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Princípio da Separação dos Poderes (página 2)

Emerson Garcia
Partes: 1, 2, 3


 

No sentido orgânico, a separação dos poderes é analisada sob a perspectiva dos distintos órgãos que exercerão as funções estatais, sendo normalmente referidas as separações horizontal e vertical.

Fala-se em separação horizontal por estarem os diferentes órgãos em posição de igualdade, não sendo divisada qualquer hierarquia ou absorção, somente sendo possível uma relação de dependência entre eles nas hipóteses indicadas na ordem constitucional, o que tem por objetivo estabelecer condicionamentos recíprocos de modo a preservar o equilíbrio institucional e a obstar o surgimento do arbítrio. No sistema brasileiro, os órgãos recebem a denominação de Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, o que, como veremos, prestigia a clássica divisão de Montesquieu, sendo esta a nomenclatura que utilizaremos no decorrer da exposição.

Ainda sob a ótica horizontal, também seria possível falar, ao menos teoricamente, em separação "flexível" (v.g.: o modelo parlamentar europeu) e em separação "rígida" (v.g.: o modelo presidencial americano), o que, respectivamente, corresponderia ou não à capacidade de destruição recíproca do Legislativo e do Governo: com a dissolução da Assembléia ou a censura do Governo. Esse modelo, evidentemente, apresenta inúmeras nuances quando transposto para a realidade, o que inviabiliza a formação de arquétipos rígidos a seu respeito. De qualquer modo, é inegável que o princípio da separação dos poderes apresentará contornos que variarão conforme os sistemas de organização do poder político: sistemas parlamentar, presidencial e a variante do semi-presidencialismo, que tenderá a se aproximar de um ou outro.

Na linha de evolução do sistema da separação dos poderes, a tradicional confrontação entre Executivo e Legislativo pouco a pouco se apaga e cede lugar às tensões infra-institucionais entre maioria e oposição. Com isto, o dualismo Executivo-Legislativo é substituído por realidades estruturadas em "bloco de governo" e em "bloco de oposição", o que importa no deslocamento do foco de análise do plano institucional para o plano partidário. As inter-relações passam a ser regidas por interesses político-partidários, ensejando a inevitável cisão da unidade institucional e o conseqüente aparecimento de estruturas paralelas, quiçá contrapostas, que influem diretamente nas relações de poder.

Sob a ótica vertical, a separação dos poderes pode ser concebida em duas vertentes: a) nas relações mantidas entre o Estado e os particulares, identificando o alcance do poder de regulação estatal e a esfera remanescente aos particulares; e b) na divisão de competências entre distintas unidades territoriais de poder, o que está associado à forma de Estado adotada (unitário ou federal), sendo múltiplas as vertentes que pode assumir.

A separação de poderes entre o Estado e os particulares ou, melhor dizendo, a repartição e a conseqüente limitação das esferas de atuação, pressupõe o exercício do poder de regulação do Estado, o que definirá a esfera e o respectivo alcance da atividade estatal, bem como a margem de liberdade deixada ao particular. Se o particular não exerce propriamente um "poder", é inegável a sua aptidão para adotar determinados comportamentos passíveis de alterar a realidade fenomênica. Concebida essa esfera de atuação como um todo unitário, é possível que o Estado delimite, ante a natureza da atividade ou por mera opção política, uma área de atuação exclusiva, concorrente ou mesmo subsidiária. Essa esfera, como afirma Zippelius, variará conforme se prestigie uma maior margem de regulação ou uma maior autonomia individual, o que, utilizando-se os princípios da proporcionalidade e da proibição de excesso, deve ser sopesado à luz dos direitos fundamentais. A exemplo das restrições à esfera individual, também as prestações do Estado, como afirma Zippelius, devem ser reservadas às situações "em que a auto-regulação e a auto-sustentação, privada ou corporativa, não funcionam tão bem ou melhor", o que indica a subsidiariedade dessa intervenção.

No Estado unitário, tanto pode ser divisada a concentração dos poderes numa unidade central abrangente de todo o território, como podem existir descentralizações. São espécies desse gênero: a) o Estado regional, em que a Constituição assegura uma real autonomia normativa às coletividades regionais (v.g.: Espanha e Itália), o que em muito o aproxima do Estado Federal; e b) o Estado descentralizado, no qual, em menor medida, são distribuídas determinadas competências a unidades territoriais menores. No Estado composto, ao revés, coexistem múltiplas esferas de poder.

No Estado federal - que pode ser perfeito (também denominado de funcional ou por associação) ou imperfeito (por dissociação), conforme resulte da união de Estados soberanos (v.g.: o modelo americano) ou da divisão de um Estado unitário em parcelas menores, que continuam unidas ao todo mas que passam a exercer determinados poderes políticos (v.g.: os modelos brasileiro, belga e austríaco) – os poderes são exercidos, consoante a disciplina traçada na Constituição, pela Federação e pelos Estados. Os poderes outorgados às unidades federadas tanto podem alcançar as distintas funções estatais (legislativa, executiva e judiciária) como restringir-se a algumas delas (v.g.: os Länder na Áustria e os Municípios no Brasil, unidades federadas que somente possuem os Poderes Executivo e Legislativo).

