela serve também às relações simplesmente litigiosas. Assim, a res dubia não é essencial.
Ora. Se transação se usa para extinguir relação litigiosa ou duvidosa, tem-se que é aplicável para: a) relação litigiosa e duvidosa; b) relação litigiosa; e c) relação duvidosa.
Ainda que se considere res dubia como elemento da transação, ela só o seria em a e c, mas não em b.
Dizer que só se aplica transação a relações duvidosas é retirar substancial utilidade do instituto.
Os que isso fizeram, perceberam, embora sem admitir, o seu erro, e, para contornar esse empecilho, mudaram o caráter da res dubia, como OROSIMBO NONATO (1971, p. 302):
O elemento tradicional da res dubia pode ser mantido, dando-se-lhe determinado entendimento, assinalando-se-lhe o caráter eminentemente subjetivo e considerando-o ínsito na transação, um elemento presumido, menos no caso de lide temerária.
Com esse significado atribuído à coisa duvidosa, ela poderia consistir, simplesmente, no "temor da lide, de seus ônus e incômodos" (NONATO, 1971, p. 302).
Se a dúvida dissesse respeito ao resultado de uma demanda (NONATO, 1971, p. 302), não seria necessário ser mencionada como elemento, pois nunca se sabe como o magistrado irá julgar uma lide, o que é corroborado pelo princípio do livre convencimento (a menos que alguém soubesse ler sua mente).
Nada obstante, não parece ser esta a dúvida, ou o objeto da dúvida, que mencionaram CLOVIS BEVILAQUA e CARVALHO DE MENDONÇA no início deste tópico.
Enfim, quando há um conflito, normalmente ambas as partes entendem estar corretas. Por isso, para estes casos, nenhuma delas quer se submeter à outra. Mas quando esta submissão não é gratuita, ou seja, quando há uma contraprestação, isso pode mudar o ánimo do indivíduo para fazê-lo acordar o fim da controvérsia.
Demonstra-se, destarte, a utilidade da transação como instrumento negocial ligado mais à extinção da controvérsia do que da obrigação.
1.3 BREVES NOTAS SOBRE A TRANSAÇÃO NO DIREITO ROMANO
Segundo MARIA HELENA DINIZ (1996, p. 309), "no direito romano a transação destinava-se a extinguir um direito em litígio, por ser uma convenção em que alguém renunciava um direito em litígio, recebendo, porém, uma retribuição".
A autora (DINIZ, 1996, p.309) menciona, ainda, o seguinte trecho de ULPIANO, extraído do Digesto, Liv. II, Tít XV, frag. 1, que já era citado por CLOVIS BEVILAQUA (1955, p.144): "Qui transigit, quase de re dubia et lite incerta neque finita transigit." Eis a tradução desse fragmento feita por DARCY ARRUDA MIRANDA (1995, p.103): "Quem transige o faz como se se tratasse de assunto duvidoso e de litígio incerto e não terminado."
Um princípio importante previsto desde o Código de JUSTINIANO, conforme MARIA HELENA DINIZ (1996, p.309), era a necessidade de concessões recíprocas.
Mister salientar que a transação, como forma de solução de litígio, não se confunde com as formas de solução de obrigações por acordo de vontades como a immaginaria solutio do direito quiritário e o contrarius actus do direito clássico, que recebia proteção jurídica do pretor: o pactum de non petendo. (MARKY, 1995, p. 149)
1.4 ANÁLISE DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL
Art. 840 - é lícito aos interessados prevenirem, ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.
Essa redação é idêntica à contida no art. 1.025 do Código Civil de 1916, mas, embora a transação continue a figurar no Livro do Direito das Obrigações, foi deslocada do Título "Dos Efeitos das Obrigações" para o "Das Várias Espécies de Contrato".
Há muito tempo já existe a controvérsia quanto ao caráter contratual da transação, conforme assinala CLOVIS BEVILAQUA (1955, p.144):
Para o Código Civil, a transação não é, propriamente, um contrato. Ainda que a lição da maioria dos Códigos seja em sentido contrário, o certo é que o momento preponderante da transação é o extintivo de obrigação. Era a lição de Teixeira de Freitas, seguida por Carlos de Carvalho, que encontra apoio nos anotadores franceses do Código Civil alemão. Depois de assinalarem que o Landrecht prussiano e o Código Civil austríaco se ocuparam da transação entre os modos de extinguir obrigações, ponderam: "O Código alemão afastou-se desses precedentes germánicos, que, teòricamente, apresentam, incontestàvelmente, vantagens sobre os outros".
A polêmica que há acerca da natureza da transação decorre não do seu estudo em si, mas do próprio conceito de contrato.
Segundo ORLANDO GOMES (2002, p. 440), a corrente que defende o contrato como negócio jurídico destinado tão-somente a criar obrigações está em decadência. Para estes, a transação é apenas forma de pagamento lato sensu
Porém, atualmente se entende que os negócios jurídicos bilaterais modificativos ou extintivos de obrigações também seriam contratos. Assim, para essa corrente a transação seria contrato, indiscutivelmente (GOMES, 2002, p. 440).
Além disso, ainda de acordo com ORLANDO GOMES (2002, p. 440), as concessões recíprocas implicariam num caráter constitutivo da transação, corroborando sua natureza contratual.
Contudo, sob um outro enfoque, a transação, além de ser um contrato em si, pode ser constituída por um ou mais contratos, na seguinte linha de raciocínio: as concessões recíprocas podem consistir em renúncia, mas nada impede que consistam em obrigação, quando, por exemplo, a prestação não puder ser entregue imediatamente. Esta obrigação decorre de um contrato, uma vez que depende da vontade de ambas as partes. Assim, tem-se que: a) este contrato é apenas uma concessão; b) a concessão é elemento da transação, e não a transação em si; c) Portanto, este contrato não é a transação, mas apenas a integra. O braço de uma pessoa não é a pessoa.
Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação.
