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O Direito à Educação e suas Perspectivas de Efetividade (página 3)

Emerson Garcia
Partes: 1, 2, 3


 

Ante a constatação de que os direitos sociais contemplados no texto constitucional são constantemente vistos como meras exortações, destituídos de toda e qualquer força vinculativa em relação ao Poder Executivo, o art. 208 da Lei nº 8.069/90 assegura, de forma expressa, a sindicação desses direitos junto ao Poder Judiciário, in verbis:

"Art. 208 - Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou oferta irregular:

I - do ensino obrigatório;

II - de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência;

III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;

IV - de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;

V - de programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental;

VI - de serviço de assistência social visando à proteção, à família, à maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao amparo às crianças e adolescentes que dele necessitem;

VII - de acesso às ações e serviços de saúde;

VIII - de escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade.

Parágrafo único - As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses individuais difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela Lei".

Enquanto o Constituinte optou por indicar o mínimo existencial com a utilização do designativo direito subjetivo, o legislador infraconstitucional chegou a resultado similar por meio diverso. Como veremos, somente é possível falar em direito em havendo o correspondente dever jurídico, e somente poderemos falar em dever caso seja detectada a existência de um poder de coerção apto a alcançar o resultado almejado em não sendo ele espontaneamente observado. Assim, ao prever a exigibilidade desses direitos prestacionais e assegurar a imediata sindicabilidade judicial dos direitos mencionados no art. 208, o legislador infraconstitucional reconheceu, implicitamente, a sua essencialidade para um desenvolvimento digno das crianças e dos adolescentes. Afora o ensino fundamental, devem ser adotadas as medidas possíveis à imediata implementação do atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, do atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade (prestação de cunho igualmente assistencial), do ensino noturno regular, adequado às condições do educando, dos programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental e da escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade.

A Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) também reforçou a garantia de acesso ao Poder Judiciário em seu art. 5º, in verbis:

"Art. 5º. O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.

§ 1º. Compete aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração, e com a assistência da União;

I - recensear a população em idade escolar para o ensino fundamental, e os jovens e adultos que a ele não tiveram acesso;

II - fazer-lhes a chamada pública;

III - zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.

§ 2º. Em todas as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o ensino obrigatório, nos termos deste artigo, contemplando em seguida os demais níveis e modalidades de ensino, conforme as prioridades constitucionais e legais.

§ 3º. Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.

§ 4º. Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.

§ 5º. Para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o Poder Público criará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente da escolarização anterior."

Além da proteção integral, o art. 227, caput, da Constituição da República assegurou às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o gozo de inúmeros direitos, dentre os quais o direito à educação. No plano léxico, prioridade indica a "qualidade do que está em primeiro lugar ou do que aparece primeiro; primazia, preferência conferida a alguém relativa ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros; qualidade de uma coisa que é posta em primeiro lugar dentro de uma série ou ordem". Consagrada a prioridade, é praticamente suprimido o âmbito de discricionariedade política do administrador público, já que eliminada a possibilidade de sopesar quaisquer outros direitos com aqueles das crianças e dos adolescentes. A ponderação entre os possíveis valores envolvidos foi realizada, a priori, pelo Constituinte, pouco sendo deixado ao administrador. Tratando-se de direitos que congreguem valores idênticos ou inferiores àqueles consagrados às crianças e aos adolescentes, não haverá qualquer espaço para uma opção distinta daquela que prestigie a absoluta prioridade (v.g.: entre a educação de um adulto e a educação de uma criança, esta haverá de prevalecer; entre a realização de construções de natureza voluptuária e a educação de uma criança, a última, por veicular valores mais importantes à coletividade, deverá igualmente prevalecer). No entanto, em situações extremas, um direito que possua maior peso no caso concreto poderá afastar outro de peso inferior (v.g.: para assegurar o direito à vida, pode ser afastado o direito à educação de uma criança).

Em outra ocasião, tivemos oportunidade de afirmar que os direitos cuja extensão não esteja perfeitamente delimitada, assumindo contornos "abertos" ou "móveis" e, em especial, os princípios jurídicos, facilmente entram em colisão entre si, o que é reflexo da falta de fixação de sua amplitude. Em caso de conflito, um direito deve ceder em prol do outro, ou ambos devem realizar concessões mútuas até que seja encontrada a situação mais justa e consentânea com o ordenamento jurídico no caso concreto. Por não representarem os direitos grandezas quantitativamente mensuráveis, a ponderação, em verdade, é apenas uma imagem que reflete a sua valoração, pois a ausência de um escalonamento hierárquico entre todos os bens e valores impede que as hipóteses de conflito sejam adredemente solucionadas como numa tabela.