E ainda, como ressalta Zippelius, o estudo da separação e do equilíbrio entre os poderes, longe de manter-se adstrito ao modelo de organização estatal, também avança em direção a múltiplos domínios, o que, a nível interno do Estado, importa na tentativa de manter o equilíbrio entre as forças sociais – em especial o poder das associações e dos meios de comunicação de massa – e, a nível internacional, na prevenção contra hegemonias. Mostra-se igualmente relevante, em especial no Continente Europeu, uma classificação que sistematize o exercício de competências derivadas da Constituição por instituições ou organizações internacionais.

O princípio da separação dos poderes, como se constata, tem dimensões amplas. Por essa razão, delimitaremos o plano de estudo ao papel desempenhado pelo Judiciário na concreção dos denominados direitos sociais, o que costuma ensejar discussões sobre a possível tensão com a separação dos poderes. As conhecidas dimensões ou gerações de direitos fundamentais podem ser reduzidas, quanto à postura a ser assumida pelo Estado, em duas categorias. A primeira assume uma feição negativa, limitando ou mesmo vedando a atuação do Estado numa esfera jurídica assegurada ao indivíduo. A segunda categoria, por sua vez, costuma refletir um aspecto positivo, exigindo a atuação do Estado para que os direitos possam transpor o plano ideológico-normativo e alcançar a realidade.

Essa classificação, é importante observar, não pode ser exatamente superposta às diferentes gerações de direitos fundamentais, sendo plenamente factível a necessidade de um atuar positivo do Estado para a garantia das liberdades individuais (v.g.: na manutenção de estruturas jurisdicionais que façam cessar qualquer restrição ilícita à liberdade) ou mesmo uma abstenção para o regular exercício dos direitos sociais (v.g.: na garantia do direito de greve). No entanto, é indiscutível que a preservação das liberdades individuais exige um comportamento essencialmente negativo, enquanto que, em relação aos direitos sociais, a preeminência é do atuar positivo. É justamente a essa última vertente que direcionaremos nossa analise.

Na perspectiva de estudo adotada, o Poder Judiciário é contextualizado numa forma de governo democrática, estruturada a partir das relações políticas mantidas entre governantes e governados, do que resulta um lineamento político-constitucional essencialmente distinto daquele que receberia em outros regimes (v.g.: num governo despótico).

A identificação dos limites e das potencialidades do Poder Judiciário na concreção dos direitos sociais deve ser impregnada de uma visão prospectiva, distanciando-se dos dogmas sedimentados pelas clássicas teorias de Locke e de Montesquieu, desenvolvidas sob a égide do liberalismo clássico, na medida do necessário à compreensão das relações institucionais travadas num Estado Social. À delimitação material da esfera de atuação judicial contribui a distinção entre atos administrativos e atos de governo e, sob o prisma da legitimação democrática, assume especial importância o papel desempenhado pela ordem constitucional. Além disso, o referencial desloca-se da potestate e alcança a pessoa, epicentro do Estado Social e Democrático de Direito, com o que se almeja demonstrar a necessidade de serem redimensionadas concepções sedimentadas em momento histórico diverso.

2. A Constituição como Elemento Polarizador da Separação dos Poderes

A denominada constituição moderna, isto para utilizarmos a expressão de Gomes Canotilho, é caracterizada como um documento escrito, que traça a ordenação sistêmica e racional da comunidade política, assegurando um conjunto de direitos fundamentais e estabelecendo diretrizes e limites ao exercício do poder político.

Face à sua estrita correlação com o poder político, a Constituição não pode ser vista e analisada como um corpo asséptico, distante e indiferente às estruturas ideológicas presentes na ordem social. O poder político reflete as ideologias existentes e a Constituição o limita e direciona, o que enseja uma interpenetração entre as diferentes ordens. Assim, é inevitável a influência dos influxos ideológicos na ordem constitucional, o que permitiria falar, segundo Howard, em constituições socialistas, refletindo os princípios marxistas-leninistas; em constituições liberais, que realçam as teorias individualistas; e em constituições mistas, nas quais a interseção de direitos positivos e negativos é mais acentuada.

Em sociedades pluralistas, locus adequado ao pleno desenvolvimento da democracia, a Constituição tende a refletir, consoante a aceitabilidade de cada qual, as convergências e as divergências existentes entre as distintas forças políticas e sociais: daí se falar em Constituição compromissória, produto do "pacto" estabelecido entre referidas forças.

Além de presentes em sua formação, as diferentes ideologias sociais também se refletirão na interpretação da Constituição, pois, tendo ela uma estrutura que congrega normas de natureza preceitual e principiológica, os valores sociais que corporificam o conteúdo de seus princípios e direcionam a aplicação de suas regras lhe conferem uma textura eminentemente aberta, possibilitando uma contínua adequação às forças políticas e sociais.