Direito patrimonial é o "suscetível de avaliação pecuniária" (CUNHA, 2003, p.97).
O advérbio "só" do dispositivo pode levar a crer que os direitos patrimoniais de caráter público não sejam passíveis de transação.
Porém, até mesmo tributos podem sê-lo, conforme dispõe o art. 156, III e art. 171 do Código Tributário Nacional, verbis:
Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
[...]
III - a transação;
[...]
Art. 171. A lei pode facultar, nas convenções que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário.
YOSHIAKI ICHIHARA (2000, p. 162-163) posiciona-se favoravelmente à transação em sede de direito tributário, e menciona FÁBIO FANNUCHI também no mesmo sentido. Contrariamente se manifesta EDUARDO MARCIAL FERREIRA JARDIM (1998, p. 402-404).
Apesar da controvérsia, a Lei n.º 9.469, de 10 de julho de 1997, que regulamenta o inciso VI do art. 4.º da Lei Complementar n.º 73/93, também demonstra a possibilidade de a Fazenda Pública transigir.
Feita essa ressalva, vale salientar os esclarecimentos de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 153):
Não é lícito transigir sobre questões relativas ao estado das pessoas, legitimidade do matrimônio, pátrio poder, relações pessoais entre cônjuges, filiação. As vantagens, porém, oriundas dessas relações, desde que sejam de ordem patrimonial, podem ser objeto de transação.
Ressalte-se que, embora os direitos do trabalhador sejam em sua maioria patrimoniais, isso não é o bastante para permitir a transação (Infra 2.3 e 2.3.1).
Verifica-se que o art. 841 merece algumas críticas.
Se direitos de caráter público podem ser objeto de transação, não há porque a restrição aos de caráter privado.
Quanto à expressão "direitos patrimoniais", também parece sem efeito, uma vez que, segundo os ditames da razão não se cogita de transacionar direitos não patrimoniais: o filho não deixa de ser filho por acordo de vontades; o nome da pessoa física não se altera por acordo; o estado marital; o direito a alimentos etc.
Por fim, ainda que se tentasse alegar que o dispositivo faria referência a "direitos disponíveis", estar-se-ia dizendo o óbvio, pois não se pode dispor do indisponível...
Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.
A forma prescrita para a transação é requisito de validade, a teor do art. 104, caput e inc. III do Código Civil, de sorte que sua não observáncia acarreta nulidade, conforme art. 166, inc. IV, também do Código Civil.
Segundo CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p. 469), a transação pode ser judicial ou extrajudicial, conforme verse sobre direitos contestados em juízo ou não respectivamente.
Como se depreende do dispositivo supra, mesmo em se tratando de direitos contestados em juízo, pode ser feita a transação por meio de escritura pública. Além disso, tanto no Código Civil anterior -art. 1028 - como no atual, não se exige que a escritura pública seja homologada pelo juiz (Infra 1.5.1).
Porém, MARIA HELENA DINIZ (1995, p. 674) entende que mesmo a escritura pública deve ser levada à homologação judicial e cita diversas referências nesse sentido: "RT 484:216, 477:245, 413:193, 411:161, 418:343, 497:122, 550:110 E 580:187".
Art. 843. A transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos.
Assevera CARLOS MAXIMILIANO (1990, p. 350) que "devem ser expressas as disposições de que resulte, fiança ou garantia, renúncia, cessão, transação, e interpretam-se estritamente como os contratos benéficos".
Pois, bem. Não simplesmente por se tratar de transação, mas antes, por poder implicar renúncia, conforme aduz CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 146), deve-se seguir essa regra geral.
Acerca do caráter meramente declaratório, a doutrina não é pacífica. Verifica-se que, há mais de meio século, esse fato já constava entre os comentários de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 146) ao Código Civil de 1916.
Hodiernamente a discórdia continua. A propósito, SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003, p. 307) anota que "entendendo-se o instituto como um contrato, difícil defender seu aspecto simplesmente declaratório."
Nada obstante, a Lei n.º 10.406/02 manteve a redação do dispositivo do Código de 1916, que já demonstrava claramente o posicionamento do legislador.
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (1989, p. 310) ressalta bem esta polêmica:
A grande maioria dos Códigos contemporáneos considera a transação como contrato, atribuindo-lhe, por isso, efeitos translativos de direitos. Assim a conceituamos a fls. 142, com apoio na lição de Afonso Fraga.
O Código Civil Brasileiro, entretanto, afastando-se dessa orientação, inclui a transação entre os meios extintivos de obrigações, com efeitos meramente declarativos. Aplaudem essa orientação Clóvis e M. I. Carvalho de Mendonça.
Mostra-se complexo esse aspecto acerca do caráter da transação.
Se for tomado, por exemplo, a res dubia, ela nada mais é do que a incerteza jurídica acerca de quem deve assumir ou permanecer em determinada situação. Assim, a incerteza é apenas quanto à existência e limites de determinado direito (sendo mais de um direito, haverá mais de uma transação). Se um determinado bem está na posse de A e surge uma controvérsia com B e, por meio da transação, A reconhece que o bem deveria, de fato, estar na posse de B, por ser este seu proprietário, mas exige uma recompensa (reciprocidade), o bem estará sendo restituído a B. Ocorre que, embora alguém possa apontar a restituição do bem como sendo "transferência de direito", na verdade o direito sobre o bem sempre foi de B, ou seja, não houve transferência, mas mero reconhecimento.
Ainda que a uma das concessões consista na transferência de um direito, esta foi apenas utilizada para que se chegasse a um acordo quanto ao reconhecimento ou declaração da relação controvertida.
Nesse sentido, fica claro o caráter declaratório e recognitivo da transação, tornando defensável o posicionamento de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 146).
Poder-se-ia, ainda, argumentar que se fosse permitido criar mais obrigações ou situações jurídicas por meio da transação (caráter constitutivo), estar-se-ia com isso dando azo à criação de mais situações passíveis de conflitos, que por sua vez seriam objetos transacionáveis, e assim por diante, numa progressão infinita...