A ponderação, no entanto, não deve ser desenvolvida em uma atmosfera de intenso subjetivismo, pois o contrário certamente conduziria ao arbítrio. Segundo Robert Alexy, deve ser ela direcionada por critérios racionais que culminarão em estabelecer uma relação de precedência condicionada, identificando o princípio que possui maior peso em determinada situação a partir da verificação das condições específicas que envolvem essa ponderação. Com isto, se chegará à estruturação da lei de colisão, segundo a qual as condições que conduzem à prevalência de um princípio sobre o outro constituem o pressuposto fático de uma regra que explica a conseqüência jurídica do princípio precedente, sendo que, "quanto maior é o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância de satisfação do outro".

Ainda sobre a ponderação, afirma Alexy que ela deve suceder em três fases. "Na primeira fase deve ser determinada a intensidade da intervenção. Na segunda fase se trata, então, da importância das razões que justificam a intervenção. Somente na terceira fase sucede, então, a ponderação no sentido estrito e próprio".

A técnica da ponderação tem sido utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão para solucionar situações de colisão entre direitos fundamentais, do que é exemplo o importante "caso Lebach", que foi objeto de comentário por Robert Alexy. O litígio versava sobre a pretensão de uma emissora de televisão de exibir um filme-documentário sobre o assassinato de soldados em Lebach, crime que assumira trágicas proporções no país e que consistira na morte de quatro soldados do Exército Federal, lotados em um depósito de munições próximo a Lebach. O crime fora praticado enquanto as vítimas dormiam e visava à subtração de armas do local, as quais seriam utilizadas para a prática de outros crimes. Um dos cúmplices do crime, que havia sido condenado e estava prestes a deixar a prisão, considerou que a exibição do documentário, no qual era nominalmente identificado e tinha sua fotografia exibida, violaria seus direitos à honra e à privacidade, além de em muito dificultar a sua ressocialização. Após a negativa das instâncias inferiores, que haviam prestigiado os direitos à informação e à liberdade de imprensa, denegando a pretensão de que fosse proibida a divulgação do filme, foi apresentado recurso à Corte Constitucional.

Após a realização de ampla instrução, na qual foram inquiridos diversos especialistas em criminologia, comunicação social e psicologia, o Tribunal Constitucional, ao apreciar a questão, equacionou o litígio em três vertentes.

Na primeira, visualizou a tensão existente entre a proteção da personalidade e o direito à informação, ambos amparados pela Lei Fundamental. Enquanto o primeiro princípio, por si só, conduziria à proibição da transmissão, o segundo a autorizaria. Como nenhum dos dois princípios tinha precedência sobre o outro e não seria possível declarar a invalidez de qualquer deles, a identificação do interesse que deveria prevalecer seria realizada a partir da ponderação das circunstâncias do caso em particular.

Identificada a colisão de princípios, o Tribunal, em uma segunda etapa, concluiu pela precedência geral da liberdade de imprensa quanto à informação sobre fatos criminosos contemporâneos à sua veiculação. Essa precedência geral, no entanto, não é intangível, pois nem todas as informações atuais poderão ser livremente expostas, sendo admitidas exceções consoante a situação concreta.

Ao final, a Corte Constitucional decidiu que a repetição de informações sobre um crime há muito perpetrado, e que já não correspondia aos interesses atuais de informação, comprometia a ressocialização do autor, o que fez com que a proteção da personalidade, no caso, tivesse precedência sobre a liberdade de imprensa.