Por ser inevitável a influência de inúmeras variantes ideológicas em sua formação e interpretação, deve a Constituição, sem prejuízo de sua unidade sistêmica, ser aplicada de modo a potencializar suas normas e a alcançar os distintos fins visados. Relegando a plano secundário as diferentes "individualidades" que compõem o figurino constitucional, correr-se-á o risco de prestigiar determinados valores em detrimento de outros dotados de igual legitimidade. Interpretar os direitos sociais à luz do pensamento liberal oitocentista poderá gerar iniqüidades somente comparáveis à tentativa de preservação das liberdades individuais a partir da ideologia marxista-leninista.

Não se sustenta, é evidente, o isolamento das normas constitucionais em compartimentos estanques, destituídos de qualquer influência recíproca. Fosse assim, não se poderia falar em unidade ou mesmo em ordem constitucional. O que se afirma, em verdade, é que a interpretação da norma constitucional exige sejam devidamente sopesados os influxos ideológicos nela diretamente refletidos e, somente num segundo momento, deve ser a norma compatibilizada com os demais influxos recepcionados pela Constituição. Com isto, preserva-se a essência da Constituição compromissória, evitando que o pluralismo de forças termine por ser desvirtuado e anulado, bem como assegura-se a manutenção da harmonia entre elas, prestigiando as opções fundamentais do Constituinte e o princípio da unidade constitucional.

Especificamente em relação à preservação do interesse social, pode-se dizer, de forma simplista, que a interpretação de suas potencialidades deve ser devidamente compatibilizada com os influxos liberais igualmente prestigiados pela ordem constitucional. Ainda que à propriedade seja assegurada uma função social, não pode o seu titular, sem qualquer compensação, ser dela integralmente privado; sendo prevista a prisão unicamente como sanção, não como meio de coerção processual, não se pode restringir a liberdade de um indivíduo para compeli-lo à prática de determinado ato de interesse coletivo; etc.

A interpretação do princípio da separação dos poderes, como não poderia deixar de ser, não configura exceção à proposição já enunciada. Se é certo que a preservação das liberdades individuais, em linhas gerais, pressupõe uma atitude abstencionista do Poder Público, o que direciona a atuação dos órgãos jurisdicionais a essa ótica de análise, não menos certo é que os direitos sociais normalmente pressupõem um atuar positivo, o que, em sendo necessário, exigirá uma atuação diferenciada dos referidos órgãos. O que se mostra inconcebível é transpor parâmetros de tutela e paradigmas de convivência institucional essencialmente voltados à preservação da liberdade para um campo em que se mostra essencial um facere estatal.

Cabe à ordem constitucional, a partir dos diferentes influxos ideológicos que, explícita ou implicitamente, nela se materializaram, atuar como elemento polarizador do princípio da separação dos poderes. A contemplação de um extenso rol de direitos econômicos, sociais e culturais ou mesmo a exigência de preservação da dignidade da pessoa humana, o que pressupõe o fornecimento de um rol mínimo de prestações, indica uma opção ideológica que deve ser prestigiada na interpretação dessas normas constitucionais, tendo influência direta em princípios reitores do sistema, como o da separação dos poderes.

A fórmula Estado Social e Democrático de Direito indica claramente a imperativa observância de determinados padrões de conduta, quer sejam omissivos, quer sejam comissivos, daí se falar em Estado de Direito; a necessária participação popular no exercício do poder político, com a conseqüente aceitação das normas dela derivadas, o que justifica o designativo Estado Democrático; e, the last but not the least, a integração dos órgãos de poder com o objetivo de assegurar o progresso social e uma existência digna, tendo em vista a consecução do bem-comum, perspectiva que delineia os contornos do Estado Social.

A sindicação dos atos e das omissões da Administração assumirá uma perspectiva diferente daquela formada por influência do liberalismo, cujo objetivo principal era obstar o avanço sobre esferas resguardadas ao indivíduo. Em se tratando de direitos sociais, a Administração deve penetrar em determinadas áreas essenciais ao indivíduo e realizar as prestações necessárias à sua concretização, o que exigirá uma ótica de análise distinta, essencialmente voltada à aferição das omissões administrativas. Essa constatação permite concluir que as inter-relações mantidas entre os Poderes Executivo e Judiciário não devem ser concebidas numa linearidade indiferente aos influxos ideológicos que exijam um facere ou um non facere estatal. Com isso, será possível descortinar, na própria Constituição, a legitimidade do Poder Judiciário na aferição de comportamentos aparentemente envoltos no outrora inexpugnável manto da discricionariedade administrativa.

3. Atos administrativos e Atos de Governo

Sustentando-se a possibilidade de sindicação das omissões da Administração na implementação dos direitos prestacionais, torna-se necessário delimitar, com a maior exatidão possível, a esfera reservada ao exercício do poder político, seara caracterizada pela liberdade valorativa e, em regra, de reduzida sindicabilidade. Relegando esse imperativo a plano secundário ou não sendo ele executado a contento, será inevitável o choque entre concepções que, não obstante derivadas do Direito, recebem seus influxos de modo nitidamente variável: é essa a tensão que se manifesta entre órgãos jurisdicionais e órgãos políticos ao interpretarem a norma. Como lembra Guettier, é justamente a singularidade dessa situação que explica uma atitude de reserva dos juízes ao definirem a extensão de seu controle sobre atos emanados de órgãos políticos.