Mas, como foi visto, pode ser criada obrigação na transação, em troca do reconhecimento ou declaração da relação controvertida. Não parece razoável o argumento de que com isso se estaria dando azo ao surgimento de mais conflitos. Ora. Toda e qualquer relação jurídica obrigacional está sujeita a controvérsias. Mesmo a relação nos moldes em que ficou estabelecida na transação pode tornar-se novamente controversa se, por exemplo, o devedor se negar a cumprir seu papel.
Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.
§1.º Se for concluída entre o credor e o devedor, desobrigará o fiador.
§2.º Se entre um dos credores solidários e o devedor, extingue a obrigação deste para com os outros credores.
§3.º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores.
O caput apresenta o princípio da relatividade dos contratos, assim apresentado por SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003, p. 377):
A regra geral é que o contrato só ata aqueles que dele participaram. Seus efeitos não podem nem prejudicar, nem aproveitar a terceiros. Daí dizemos que, com relação a terceiros, o contrato é res inter alios acta, aliis neque nocet neque potest.
Com efeito, ninguém pode negociar acerca de bens alheios, salvo quando autorizado por lei.
Os parágrafos, de acordo com CLOVIS BEVILÁQUA (1955, p. 149), seriam exceções ao princípio estabelecido no caput:
a primeira, como conseqüência do princípio de que, extinta a obrigação principal, extingue-se igualmente, a acessória; as duas seguintes, como aplicações do princípio da solidariedade.
Apesar do posicionamento deste civilista, os parágrafos se apresentam mais como regras autônomas, e não como simples exceções ao disposto no caput.
Art. 845. Dada a evicção da coisa renunciada por um dos transigentes, ou por ele transferida à outra parte, não revive a obrigação extinta pela transação; mas ao evicto cabe o direito de reclamar perdas e danos.
Parágrafo único. Se um dos transigentes adquirir, depois da transação, novo direito sobre a coisa renunciada ou transferida, a transação feita não o inibirá de exercê-lo.
São deveras coerentes os comentários de CLOVIS BEVILAQUA acerca deste dispositivo, pois, se antes foi dito que pela transação não há transferência, pareceria contraditória a menção feita à "coisa transferida à outra parte".
Essa transferência não é realizada pela transação, mas, segundo o civilista, apenas se apresenta como uma remuneração dada pelo acordo firmado. E acrescenta (BEVILAQUA, 1955, p. 151):
é certo, entretanto, que o Êsboço [Projeto do Código de 1916, elaborado por TEIXEIRA DE FREITAS] denomina transferência não sòmente a coisa dada em retribuição do acordo, como acaba de ser dito, mas, ainda, a restituição ou entrega da coisa por um dos transigentes ao outro, que a ela se julga com direito. Mas, neste último caso, não há mais que renúncia.
CLOVIS BEVILAQUA, desta forma, confirma seu posicionamento, ou seja, para ele não se opera transmissão de direitos por meio da transação. Esta é instrumento de extinção de obrigação e, em última análise, de conflitos.
Os direitos eventualmente transmitidos não são o objeto da transação.
Art. 846. A transação concernente a obrigações resultantes de delito não extingue a ação penal pública.
Vale lembrar o disposto no art. 935 do Código Civil, verbis:
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
Este dispositivo ressalta o princípio da independência das instáncias civil e criminal.
Embora o ilícito civil possa afetar tão-somente o indivíduo ofendido, o crime lesiona toda a sociedade.
Porém, tratando-se de infração penal de menor potencial ofensivo, sujeita à ação penal privada ou pública condicionada, a transação quanto à matéria civil acarretará renúncia ao direito de queixa ou representação, conforme art. 74, parágrafo único, da Lei n.º 9.099/95.
A infração penal de menor potencial ofensivo está definida no art. 61 da Lei n.º 9.099/95, verbis:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.
Art. 847. é admissível, na transação, a pena convencional.
Da mesma forma que pode haver remuneração pelo acordo firmado, consoante demonstrado supra na análise do art. 845 do Código Civil, também é admissível a previsão de cláusula penal no contrato da transação.
Este dispositivo só se justificava na vigência do Código Civil anterior, quando a transação se mostrava mais pela função do que pela substáncia, ou seja, mais como instrumento de extinção de obrigação do que como uma figura contratual típica.
A este respeito, eis a justificativa de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 152) na vigência do diploma civil de 1916:
Nos sistemas, em que a transação é considerada forma especial de contrato, pareceria inútil uma disposição como esta, porque é mera aplicação do direito comum. Nos sistemas, porém, em que a transação é simples modo de extinguir obrigações, não é demais declarar que ela admite o refôrço da cláusula penal, porque esta não costuma andar ligada aos modos de pagamento.
Art. 848. Sendo nula qualquer das cláusulas da transação, nula será esta.
Parágrafo único. Quando a transação versar sobre diversos direitos contestados, independentes entre si, o fato de não prevalecer em relação a um não prejudicará os demais.
Para cada litígio deve corresponder uma transação. Havendo mais de um, haverá mais de uma transação.
As cláusulas a que se refere o caput são as elementares, e não as acidentais do negócio jurídico, de tal sorte que, se, por exemplo, for nula a cláusula que estabelece cláusula penal, a transação não será nula.
Ocorrerá a figura prevista no parágrafo único quando for utilizado um único instrumento para transação de direitos diversos.
Art. 849. A transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa.
Parágrafo único. A transação não se anula por erro de direito a respeito das questões que foram objeto de controvérsia entre as partes.
Trata-se de aplicação das regras gerais dos negócios jurídicos, previstas no Capítulo IV do Título I do Livro III da Parte Geral do Código Civil.
Nos termos do art. 145 do Código, o negócio jurídico é anulável somente quando o dolo foi causa de sua existência. Se o dolo for acidental, só obrigará ao ressarcimento das perdas e reparação dos danos causados, conforme art. 146. Segundo este mesmo dispositivo, é acidental quando, "a seu despeito [do dolo], o negócio seria realizado, embora de outro modo".