VI. A Eficácia das Normas Constitucionais

Sedimentada a organização estatal, mostra-se necessária a edição de padrões de conduta a serem observados pelos indivíduos, com o fim de assegurar a interpenetração e a coexistência dos distintos interesses existentes - não raras vezes contrapostos -, bem como padrões de estruturação e funcionamento dos próprios órgãos estatais. Esses padrões, que recebem o designativo de normas jurídicas, são dotados de imperatividade, devendo ser por todos observados, o que não exclui a possibilidade de os interessados agirem em norte contrário ao seu conteúdo sempre que, de forma expressa ou não, sejam autorizados a tanto pelo próprio ordenamento. A norma será existente caso emane de um órgão estatal, seja formulada e revelada ao mundo exterior de determinada forma e tenha um objeto (rectius: um padrão normativo). Além de existente, será válida caso seus elementos constitutivos possuam os atributos exigidos no texto constitucional: o órgão seja competente (rectius: competência legislativa do ente federativo e de seus órgãos internos), a forma, inclusive em relação aos atos que antecederam a sua formação (rectius: o processo legislativo), seja a exigida e o seu objeto guarde uma adequação material com a Constituição. A norma existente e válida será eficaz tão logo esteja apta a produzir os efeitos que lhe são próprios, o que se dará no momento em que se implementarem as condições previstas em seu texto ou em outra norma (v.g.: com a sua vigência). Não obstante existente, válida e eficaz, a norma somente terá efetividade (ou eficácia social como preferem alguns) quando seus efeitos, concebidos em estado latente, se materializarem no plano fático.

Sempre que encartadas em uma constituição rígida - logo, somente passíveis de modificação por um processo legislativo específico - são denominadas de normas jurídicas constitucionais. A natureza constitucional, por óbvio, não desvirtua ou enfraquece a sua normatividade, estendendo-se a elas as características inerentes às demais normas jurídicas. Para os fins dessa exposição, cuja brevidade não precisa ser realçada, releva analisar a questão da sua efetividade, pois eficácia jurídica todas a possuem.

A análise da efetividade das normas constitucionais, embora restrita a algumas poucas palavras, pressupõe uma breve referência à classificação das referidas normas, obrar que, por evidente, não poderá avançar no estudo das múltiplas construções realizadas pela doutrina pátria e alienígena. Assim, restringiremos nossa perspectiva de análise à conhecida construção de José Afonso da Silva, cuja obra há muito incorporou o designativo de clássica e que desenvolveu, quanto à sua eficácia e aplicabilidade, uma divisão tripartite das normas constitucionais. Segundo essa classificação, tem-se: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas restringíveis; e c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que se subdividem em normas definidoras de princípio institucional e normas definidoras de princípio programático.

Normas constitucionais de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata, produzindo ou tendo a possibilidade de produzir todos os efeitos essenciais nelas previstos. Não necessitam de integração normativa ulterior para a sua aplicação e criam situações subjetivas de vantagem ou vínculo, exigíveis de imediato.

As normas constitucionais de eficácia contida, embora tenham igualmente recebido normatividade suficiente para reger os interesses de que cogitam, também criando situações subjetivas de vantagem caracterizadoras de direitos subjetivos, podem ter sua eficácia e aplicabilidade limitadas por outras normas. Enquanto não editada a legislação restritiva, terão eficácia plena.

Quanto às normas de eficácia limitada, em geral, não receberam normatividade suficiente para sua aplicação, deixando-se ao legislador ordinário o ônus de completar a regulamentação da matéria nelas prevista em princípio ou esquema. Ressalta o autor que "as de princípio institucional encontram-se principalmente na parte orgânica da constituição, enquanto as de princípio programático compõem os elementos socio-ideológicos que caracterizam as cartas magnas contemporâneas. Todas elas possuem eficácia ab-rogativa da legislação precedente incompatível e criam situações subjetivas simples e de interesse legítimo, bem como direito subjetivo negativo. Todas, enfim, geram situações subjetivas de vínculo". As normas constitucionais de princípio institucional podem deixar uma margem maior de liberdade ao legislador ou indicar desde logo o conteúdo da lei. As de princípio programático limitam-se a traçar os princípios a serem cumpridos pelas diferentes funções estatais, sempre com o objetivo de realizar os fins inerentes à organização estatal.

As normas programáticas, apesar de não possuírem eficácia suficiente à regulação de uma situação fática ou jurídica previamente definida, a exemplo das demais normas jurídicas, possuem o atributo da imperatividade. Assim, além de prestarem um relevante auxílio na interpretação das normas infraconstitucionais, exigem que todos os atos emanados do Poder Público, de natureza normativa ou não, sejam com elas compatíveis.