Os atos políticos, na concepção aqui tratada, são atos de conteúdo não-normativo da função política, regidos pela Constituição e que só podem ser corretamente entendidos na perspectiva do sistema de governo e das relações entre os seus respectivos órgãos. São instrumentos pelos quais se explicam as funções de direção, de governo e de controle do Estado, do que são exemplos a declaração de guerra e a convocação do Parlamento.

A delimitação do controle a ser exercido pelos juízes pressupõe a compreensão da dicotomia entre atos de governo e atos administrativos: os primeiros, como manifestação do poder político, sofreriam um controle restrito; os segundos, por derivarem de uma atividade essencialmente circunscrita aos contornos da legalidade, em regra, estariam sujeitos a um controle amplo – a exceção, por sua vez, derivaria da margem de liberdade inerente à noção de poder discricionário, o que enseja, igualmente, um controle restrito.

Os atos de governo, face à sua própria natureza, estarão sujeitos, em maior intensidade, a um controle de ordem política, a ser realizado pelo Parlamento (v.g.: com o mecanismo do impeachment), pelo povo (v.g.: por ocasião das eleições) ou mesmo por órgãos com competência nitidamente jurisdicional. Na França, as nomeações para cargos civis e militares do Estado - previstas no art. 13, no 2, da Constituição como de competência do Presidente da República, com a aquiescência do Primeiro Ministro –, outrora puramente discricionárias, pois dotadas de um acentuado cunho político, têm sido objeto de controle pelo Conselho de Estado sob a ótica do "erreur manifeste d’appréciation". Nesses casos, verifica-se a própria adequação das aptidões do indivíduo ao posto a ser ocupado ou à tarefa a ser cumprida.

Guettier, após ressaltar o perigo de se deixar que atos fundados em "raison d’État" escapem a qualquer controle, lembra que a jurisprudência administrativa francesa tem evoluído no sentido de restringir, progressivamente, o domínio dos atos de governo. De qualquer modo, a impossibilidade de sindicação ainda é prestigiada no quadro das relações entre o Executivo e os demais poderes e nas relações internacionais. Consoante a jurisprudência do Conselho de Estado, à luz da Constituição francesa, são exemplos de atos insindicáveis: a nomeação do Primeiro Ministro (art. 8, al. 1er), a submissão de projetos de lei a referendo (art. 11), o decreto de dissolução da Assembléia Nacional (art. 12), as mensagens presidenciais ao Parlamento (art. 18), a nomeação de três membros do Conselho Constitucional, assim como do Presidente, e a provocação do Conselho (arts. 54, 56 e 61).

A liberdade característica dos atos de governo, por estar inserida num sistema unitário e teleologicamente voltado à consecução do bem comum, recebe temperamentos da ordem constitucional, que limita e condiciona o seu exercício. Nesse particular, merecem especial realce as normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias, que surgem como parâmetros de controle do poder discricionário da Administração, com a conseqüente invalidade dos atos que deles destoem. O espectro de liberdade, ademais, sofre sensíveis alterações, que variarão consoante o grau de densidade das normas de patamar superior nas quais se assente o ato. É inequívoco que uma norma constitucional meramente programática (v.g.: o Estado zelará pelo bem-estar das crianças) deixa uma ampla liberdade de conformação ao Legislativo e ao Executivo. Em razão inversa, nos parece igualmente inequívoco que a previsão constitucional de atuação prioritária em determinada área (v.g.: na proteção das crianças), acrescida de uma disciplina infraconstitucional definidora das medidas a serem adotadas (v.g.: prestação do ensino), em muito reduz a margem de liberdade do Executivo.

Ainda que a Constituição e o legislador infraconstitucional, como é normal, disponham sobre inúmeras outras atribuições correlatas do Executivo, sem definir o momento em que cada uma delas deva ser implementada, não se mostra ampla e irrestrita a sua liberdade de "opção política". Com efeito, a ausência de um indicador temporal específico pode ser substituída, com vantagem, pela imposição de tratamento prioritário à matéria, o que conferirá um caráter residual à referida liberdade, que somente ressurgirá, em relação às atribuições correlatas, após o atendimento daquela considerada prioritária. Inexistindo previsão como essa, os contornos da liberdade se tornarão mais fluidos, porém, não fluidos o suficiente a ponto de inviabilizar todo e qualquer controle.

Em qualquer Estado democrático, é o indivíduo que ocupa o epicentro da ordem jurídica, erigindo-se como razão de ser e fim último de toda e qualquer atividade estatal. Esse status, normalmente indicado com o imperativo respeito à dignidade da pessoa humana ou com a previsão constitucional de um extenso rol de direitos, bem demonstra que qualquer ato político deve ser praticado de modo a não macular o seu conteúdo mínimo.