Quanto à coação, o art. 151 e seguintes do Código Civil fornecem os critérios para que se verifique se é ou não caso de invalidade relativa da transação.
Erro, por sua vez, é conhecimento equivocado, ao passo que ignoráncia é ausência de conhecimento. No erro, a pessoa representa algo em sua mente. Porém, este algo não coincide com a realidade. Na ignoráncia, nada é representado.
Segundo o art. 138 do Código Civil c.c. art. 139, III, o erro de direito pode tornar negócio anulável se for o único ou principal motivo deste e não implicar recusa à aplicação da lei.
Está de acordo com o art. 3.º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece."
Art. 850. é nula a transação a respeito do litígio decidido por sentença passada em julgado, se dela não tinha ciência algum dos transatores, ou quando, por título ulteriormente descoberto, se verificar que nenhum deles tinha direito sobre o objeto da transação.
CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 154) apresenta a seguinte hipótese de aplicação da primeira parte do dispositivo:
Para que se dê a hipótese da nulidade da transação por já estar o litígio decidido por sentença passada em julgado, imaginam os autores que, depois de ter ganho o processo, morre uma das partes, e o seu herdeiro, ignorando a sentença judiciária, transige com a parte adversa(...) Há erro substancial, que torna ineficaz a transação. O Código, porém, não a considera simplesmente anulável, e, sim, absolutamente nula, porque, se foi celebrada por erro, não tinha objeto.
Pode-se citar ainda o seguinte exemplo: O indivíduo A obteve título executivo judicial em face de B, que foi revel no processo de conhecimento. Porém, A, não contente com a quantia que lhe foi reconhecida no título, tenta fazer acordo com B com o intuito de formar outro título executivo. Isso porque B não tinha conhecimento do processo. Tendo em vista que ambos os títulos versam sobre a mesma obrigação, e que B não teve conhecimento da sentença, a transação será nula.
No que tange à descoberta ulterior de título que demonstra que ambos os transatores não tinham direito sobre o objeto da transação, a nulidade decorre simplesmente do fato de que, devido ao caráter meramente declaratório ou recognitivo da transação, esta somente se aplica a algo existente, segundo CLOVIS BEVILAQUA (1955, p.154-155).
Com relação à aplicabilidade da transação estar adstrita à objeto existente, não significa a impossilidade de dois indivíduos reconhecerem, por meio dela, inexistência de um direito. Aqui fica evidente o caráter declaratório. De outro lado, revela-se que o que deve existir como objeto é o litígio ou a res dubia, mas não um direito em si.
1.5 ANÁLISE DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
1.5.1 DIREITOS CONTESTADOS EM JUÍZO
Em rápida passagem, PONTES DE MIRANDA (1954, p. 37) defende ser a transação instituto de direito material, e que não se processualiza. O que haveria processualmente, segundo ele, seria desistência, ao menos parcial.
ORLANDO GOMES (2002, p.442), entretanto, afirma que a maioria da doutrina entende ser a transação, ao mesmo tempo, ato civil e processual.
Embora haja este entendimento, a transação por termo nos autos importa extinção com julgamento de mérito, e não sem julgamento, o que ocorreria se, de fato, houvesse apenas desistência:
Art. 269. Extingue-se o processo com julgamento de mérito:
[...]
III - quando as partes transigirem;
Pressupõe-se, aqui, obviamente, a existência de processo em curso, e que a transação deverá ser feita por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz, conforme art. 842 do Código Civil.
Assim, constituirá título executivo com base no art. 584, III, do Código de Processo Civil, verbis:
Art. 584. São títulos executivos judiciais:
[...]
III - a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que verse matéria não posta em juízo;
Sendo a transação resultado da vontade das partes, não lhes restará interesse recursal quanto ao objeto transacionado se a sentença simplesmente a homologar.
Não cabendo mais recurso, a sentença passará em julgado, nos termos do art. 467, verbis:
Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
Surgirá, assim, pressuposto processual negativo (art. 301, VI, do Código de Processo Civil), impedindo apreciação do mérito de futuras ações cobertas pelo manto da coisa julgada (art. 267, IV, do Código de Processo Civil).
Ressalte-se, contudo, que a sentença que homologa a transação não está sujeita à ação rescisória, mas sim aos mecanismos aplicáveis aos atos jurídicos em geral, conforme art. 486, verbis:
Art. 486. Os atos jurídicos, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.
Se, todavia, em vez de homologar, a sentença utilizar a transação como fundamento para decidir, caberá ação rescisória, nos termos do art. 485, VIII, do Código de Processo Civil, verbis:
Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
[...]
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
Cogita-se a aplicação desse dispositivo, por exemplo, na hipótese de transação efetivada por meio de instrumento particular que não constitua título executivo.
Imaginando que uma das partes não cumpra o acordo, a outra poderá ingressar em juízo para formar o título executivo, apresentando o instrumento do contrato como prova de suas alegações. Por sua vez, o juiz, com base nesse documento, profere sentença de mérito condenando o réu a cumprir o acordo. Se, após a sentença transitar em julgado, for descoberto fundamento para invalidar a transação, o remédio cabível será ação rescisória, com fundamento no referido art. 485, VIII, do Código de Processo Civil, e não ação anulatória baseada com base no art. 486.
Parece ser o caso do seguinte julgado:
Transação extrajudicial. Inaplicabilidade do art. 269, III, do CPC. Esse dispositivo aplica-se apenas às transações judiciais, em que as partes no transcorrer da lide conciliam-se e o juiz toma por termo a conciliação, ou profere a sentença, extinguindo o processo após o cumprimento da avença. Não se aplica às transações extrajudiciais, ocorridas antes da abertura do processo litigioso. Estas - as transações extrajudiciais - devem ser invocadas como argumento de defesa, como prova documental do pagamento ou do cumprimento da obrigação que se discute no processo. A decisão que se segue, em razão da transação extrajudicial, será de procedência ou de improcedência do pedido, nos termos do art. 459 do CPC.