As normas constitucionais que dispõem sobre a educação fundamental, na medida em que asseguram a imediata fruição desse direito, já que, consoante o art. 208, § 1º, foi ele tratado como direito subjetivo público, têm eficácia plena e aplicabilidade imediata, prescindindo de integração pela legislação infraconstitucional. Não bastasse isso, essa conclusão é reforçada por integrarem o rol mínimo de direitos imprescindíveis a uma existência digna, o que afasta qualquer tentativa de postergar a sua efetivação. Igual conclusão, aliás, deverá prevalecer quanto aos já mencionados preceitos da Lei nº 8.069/90.

Jorge Miranda, após afirmar que a maior parte dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos na Constituição portuguesa depende de legislação integradora, ressalta ser imperativa a observância do conteúdo essencial desses direitos e que, verificadas as condições de sua efetivação, "tais normas podem ser entendidas como tendo aplicação imediata (mesmo se o reconhecimento desses pressupostos e, por vezes, a determinação ou determinabilidade das normas exigem uma intervenção do legislador. Um exemplo é o art. 74, no 2, alínea a, que assegura o ensino obrigatório e gratuito, ficando, porém, a definição do que seja ‘ensino básico’ a cargo da lei)".

Para melhor esclarecimento do alcance do preceito constitucional, realizaremos uma breve análise do instituto do direito subjetivo, de índole eminentemente privatista, e dos lineamentos básicos do mínimo existencial.

VII. O Direito Subjetivo à Educação

Em um primeiro momento, nos parece relevante lembrar a dicotomia direito objetivo e direito subjetivo: o primeiro indica a norma, dissociada de circunstâncias afetas à realidade fenomênica e que, com maior ou menor grau de abstração, disciplina determinada situação jurídica (norma agendi); quanto ao direito subjetivo, veicula ele a faculdade, conferida ao seu titular, de agir em conformidade com a situação jurídica abstratamente prevista na norma e de exigir de outrem o cumprimento de um dever jurídico (facultas agendi).

Tanto o direito objetivo como o subjetivo possuem um epicentro comum: a pessoa, natural ou jurídica, que é a titular em potencial das relações jurídicas que se desenvolvem no organismo social. Enquanto o direito objetivo ocupa uma vertente externa à pessoa, mas a ela direcionada, o direito subjetivo se realiza na própria pessoa, sendo ambos absorvidos pela noção mais ampla de direito, que busca assegurar o primado da ordem jurídica e a existência digna de todos.

O direito subjetivo é intitulado de privado quando consagrado em norma de igual natureza. Direito subjetivo público, por sua vez, é o decorrente de norma de caráter público, designativo que aufere suas características básicas no objeto da relação jurídica e na sua indisponibilidade, sendo prescindível que o Estado figure em um dos pólos do vínculo (v.g.: o direito à intimidade, oponível tanto ao Estado como aos demais indivíduos).

Consagrada a disciplina normativa e assegurado, em abstrato, o exercício de um direito, está o seu titular autorizado a exigir daquele que detém o dever jurídico a transposição desse estado potencial para a realidade fenomênica, com o conseqüente cumprimento da prestação devida, quer seja positiva ou negativa. Dessa assertiva defluem os elementos essenciais do direito subjetivo: sujeito, objeto e relação jurídica.

O sujeito é o titular do direito. Tratando-se de obrigações oriundas do direito privado, em regra, o sujeito será certo e determinado. Tal, no entanto, não chega a ser erigido à condição de elemento essencial, sendo plenamente factível, em especial nos direitos que auferem o seu fundamento de existência diretamente na norma (ex vi legis), que somente sejam indicadas as características essenciais dos respectivos titulares, não se descendo a minúcias quanto à sua individualidade.