Ao sopesar os distintos atos materiais passíveis de serem praticados, deve o Executivo realizar a análise dos valores envolvidos e identificar aqueles que, à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas, possuam maior peso. Tal operação, que redundará numa opção essencialmente política, em rigor, será insindicável. No entanto, demonstrando-se que valores essenciais à dignidade da pessoa humana foram preteridos por outros de peso nitidamente inferior, a opção se mostrará destoante da Constituição e, ipso iure, inválida (v.g.: não será legítima a opção pela contínua alteração das cores de uma escola em detrimento do pagamento dos professores ou da aquisição de alimentos para os alunos carentes). Não obstante a plasticidade dessa afirmação, é evidente a dificuldade encontrada na exata delimitação daquilo que se deve entender por dignidade da pessoa humana. Apesar disso, serão identificadas com relativa facilidade zonas de certeza positiva e zonas de certeza negativa, indicando, respectivamente, a observância ou a inobservância dos padrões de dignidade. A esfera de liberdade, assim, ficará restrita a uma zona intermédia, impregnada por intenso subjetivismo e insuscetível de controle judicial.

Ultrapassada a esfera de liberdade, não se poderá falar em indébita intromissão do Poder Judiciário em atividade desenvolvida por outro poder. Como observa Cristina Queiroz, "existem conflitos puramente políticos, insuscetíveis de conformação-subsunção normativa e, por outro, conflitos políticos em que apesar de tudo essa conformação é possível, pelo que se encontram sujeitos a um ‘direito judicial de controle’". O princípio da separação dos poderes, como dissemos, é polarizado pela Constituição e pelos valores nela consagrados, possuindo a flexibilidade necessária para assegurar a preeminência da dignidade da pessoa humana.

4. A Legitimidade do Poder Judiciário na Aferição das Omissões Administrativas

Em um primeiro plano, deve-se ressaltar que a ratio do controle exercido pelo Poder Judiciário, longe de buscar a sedimentação de uma superioridade hierárquica no plano institucional ou a frívola ingerência em seara inerente ao Executivo, é a de velar para que o exercício do poder mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Dessa forma, não se identificará um juízo censório ou punitivo à atividade desenvolvida por outro poder, mas, sim, uma relevante aplicação do sistema de "freios e contrapesos", inerente ao regime democrático e cujo desiderato final é garantir o bem-estar da coletividade.

Esse controle, no entanto, provocará uma inevitável tensão entre dois valores indispensáveis ao correto funcionamento do sistema constitucional: o primeiro indica que o poder de decisão numa democracia deve pertencer aos eleitos - cuja responsabilidade pode ser perquirida – e, o segundo, a existência de um meio que permita a supremacia da Constituição mesmo quando maiorias ocasionais, refletidas no Executivo ou no Legislativo, se oponham a ela. Uma forma de harmonizar os dois aspectos dessa dialética é a contemplação dos direitos sociais na própria Constituição, o que, retirando um irrestrito poder de decisão das maiorias democráticas, permite aos juízes decidir se tais direitos devem ser reconhecidos.

É importante observar que o equilíbrio propiciado pela separação dos poderes, de indiscutível importância na salvaguarda dos indivíduos face ao absolutismo dos governantes, também contém os excessos da própria democracia. O absolutismo ou mesmo o paulatino distanciamento das opções políticas fundamentais fixadas pelo Constituinte pode igualmente derivar das maiorias ocasionais, as quais, à mingua de mecanismos eficazes de controle, podem solapar as minorias e comprometer o próprio pluralismo democrático. Por tal razão, não se deve intitular uma decisão judicial de antidemocrática pelo simples fato de ser identificada uma dissonância quanto à postura assumida por aqueles que exercem a representatividade popular. Não se afirma, é certo, que a democracia seja algo estático, indiferente às contínuas mutações sociais. No entanto, ainda que a vontade popular esteja sujeita a contínuas alterações, o que resulta de sua permanente adequação aos influxos sociais, refletindo-se nos agentes que exercem a representatividade popular, ela deve manter-se adstrita aos contornos traçados na Constituição, elemento fundante de toda a organização política e que condiciona o próprio exercício do poder.

Não merece acolhida, inclusive, a tese de uma possível supremacia do Judiciário em relação aos demais poderes. As suas vocações de mantenedor da "paz institucional" e de garantidor da preeminência do sistema jurídico assumem especial importância no Estado Social moderno, no qual aumenta a importância do Estado em relação ao indivíduo, com a correlata dependência deste para com aquele, exigindo do Judiciário o controle dessa relação.

Robert Alexy, embora discorrendo sobre a competência do Tribunal Constitucional, profere lição que em muito contribui para a elucidação da tensão dialética acima enunciada. Segundo ele, "a chave para a resolução é a distinção entre a representação política e a argumentativa do cidadão". Estando ambas submetidas ao princípio fundamental de que todo o poder emana do povo, é necessário compreender "não só o parlamento mas também o tribunal constitucional como representação do povo". Essa representação, no entanto, se manifesta de modo distinto: "o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente", o que permite concluir que este, ao representar o povo, o faz de forma "mais idealística" que aquele. Ao final, realça que o cotidiano parlamentar oculta o perigo de que faltas graves sejam praticadas a partir da excessiva imposição das maiorias, da preeminência das emoções e das manobras do tráfico de influências, o que permite concluir que "um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, senão, em nome do povo, contra seus representantes políticos". A lição do mestre germânico pode ser transposta, sem hesitação, às relações enter o Judiciário e o Executivo, pois também este deve atuar em harmonia com a ordem constitucional, limite incontornável traçado pelo Constituinte, cabendo ao Judiciário assegurar que tal ocorra.