(TRT 2.ª Região, 9.ª Turma, Recurso Ordinário n.º 22354-2002-902-02-00-0, ano 2002, Rel. LUIZ EDGAR FERRAZ DE OLIVEIRA, j. 09/09/2002)
De acordo com o que foi exposto até aqui, não parece correto o entendimento de GEOVANY JEVEAUX, MARCOS PINTO DA CRUZ e RICARDO AREOSA (2002, p.26), segundo os quais:
Se a transação foi realizada extrajudicialmente, a rescisão deverá ser proposta através da ação anulatória, de que trata o art. 486 do CPC. Se judicial, pela ação rescisória, de que trata o art. 485, VIII, do mesmo diploma.
Ainda tratando de direitos contestados em juízo, consoante visto supra, tópico 1.4, no comentário ao art. 842 do Código Civil, pode-se fazer a transação por meio de escritura pública.
Nesse caso, ela valerá como título executivo, mas extrajudicial, com base no art. 585, II, verbis:
Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:
[...]
II - a escritura pública [...]
Com isso, não haverá mais razão de prosseguir o processo, que será extinto sem exame de mérito em virtude de carência superveniente consistente em ausência de interesse processual (art. 267, VI, do Código de Processo Civil).
Mas nesse caso não terá força de coisa julgada, propriamente dita, embora os efeitos sejam, na prática e em certos aspectos, semelhantes, máxime diante das estritas hipóteses de anulação da transação (art. 849 do Código Civil).
Se a transação for efetivada por meio de instrumento particular ou por qualquer meio não previsto no artigo 842 do Código Civil, e tiver como objeto direito contestado em juízo, ela será nula por ofensa à forma prescrita, conforme art. 166, IV, também do Código Civil (supra 1.4).
1.5.2 DIREITOS NÃO CONTESTADOS EM JUÍZO
Caso os direitos objeto da transação não estejam submetidos à apreciação judicial, a transação poderá ser feita por instrumento público ou particular, se assim permitir a lei, nos termos do art. 842 do Código Civil.
Se for feito por escritura pública ou por documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas, valerá como título executivo extrajudicial, conforme art. 585, II, do Código de Processo Civil, causando falta de interesse processual para eventual ação de conhecimento sobre a matéria.
Porém, caso o instrumento não constitua título executivo, e o devedor não cumpra a transação, será necessário um processo de conhecimento ou, se cabível, ingressar diretamente com uma ação monitória (art. 1102ª e seguintes do Código de Processo Civil).
2.1 CONCEITO
Viver é satisfazer a vontade. Vontade, aqui, utiliza-se em sentido amplo para abranger o querer, o desejo, a paixão, os impulsos instintivos.
O ser humano a todo instante quer algo, e age direcionado por este querer.
De fato, as vontades primeiras são representadas pelos instintos naturais, mormente de alimentação, excreção, repouso, reprodução e autodefesa. Por trás de todas essas, está a própria vontade de vida. À frente, a de fazer perdurar a vida na pessoa dos descendentes.
Nesse sentido, eis as palavras de ARTHUR SCHOPENHAUER (2000, p. 7):
Quando, então, sem esquecermos disso, consideramos o papel importante que o impulso sexual desempenha, em todas as suas gradações e nuanças, não só nas peças de teatro e romances, mas também no mundo real, onde ele, ao lado do amor à vida, mostra-se como a mais forte e ativa das molas propulsoras, absorvendo ininterruptamente a metade das forças e pensamentos da parte mais jovem da humanidade.
Mais adiante, acrescenta (SCHOPENHAUER, 2000, p. 62):
De fato, o temor da morte é independente de todo conhecimento: pois o animal o possui, embora não conheça a morte. Esse temor da morte a priori é, entretanto, justamente apenas o reverso da Vontade de vida, que nós todos somos. Por isso, em cada animal, ao lado do cuidado com sua conservação, é inato o medo diante da própria destruição: esse, portanto, e não o mero evitar a dor, é o que se mostra na precaução angustiosa com a qual o animal procura colocar a si, e ainda mais a sua prole, em segurança diante de cada coisa que possa ser perigosa. Por que o animal foge, teme e procura esconder-se? Porque ele é pura Vontade de vida;
Percebe-se que o homem, para viver, tem que satisfazer suas necessidades naturais. A forma pela qual as satisfaz é variada, mas normalmente envolve uma atividade física e intelectual.
Tirante as hipóteses em que busca suprir as necessidades de seus semelhantes, principalmente de seus descendentes, a maioria das atividades são desenvolvidas para saciar a si próprio, para a própria conservação.
Mesmo com a evolução, essa necessidade de se buscar a própria sobrevivência, por meio de uma atividade, não foi eliminada. Veja-se, por exemplo, a robótica, que, ao substituir os homens nas linhas de montagem das grandes indústrias, apenas fez com que fossem obrigados a procurar outro meio de vida (FARIA, 1955, p. 68).
Talvez em razão dessa ausência de paz, de constante angústia causada pelas necessidades incessantes, tenha-se atribuído a essa atividade de buscar a própria sobrevivência o nome de trabalho, uma vez que "trabalhar", etimologicamente, vem do latim vulgar "tripaliare", que significa "martirizar com o tripalium (um instrumento de tortura)" (FERREIRA, 1986).
2.2 BREVE HISTÓRICO: TRABALHO PARA SI E TRABALHO PARA OUTREM
Como se viu, o trabalho é uma atividade intelectual e física desenvolvida pelo homem com o fim último de satisfazer suas necessidades.
No decorrer de sua vida, e constante atividade para buscar seus meios de sobrevivência, os homens entravam em conflito, que poderiam até mesmo terminar em morte.
Porém, o homem percebeu ser mais vantajoso, em vez de matar o oponente derrotado, subjugá-lo e torná-lo seu escravo, para que este realizasse seu trabalho.