O objeto, que pode ter características materiais ou imateriais, é o bem jurídico sobre o qual o sujeito exerce a faculdade que lhe fora assegurada pela norma. Ultrapassados os períodos mais primitivos da história da civilização, não mais se concebe, sob um prisma universal e absoluto dos direitos fundamentais, seja o homem objeto de direito (v.g.: na condição de escravo). Questão mais complexa reside na possibilidade de o homem, como sujeito de direito, dispor sobre a própria pessoa ou sobre os atributos inerentes à sua personalidade. Como decorrência da individualidade existencial do homem e do elemento anímico que direciona seu comportamento, há muito se consagrou o entendimento de que lhe é dado fazer tudo o que lhe aprouver, desde que sua conduta não rompa as fronteiras da indisponibilidade consagradas no ordenamento jurídico, em especial nos princípios que congregam os valores ético-morais inerentes a determinado grupamento (v.g.: em contraposição à licitude de um contrato de trabalho firmado entre um acrobata e um circo, seria ilícita, por atentatória à dignidade da pessoa humana, a cláusula que previsse a possibilidade de o acrobata, a juízo do empregador, permanecer pendurado em uma corda, completamente nu, enquanto os espectadores se divertissem arremessando frutas e legumes deteriorados contra ele). Ultrapassados tais limites, com a conseqüente mácula à integridade de direitos que, em sua essência, são indisponíveis, ter-se-á a ilicitude da conduta. Traçando-se um paralelo imaginário com o direito de propriedade, que é caracterizado pelo ius utendi, fruendi et abutendi (direito de usar, gozar e dispor), seria possível afirmar que o homem pode usar e gozar dos atributos inerentes à sua pessoa e à sua personalidade, mas deles não pode dispor.

A relação jurídica é o vínculo mantido entre o titular do direito subjetivo e aquele que tem o dever jurídico de observá-lo. Não raras vezes, o pólo passivo da relação jurídica é ocupado por sujeitos indeterminados (v.g.: no direito de propriedade, onde o proprietário ocupa o pólo ativo e todos têm o dever de observá-lo, sendo integrantes do pólo passivo), o que em nada descaracteriza o direito. É importante ressaltar, uma vez mais, não ser possível falar em direito sem o correspondente dever de outrem, sendo este o elemento fundamental de uma relação jurídica.

Como decorrência lógica da própria consagração de um direito, que é violável por excelência, tem-se como indispensável a possibilidade de utilização do poder de coerção estatal para assegurar a sua efetiva implementação no plano fático. Entendendo desatendido um direito seu em razão da inobservância de um dever jurídico que recaía sobre outrem, poderá o interessado deduzir sua pretensão em juízo.

O direito subjetivo, não obstante concebido sob uma perspectiva eminentemente privatista, em que os interesses individuais justificavam a previsão normativa e direcionavam a sua concreção, bem demonstra a presença de um dever e a existência de um direito à sua usufruição. Essa constatação não sofre alterações substanciais ao ser transportada para o plano dos direitos sociais, já que, mantida a essência, tem-se tão-somente a ampliação dos titulares da facultas agendi. Ao invés do seu exercício de modo individual, torna-se possível e aconselhável que tal se dê em uma dimensão coletiva.

Assim, quer seja considerado na individualidade de um dos componentes do grupamento, quer seja visto como direito de todos, o direito à educação, a depender da ótica em que seja analisado, será passível de enquadramento na categoria dos direitos subjetivos, pois integrante do denominado mínimo existencial. É justamente com olhos voltados a essa constatação que deve ser interpretado o art. 208, § 1º, da Constituição da República: "O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo".

Não se sustenta que todo e qualquer direito previsto na Constituição possa resultar na coerção estatal para o seu fornecimento, isto porque os recursos estatais são reconhecidamente limitados, enquanto as necessidades são indiscutivelmente amplas. Tal teoria, aliás, já se mostrou inexeqüível em relação aos dogmas do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), que teve grande expansão a partir da Segunda Guerra Mundial. Fosse de outro modo, bastaria transpor a legislação de um país dotado de elevados índices de desenvolvimento humano para outros nos quais esse fator não apresentasse a mesma desenvoltura para que, tal qual um passe de mágica, todos os problemas sociais do mundo contemporâneo fossem resolvidos. Essa tese, infelizmente, destoa de um padrão de razoabilidade, motivo pelo qual seu prestígio está em franco declínio. Como contraponto, tem-se o mínimo existencial, que, face o seu conteúdo mínimo, apresenta níveis aceitáveis de exeqüibilidade, atende à razão e satisfaz à dignidade da pessoa humana.