Conferindo-se à Constituição a condição de elemento polarizador das relações entre os poderes, torna-se evidente que os mecanismos de equilíbrio por ela estabelecidos não podem ser intitulados de antidemocráticos. Além disso, a ausência de responsabilidade política dos membros do Poder Judiciário não tem o condão criar um apartheid em relação à vontade popular. Na linha de Bachof, o juiz não é menos órgão do povo que os demais, pois, mais importante que a condição de mandatário do povo é a função desempenhada "em nome do povo", aqui residindo a força legitimante da Constituição. Essa fórmula, aliás, mereceu consagração expressa no art. 202, no 1, da Constituição portuguesa: "os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo".

Com o evolver do Estado Social de Direito, o Poder Judiciário passa por modificações que em muito o distanciam do modelo teórico inicialmente idealizado para a separação dos poderes: zela pela adstrição das funções executiva e legislativa à lei e ao Direito, inclusive com o salvaguarda da supremacia da Constituição em alguns sistemas; é potencializada sua função institucional de apreciar as lesões ou ameaças de lesão aos direitos das pessoas, adotando as providências pertinentes ao caso; e assegura a proteção dos direitos fundamentais, que ultrapassam a vertente essencialmente abstencionista, característica das liberdades individuais, e alcançam os direitos econômicos, sociais e culturais, que pressupõem um atuar positivo por parte do Estado.

Releva observar que o Poder Judiciário, em sua atividade de realização do Direito, a partir da valoração da situação fática e do regramento posto pelo Legislativo, será responsável pela confecção da regra que regerá o caso concreto. Nesse particular, é visível o aperfeiçoamento da doutrina positivista clássica, na qual o comando normativo era exaurido pelo legislador, após sopesar a realidade fenomênica, cabendo ao intérprete, unicamente, a realização de uma operação de subsunção, sendo ínfima a liberdade de conformação, ainda que direcionada ao caso concreto. Atualmente, raras são as vozes que se insurgem contra a imprescindibilidade da atividade do intérprete no papel de agente densificador do conteúdo normativo editado pelo legislador, maxime com a intensificação do uso de princípios jurídicos, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que somente serão passíveis de individualização com a identificação dos valores que lhes são subjacentes.

5. O Regime Jurídico dos Direitos Sociais

O reconhecimento de direitos sociais, como o direito ao trabalho e à ajuda social, ambos centrados na noção de solidariedade social, somente começou a se generalizar nas primeiras Constituições do século XX, do que são exemplos a Constituição mexicana de 1917, a soviética de 1918 e a alemã de 1919. Não obstante as flagrantes limitações de ordem econômica, é verificada a intensificação da intervenção estatal e o alargamento do seu âmbito de incidência a partir da Segunda Guerra Mundial, daí se falar em Estado Providência.

Os direitos sociais, longe de interditarem uma atividade do Estado, a pressupõem. Indicam, em regra, a necessidade de intervenção estatal visando ao fornecimento de certos bens essenciais, que poderiam ser obtidos pelo indivíduo, junto a particulares, caso dispusesse de meios financeiros suficientes e encontrasse uma oferta adequada no mercado. Esses direitos devem ser moldados consoante critérios de subsidiariedade, somente se justificando a prestação estatal no caso de as circunstâncias inviabilizarem a sua obtenção direta pelo beneficiário em potencial.

Segundo Weber, a expressão direitos sociais, que é eminentemente ambígua, permite o seu enquadramento como direitos subjetivos, mandados constitucionais endereçados ao legislador ou princípios diretores, classificação que deve atentar para a essência das normas, não para o designativo que lhes seja arbitrariamente atribuído. Principiando pelos direitos subjetivos, essa classificação indica uma escala nitidamente decrescente em termos de densidade normativa e de potencial exigibilidade.

5.1. Direitos Subjetivos

Os direitos sociais, na medida em que a estrutura normativa o permita, podem assumir o contorno de direitos subjetivos (v.g.: o direito à liberdade de associação sindical, assegurado aos trabalhadores nas Constituições brasileira e portuguesa), gerando obrigações concretas para a sociedade e para o Estado (v.g.: a retribuição do trabalho, sendo vedado o escravismo).

A característica de norma "self-executing" é normalmente reservada aos direitos sociais que impõem obrigações negativas ao Estado, não estando estritamente correlacionados ao dispêndio de recursos públicos para a sua implementação. Quanto aos direitos cuja implementação pressuponha, como conditio sine qua non, a realização de investimentos públicos, sua intensidade e extensão variarão conforme as disponibilidades, assumindo, em regra, a natureza de normas essencialmente programáticas.