Neste ponto deve ser ressaltado um aspecto muito importante, pois está aqui o surgimento da alteração nas circunstáncias da busca pela sobrevivência: ao lado do trabalho para si, onde o homem adquiria diretamente todo o resultado de sua atividade e sob os ditames de seus próprios interesses espontáneos, passa a existir o trabalho para outrem, onde o homem passa a obter, em troca de sua atividade, apenas o mínimo para continuar vivendo e servindo ao seu dominador. Como se vê, o alimento que este fornece para seu dominado serve apenas para mantê-lo vivo e em condições de trabalhar, e não como uma contraprestação, uma remuneração, ou mesmo uma gratidão. O dominador mantém vivo o dominado para que este o sustente. Chega a caracterizar uma relação parasitária.
A escravidão, aliás, é apontada por AMAURI MASCARO NASCIMENTO (1997, p. 42) e por SEGADAS VIANA como a primeira fase na história do trabalho. Vale ser citado o seguinte trecho deste último doutrinador:
Nos combates que travava contra seus semelhantes, pertencentes a outras tribos e grupos, terminada a refrega, acabava de matar os adversários que tinham ficado feridos, ou para devorá-los ou para se libertar dos incômodos que ainda podiam provocar.
Depois compenetrou-se de que, em vez de liquidar os prisioneiros, era mais útil escravizá-los para gozar de seu trabalho. (SÜSSEKIND; MARANHÃO; VIANA; TEIXEIRA, p. 2000, p. 29)
Seguindo a lição de AMAURI MASCARO NASCIMENTO (1997, p. 41), um segundo momento de destaque no histórico do trabalho seria a servidão, que, de acordo com seu entendimento, não apresentou diferenças significativas em relação à escravidão:
...embora recebendo certa proteção militar e política prestada pelo senhor feudal dono das terras, os trabalhadores também não tinham uma condição livre. [...] Camponeses presos às glebas que cultivavam, pesava-lhes a obrigação de entregar parte da produção rural como preço pela fixação na terra e pela defesa que recebiam.
Bem retratada a servidão nas palavras de HENRI PIRENNE (1982, p. 72):
Seja qual for o ponto de vista que se adote, pode-se dizer que a Europa Ocidental, desde o século IX, oferece o aspecto de uma sociedade essencialmente rural e na qual o intercámbio e a circulação das utilidades se restringiram ao grau mais baixo a que podiam atingir. A classe mercantil desapareceu nas referidas sociedades. Determina-se, agora, a condição dos homens, por suas relações com a terra. Uma minoria de proprietários eclesiásticos ou leigos detém a propriedade; abaixo deles, uma multidão de rendeiros está disseminada pelos limites do domínio. Quem possui terra, possui, ao mesmo tempo, liberdade e poder; por isso, o proprietário é simultaneamente senhor; quem dela está privado, fica reduzido à servidão: assim, a palavra vilão designa, do mesmo modo, o camponês de um domínio e o servo.
Ainda na linha das lições do professor AMAURI MASCARO DO NASCIMENTO (1997, p. 41), seguiu-se à servidão o período das corporações de ofício, onde, apesar de haver mais liberdade ao trabalhador, este continuou subordinado aos interesses daquelas.
Conta HENRI PIRENNE (1982, p. 181) que as corporações surgiram em decorrência de uma conjugação de interesses tanto dos produtores quanto dos poderes públicos. Estes fiscalizam os aqueles, e lhes concedia certos privilégios protecionistas e monopolistas. De outro lado, também regulamentavam os produtos, buscando qualidade entre outras coisas. Dentro das corporações, os artesãos eram distribuídos em três categorias: os mestres, os aprendizes e os companheiros. Os primeiros eram os donos dos meios de produção e chefes dos outros dois tipos de artesãos (PIRENNE, 1982, p. 185-186).
Antes da Revolução Industrial, AMAURI MASCARO NASCIMENTO (1997, p. 42) ainda menciona as figuras da locação de serviços e da locação de obra ou empreitada, e aponta aquela como sendo a precursora da atual relação de emprego.
Com o advento da Industrialização, modificou-se o quadro das relações sociais sob o aspecto da forma de produção.
Substitui-se o "trabalho escravo, servil e corporativo" pelo "trabalho assalariado e em larga escala" (NASCIMENTO, 1997, p. 42-43).
O que deve ser notado na perspectiva história, e que vai interessar a este estudo, é apenas um conjunto de características existentes na relação de trabalho: a diferença de forças entre os pólos da relação e, por conseguinte, a subordinação; e a necessidade da formação da relação.
Diz-se necessidade porque o homem precisa buscar seu sustento. Ao deixar seu estado de natureza, onde caçava, pescava e plantava, continua precisando destes bens, mas agora o adquire por meio da moeda, a qual está em poder de seus semelhantes.
Tendo em vista que o Estado veda a obtenção dos bens necessários mediante a força, somente por meio dos meios lícitos pode continuar vivendo sem sofrer sanção.
A forma lícita que o homem encontra normalmente é a de se submeter a outrem mediante certa remuneração.
2.2.1 O PAPEL DA MOEDA
Diversos fatores têm influência sobre o que os homens produzem para sobreviver. Cite-se, por exemplo, o clima, suas habilidades físicas, a qualidade do solo, espécies de animais que há em determinado local.
Percebe o homem que, por vezes, consegue até mesmo produzir mais do que necessita em relação a determinado produto, ao passo que, no que diz respeito a outros produtos, não consegue adquiri-los.
Caso necessite destes, terá que obtê-los de outros homens que, eventualmente, podem estar precisando justamente dos produtos que ele tem em excesso, o que enseja operações de troca.
Historicamente, esta troca ocorria quando havia acordo, pois caso contrário, o mais forte poderia simplesmente tomar o que necessitava do mais fraco.
Seguindo as lições de JOSé PASCHOAL ROSSETTI (1984, p. 173), essa primeira fase da circulação da produção, efetuada mediante "troca direta em espécie", chama-se "escambo".