Tratando-se de direitos que exijam um atuar positivo, em regra, não costumam ser interpretados como diretamente invocáveis a partir de normas constitucionais, pressupondo, ante o seu acentuado grau de indeterminação, a intermediação do legislador, que fixará suas condições e dimensões, bem como a respectiva fonte de custeio.

Em essência, é esse um dos diferenciais indicados pela doutrina em relação às liberdades fundamentais, para as quais é estabelecido um regime de aplicabilidade direta e de proteção reforçada face ao legislador. No entanto, como veremos, é possível que, à luz das circunstâncias do caso, a densidade normativa dos direitos sociais seja auferida junto ao princípio da dignidade humana, cuja carga axiológica a eles se integrará.

5.2. Mandados Constitucionais Endereçados ao Legislador

Os mandados constitucionais endereçados ao legislador apresentam características essencialmente programáticas e impõem determinados objetivos a serem alcançados. Além disso, a exemplo dos princípios diretores, servem de parâmetro para o controle de constitucionalidade (por ação ou por omissão), prestam um relevante auxílio na interpretação das normas infraconstitucionais, podem obstar o retrocesso social e exigem que todos os atos emanados do Poder Público, de natureza normativa ou não, sejam com eles compatíveis. Por sua própria natureza, atingem domínios potenciais de aplicação que se espraiam por searas não propriamente superpostas a parâmetros indicadores de um conteúdo mínimo de justiça social.

Weber, realizando uma resenha da jurisprudência dos tribunais de alguns países cujas respectivas Constituições consagram os direitos sociais, observa que o Tribunal Constitucional espanhol os interpreta como mandados constitucionais, afastando a sua aplicação imediata, o mesmo ocorrendo com o português, segundo o qual tais normas "prescrevem objetivos constitucionais concretos e definidos e não somente diretrizes vagas e abstratas".

Também o Tribunal Constitucional italiano, apesar de considerar, por exemplo, o direito à saúde como um direito subjetivo (diritto primario e fondamentale), exige a interposição legislativa, que igualmente disciplinará os respectivos aspectos financeiros. Os direitos sociais que exijam uma prestação estatal não podem ser invocados com base direta no texto constitucional, sendo necessária a intermediação do legislador para a definição dos seus contornos essenciais.

Esse entendimento foi preconizado pelo Tribunal Constitucional na Sentença no 455, de 16 de Outubro de 1990, que versava sobre o alcance do direito à saúde previsto no art. 32 da Constituição italiana. Na ocasião, o Tribunal reconheceu o valor constitucional desse direito, sua primariedade e fundamentalidade, bem como a inviolabilidade correlata à sua natureza quando em confronto com outros interesses constitucionais protegidos.

A tutela do direito à saúde, no entanto, "se articula em situações jurídicas subjetivas diversas, dependendo da natureza e do tipo de proteção que o ordenamento constitucional assegura em benefício da integridade e do equilíbrio físico e psíquico da pessoa humana nas relações jurídicas surgidas em concreto".

Com isto, instituiu uma dicotomia na estrutura do direito à saúde, que albergaria: a) um direito de defesa, consagrando uma obrigação erga omnes e assegurando a proteção da integridade físico-psíquica da pessoa contra agressões praticadas por terceiros, direito imediatamente garantido pela Constituição e passível de ser tutelado pelos tribunais; e b) um direito a prestação, que pressupõe a prévia "determinação, por parte do legislador, dos instrumentos, do tempo e do modo em que se efetivará a respectiva prestação".

A atuação do legislador seria necessária para o fim de realizar a ponderação entre os diversos interesses protegidos pela ordem constitucional, identificando os recursos disponíveis no momento da operacionalização desse direito e a quem será atribuída, na sua estrutura organizacional, a responsabilidade de implementá-lo.

Essa posição é criticada por Daniela Bifurco, que visualiza, no percurso argumentativo do Tribunal, conferindo-se exclusividade ao legislador na ponderação dos interesses concorrentes e no dimensionamento dos custos e dos recursos disponíveis, um condicionamento do direito à saúde e, indiretamente, a sua própria negação quando detectada a inércia do legislador. Realça, no entanto, alguns aspectos decisivos da decisão, como a atribuição de uma certa "primazia axiológica" ao direito à saúde ao reconhecer a sua inviolabilidade, daí decorrendo a característica da irretratabilidade, que é típica dos direitos invioláveis e assegura a observância do seu conteúdo mínimo e essencial, consagrando a proibição de retrocesso.

Na França, embora a Constituição de 1958 não contenha um rol de direitos sociais a serem assegurados pelo Estado, o preâmbulo da Carta de 1946, a ela integrado, veicula importantes disposições a respeito da matéria. Consoante a alínea dez, "a Nação assegura ao indivíduo e à família as condições necessárias ao seu desenvolvimento", acrescendo a alínea 11 que "ela assegura a todos, às crianças, às mães e aos trabalhadores idosos, a proteção da saúde, a segurança material, o repouso e o lazer..."