Com o decorrer da história, a intensificação das trocas depara-se com o inconveniente de que sua implementação só se dava quando existiam "necessidades coincidentemente inversas" (ROSSETTI, 1984, p.173).
Como solução para este impasse, foram eleitas certas mercadorias para servirem como meios de troca e de medidas. Foi a fase da chamada "mercadoria-moeda", que, embora representassem uma evolução em relação ao escambo, ainda apresentavam certas deficiências como perecimento, dificuldade de transporte e depreciação (ROSSETTI, 1984, p.179).
Escolheu-se o metal para solucionar essas inconveniências, iniciando uma fase que se chama "metalismo" (ROSSETTI, 1984, p. 179). Por sua vez, com a expansão das trocas, constatou-se o risco e a dificuldade que havia no transporte de moedas metálicas.
Isso ensejou a criação da "moeda-papel" juntamente com o sistema bancário.
E nesse ciclo de impasses e evoluções, passando-se pelo sistema do "papel-moeda" ou "moeda fiduciária" (ROSSETTI, 1984, p. 182) para a "moeda escritural" (ROSSETTI, 1984, p. 187) e se chegou aos dias de hoje, onde se pode cogitar o surgimento da moeda virtual, que consistiria nos registros eletrônicos dos créditos dos depositantes nas instituições financeiras.
Por fim, o economista destaca três funções necessárias a serem satisfeitas pela moeda: "1. Instrumento de trocas; 2. Instrumento para a denominação comum de valores; e 3. Instrumento para reserva de valores" (ROSSETI, 1984, p. 189).
Esse apanhado histórico serve apenas para demonstrar que a moeda deixou de ser simplesmente um meio ou instrumento utilizado nas trocas para aquisição dos produtos necessários, para se tornar fim no processo produtivo.
As pessoas não trabalham para viver. Trabalham para ganhar dinheiro.
Isso porque, "podendo comprar tudo com dinheiro", não se persegue o "tudo", mas tão-somente o "dinheiro". Este serve não apenas às necessidades básicas e "verdadeiras", mas também àquelas "artificiais" incutidas nas cabeças dos homens pelos seus semelhantes.
Pode-se dizer que, sob determinado aspecto, o homem continua com suas necessidades vitais inalteradas com o decorrer da evolução: ainda precisa de recursos mínimos como comida, água e proteção contra as forças que interagem com seu corpo (calor, frio, infecções).
Para o atendimento destas necessidades, antes havia um contato direto entre o homem e a natureza. Agora há um intermediário, o dinheiro, que, embora necessário a todos, não está distribuído igualitariamente.
Embora se alegue o mérito de quem tem muito, não parece razoável afirmar ser justo alguém não ter nada, e morrer por isso.
E o Estado, que surge para corrigir esse distúrbio (em tese), entre outros, também se torna um obstáculo quando não é eficiente para tanto. Isso porque proíbe a autotutela, mas não exerce suficientemente a tutela.
Contudo, a igualdade, pelo menos no ordenamento jurídico brasileiro, continua sendo um ideal a ser perseguido, consoante se infere do preámbulo da Constituição da República, verbis:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.
Enquanto esse ideal não se concretiza, quem detém o dinheiro, detém o poder.
E quem detém o poder, utiliza a força de quem não tem para obter cada vez mais.
Mesmo quem tem mais, teme perder tudo. E teme porque sabe que, quando não tiver nada, ninguém se importará com isso, assim como ele próprio não se importa com seu semelhante.
Aqueles que não tem nada poderiam exercer o trabalho para si e negociá-lo no mercado. Porém, isso no mais das vezes exige não apenas criatividade, como também dinheiro.
Assim, a mão-de-obra disponível no mercado não precisa pensar nem ter dinheiro. Ela se vende aos donos dos meios de produção, e tentam obter em troca pelo menos um mínimo para continuar vivendo.
2.3 DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO TRABALHADOR
Decorre do que foi exposto acima o imperativo da proteção ao trabalhador, que se constitui em verdadeiro princípio do direito do trabalho. Isso não significa, de forma alguma, uma ofensa ao princípio da igualdade insculpido no caput do art. 5.º da Constituição da República, verbis:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...
Muito pelo contrário, consiste exatamente na sua observação, na medida em que, dentro de uma concepção clara de que o empregador é substancialmente mais forte do que o empregado, o princípio da proteção reconhece a fraqueza deste e procura equilibrar a relação, pelo menos, juridicamente.
A propósito do princípio em tela, preleciona ARNALDO SÜSSEKIND (2000, p. 148-149):
O princípio da proteção do trabalhador resulta das normas imperativas, e, portanto, de ordem pública, que caracterizam a intervenção básica do Estado nas relações de trabalho, visando a opor obstáculos à autonomia da vontade. Essas regras cogentes formam a base do contrato de trabalho - uma linha divisória entre a vontade do Estado, manifestada pelos poderes competentes, e a dos contratantes. Estes podem complementar ou suplementar o mínimo de proteção legal. Daí decorre o princípio da irrenunciabilidade, que vem sendo afetado pela tese da flexibilização, mas que não se confunde com a transação, quando há res dubia ou res litigiosa no momento ou após a cessação do contrato de trabalho.
Com efeito, se não fosse assegurado, de forma imperativa, um mínimo de direitos ao trabalhador, este ficaria obrigado a se sujeitar a condições sub-humanas na contratação.
Diante de um cenário onde a oferta de mão-de-obra se mostra muito além da demanda, o preço daquela tende a ser reduzido.
Num primeiro momento pode ser alegado que os trabalhadores não estariam obrigados a aceitar as condições impostas pelo empregador.
Porém, neste caso, não seriam contratados e, em certo momento, diante da necessidade de trabalhar para adquirir dinheiro, alguns iriam acabar se submetendo. Isso sem contar a hipótese de percorrer o caminho do ilícito...