Analisando tais dispositivos em questões afeitas à sua competência, que não alcança a análise de casos concretos, o Conselho Constitucional tem afirmado que incumbe ao legislador e, se for o caso, à autoridade regulamentar, determinar, "em respeito aos princípios constantes dessas disposições, as modalidades concretas de sua execução". E ainda, contextualizando sua análise no âmbito das ajudas sociais, acrescenta que as exigências constitucionais decorrentes dessas disposições implicam na "execução de uma política de solidariedade social em favor da família", sendo deixada ao legislador a liberdade de escolha das modalidades de ajuda que lhe pareçam mais apropriadas.

Associando esses preceitos ao "princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana", decorrente da primeira alínea do preâmbulo, reconheceu o Conselho Constitucional que "a possibilidade de toda pessoa dispor de uma habitação decente é um objetivo de valor constitucional." Embora não esteja expressamente inscrito numa norma constitucional, decorreria dos princípios contemplados no preâmbulo. No entanto, como anotam Favoreau e Philip, um "objetivo de valor constitucional" não pode ser considerado propriamente uma "norma constitucional de pleno valor", podendo ceder mais facilmente quando em colisão com outra necessidade de interesse geral ou com um direito fundamental (v.g.: o direito de propriedade), sendo menos protegido que estes.

O entendimento do Conselho Constitucional, apesar de não adentrar em pretensões específicas que visem à concreção dos direitos sociais, deixa claro que das referidas normas não podem ser deduzidos direitos subjetivos e que a sua integração e especificação competem ao legislador, em clara reverência ao princípio da separação dos poderes. Apesar de veicularem "princípios" ou "valores constitucionais", seu efeito mais concreto seria o de impedir a revogação de normas que consagrem os direitos sociais sem que outras de natureza similar às substituam. A sua integração ao Direito Positivo indica uma exigência constitucional, mas a vagueza dos seus termos impede sejam eles diretamente invocados para alicerçar uma qualquer pretensão perante os órgãos competentes, tendo uma natureza essencialmente programática.

Quanto ao direito à saúde, Favoreau e Philip acenam com uma clara evolução da jurisprudência do Conselho Constitucional: num primeiro momento (decisão de 15 de Janeiro de 1975), invocou o princípio previsto no preâmbulo e o considerou como parte integrante do Direito Positivo; posteriormente (decisão de 18 de Janeiro de 1978), aceitou apenas examinar se uma lei colide com o direito à saúde; e, recentemente (decisão de Janeiro de 1991), reconheceu o direito à proteção da saúde tal qual enunciado no referido Preâmbulo.

Especificamente em relação à concretização dos direitos sociais, em regra, o Conselho de Estado não tem reconhecido nas normas que os contemplam uma densidade normativa suficientemente forte a ponto de serem considerados verdadeiros direitos subjetivos. O Conselho de Estado teve oportunidade de afirmar que o "direito à ajuda social constitui, acima de tudo, uma declaração de princípio", não gerando direitos subjetivos. Por essa razão, não seria conveniente confiar o seu respeito a um organismo de natureza jurisdicional, cujo fim precípuo é o de aplicar as regras jurídicas.

A doutrina, no entanto, acena com a evolução desse entendimento, que importaria, no exemplo mencionado, no reforço do caráter jurídico da ajuda social aos desfavorecidos (passagem da assistência ao efetivo direito à ajuda social), permitindo a tomada de consciência de que os quadros jurídicos tradicionais sofreram uma mudança de natureza. Essa apreensão da realidade, requisito indispensável à integração da norma, seria realizada pelos órgãos jurisdicionais, não importando em qualquer mácula ao princípio da separação dos poderes.

Apesar disso, a extensão indefinida do Estado Providência jamais poderá ser assegurada. Dois fatores contribuem de forma decisiva para essa retração dos direitos prestacionais: a "crise econômica generalizada", que inviabiliza o atendimento de todas as necessidades individuais e a "crise ideológica", sob a forma de dúvidas quanto à solidariedade anônima e à igualdade como finalidade social, o que dificulta a integração da norma pelos órgãos jurisdicionais.

5.3. Princípios Diretores

No que concerne aos princípios diretores, cuja imperatividade decorre de seu caráter normativo, traduzem o "reconhecimento da idéia de solidariedade, de justiça social, de igualdade factual e de complementaridade entre as liberdades individuais e suas condições sociais", veiculando parâmetros essenciais que, como vimos em relação aos mandados constitucionais endereçados ao legislador, devem ser necessariamente observados por todos os órgãos estatais em suas respectivas esferas de atuação.

A maior fluidez que ostentam, que advém de sua estrutura principiológica e da não indicação de uma diretriz específica a ser seguida, lhes confere uma densidade normativa inferior aos mandados constitucionais.

Ainda que, a priori, ostente a forma de princípio diretor ou de mandado endereçado ao legislador, o respeito à dignidade humana pode transmudar-se em direito subjetivo quando, à luz do caso concreto, se mostrarem imprescindíveis determinadas prestações que se encontrem ao abrigo de um quadro axiológico já sedimentado no grupamento. Nesses casos, será possível exigir um facere estatal para atender a um rol mínimo de direitos.

Partes: 1, 2, 3


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