2.3.1 DA IRRENUNCIABILIDADE
Diante do quadro apresentado acima, foi necessário criar mecanismos que impedissem a livre negociação, ou que a limitassem com a imposição de um mínimo a ser obedecido.
Nesta linha, dispõe o art. 9.º da CLT, in verbis:
Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados como objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
Esse dispositivo evidencia a preocupação em resguardar o empregado, pois, se lhe fosse possível dispor de seus direitos, estes lhe seriam arrancados na negociação.
VALENTIN CARRION (2000, p. 65), acerca deste dispositivo, comenta que os "direitos trabalhistas, inclusive o de pleitear o cumprimento do que dispõe a lei, são irrenunciáveis na vigência do contrato de trabalho [...]".
Desde a contratação, o Estado procurou garantir a observáncia de um mínimo de condições preestabelecidas, consoante art. 444 da CLT, verbis:
Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Mesmo durante a vigência do contrato, quaisquer alterações só serão lícitas se não prejudicarem o empregado, a teor do art. 468 da CLT, verbis:
Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
Assim, a irrenunciabilidade de direitos, corolário do princípio da proteção, chega a ser identificado como princípio também, o qual, sob última análise, busca garantir a própria dignidade da pessoa humana.
é justamente essa peculiaridade desses direitos que faz gerar certos impasses quanto à possibilidade de utilização da transação em dissídios individuais do trabalho.
2.4 DA RELAÇÃO DE EMPREGO
Antes de prosseguir, cumpre restringir o ámbito de análise deste trabalho.
Não se estudará toda e qualquer relação de trabalho, mas tão-somente uma espécie, consistente na relação de emprego.
Depreende-se o conceito de relação de emprego da conjugação do art. 2.º e do art. 3.º da CLT, verbis:
Art. 2.º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços.
§ 1.º Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.
[...]
Art. 3.º Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza ao eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
JOÃO CARLOS DA SILVA aponta a subordinação como elemento que distingue o gênero relação de trabalho da espécie relação de emprego (2000, p. 103).
AMAURI MASCARO NASCIMENTO define empregado como "a pessoa física que presta pessoalmente a outrem serviços não eventuais, subordinados e assalariados" (1997, p. 154).
Como se vê, a relação de emprego é a institucionalização do trabalho para outrem abordado no tópico 2.2.
3.1 DO PROBLEMA DA CONCESSÃO
Consoante abordagem feita no tópico 1, a transação consiste em reciprocidade de concessões e, ordinariamente, envolve renúncia.
De outro lado, de acordo com o tópico 2, a maior parte dos direitos do empregado são irrenunciáveis.
Chega-se, assim, a questão principal deste trabalho: se a transação pode ser aplicada quando esteja em questão direitos do empregado.
Dogmaticamente, pode-se afirmar com segurança que a transação será aplicável se não implicar renúncia de direitos do empregado e, se implicar, somente será válida se não forem ofendidos os dispositivos cogentes do direito do trabalho, em especial o art. 9.º, art. 444 e art. 468 da CLT.
ARNALDO SÜSSEKIND (2000, p. 214) parece compartilhar deste entendimento:
Daí por que será nulo o ato que tiver por fim obstar a aplicação de direito cogente (art.s 9.º e 444 da CLT) ou do qual resultar alteração das condições pactuadas no campo do direito dispositivo, quando a modificação contratual implicar prejuízo direto ou indireto para o trabalhador (art. 468), salvo nos casos expressamente previstos pela própria lei trabalhista;
Os demais requisitos de validade da transação são os dos negócios jurídicos em geral. Mas não é necessário que sejam analisados, uma vez que, se nem mesmo uma transação perfeita pode ser aplicada em relação a direitos indisponíveis, com muito mais razão a imperfeita.
Fato interessante apontado por ARNALDO SÜSSEKIND (2000, p. 218) consiste em que mesmo os direitos disponíveis do empregado encontram um óbice para sua renúncia, principalmente quando efetuada durante a vigência do contrato de trabalho. Isso porque, segundo ele, neste período a vontade do empregado é restringida pelo fator subordinação:
colocando-se o empregado, na quase totalidade dos casos, num estado de absoluta dependência econômica em relação ao empregador - inócua seria a proteção ao trabalho se se desse validade à renúncia ocorrida durante a execução do contrato de trabalho, seja pertinente a direito adquirido, seja alusiva a direito futuro. Se o direito resulta de norma de ordem pública, sua aplicação "não pode ceder ao arbítrio das partes", pois, se assim fosse, a função do Direito do Trabalho "seria totalmente estéril".
Se nasceu da livre manifestação de vontade dos contratantes, deve ser presumido o vício de consentimento do empregado, sempre que não possui legítimo interesse no resultado do ato pelo qual abre mão do direito ajustado.
Após a cessação do contrato, todavia, afirma que "a faculdade de renunciar amplia-se consideravelmente", mas continua restrita a direitos renunciáveis (SÜSSEKIND, 2000, p. 218).
GEOVANY JEVEAUX, MARCOS PINTO DA CRUZ e RICARDO AREOSA (2002, p. 24) apontam também essa presunção:
Por força da irrenunciabilidade, própria do direito do trabalho, qualquer ato de disposição praticado pelo empregado é presumido viciado na origem, caso em que o ato revela-se ineficaz para o empregado, salvo se houver em troca evidente benefício proporcional à renúncia.
Com base nisso, também mencionam a diferença entre a renúncia feita no durante e após a cessação do contrato de trabalho (2002, p. 27):
Durante a vigência do contrato de trabalho, a situação economicamente inferior do empregado faz presumir que qualquer ato de disposição lhe foi impingido ilicitamente pelo empregador. Agora, após o final de vigência do contrato, costuma-se admitir a renúncia, nos casos acima relatados.
Porém, admitem que o princípio da irrenunciabilidade não é absoluto, embora sejam raras hipóteses em que sejam permitidos atos de disposição por parte do empregado (2002, p. 24).
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