Na Itália, após acentuarem a constitucionalização da obrigação do Estado de "instituir escolas estatais para todas as ordens e graus", Di Celso e Salermo, analisando o art. 34 da Constituição, que assegura o "direito ao estudo", não hesitam em visualizar a existência do direito a obter dos poderes públicos, segundo as condições estabelecidas na Constituição e na lei, as prestações necessárias ao profícuo desenvolvimento dessa atividade. Acrescentam que, "não diversamente do direito ao trabalho, o direito ao estudo nasce como liberdade e se desenvolve como direito cívico ou social ou, como outros preferem dizer (Martines), evolui da liberdade negativa à liberdade positiva". Apesar disso, apresenta uma diferença substancial em relação ao direito ao trabalho, pois a Constituição e a lei impõem os meios (v.g.: bolsa de estudo) para tornar efetivo esse direito, indicando uma concreta linha de ação, do que resulta um verdadeiro poder jurídico de exigir a sua prestação. Ao final, lembrando a Sentença 215/87, do Tribunal Constitucional, concluem que "a escola está aberta a todos" (la scuola è aperta a tutti).

Igual entendimento tem prevalecido na Espanha, onde o art. 27 da Constituição dispõe que "todos tienen derecho a la educación". Segundo o Tribunal Constitucional (STC 86/1985, FJ 3), esse direito tem um teor primário de direito de liberdade e, mais especificamente, uma dimensão prestacional que, na atualidade, ressalta das exigências do Estado social. Em razão desse preceito, o Poder Público está obrigado a assegurar a efetividade do direito à educação, em especial nos níveis básicos de ensino integrantes do sistema educativo, pois, a teor do item 4 do mesmo artigo, tais níveis, além de obrigatórios, são gratuitos. Esse direito pode ser imediatamente exigido, por qualquer cidadão, perante os tribunais, inclusive com a utilização do recurso de amparo, que apresenta certa similitude com o mandado de segurança pátrio.

Tratando-se de outros níveis de educação que não aqueles previstos no art. 208, § 1º, da Constituição da República e no art. 208 da Lei nº 8.069/90, a exigibilidade de sua implementação dependerá do concurso de uma complexa rede de circunstâncias fáticas e jurídicas. Em linhas gerais, exigirá, como antecedente lógico, o atendimento de outros direitos igualmente integrantes do mínimo existencial (v.g.: habitação), que correspondem a valores de indiscutível fundamentalidade e preeminência em qualquer sociedade. Em um segundo momento, exigirá, à luz do caso concreto, a realização de um juízo de ponderação em relação a outros princípios que igualmente incidem na espécie. Além desses juízos valorativos, torna-se necessária a análise das possibilidades materiais do ente estatal, o que permitirá a transposição dos direitos normativamente previstos de um campo dominado pela retórica para uma seara ao alcance da realidade e da fruição social.

VIII. O Direito à Educação e o Mínimo Existencial

Também denominado de núcleo duro ou núcleo comum dos direitos fundamentais, o mínimo existencial indica o conteúdo mínimo e inderrogável desses direitos, resultando "de um levantamento comparativo de sua incidência em instrumentos de direitos humanos (os próprios textos), fortalecido ademais pela construção jurisprudencial daí decorrente e pelo processo de interpretação destes dispositivos equivalentes com formulações distintas." Esse conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, com tendência à universalidade, resulta de sua paulatina incorporação aos tratados internacionais, de sua penetração nas cartas políticas e de sua disseminação pela legislação infraconstitucional, o que torna imperativa a interpretação desta à luz dos valores superiores que direcionam sua aplicação.

Tratando-se de um conteúdo mínimo, que atua como elemento aglutinador da essência dos direitos fundamentais, é vedado ao Estado a adoção de quaisquer medidas, de ordem legislativa ou material, comissivas ou omissivas, que busquem frustrar a sua concreção. Tanto atentará contra o mínimo existencial a ação concreta, finalisticamente dirigida ao vilipêndio do bem jurídico por ele tutelado, como a omissão deliberada em tornar concreta uma previsão normativa ou mesmo em editar um ato normativo que viabilize o alcance de um status jurídico favorável ao indivíduo. A sua observância, assim, independe de qualquer medida de intervenção legislativa, derivando diretamente da própria Constituição.

Não obstante incontroversa a sua preeminência axiológica, o mínimo existencial, que está atrelado às condições materiais mínimas exigidas para uma sobrevivência digna, não possui balizamentos precisos. Como visto, os seus lineamentos básicos resultam da paulatina sedimentação de uma pauta de direitos mínimos geralmente aceitos e considerados essenciais à preservação da dignidade da pessoa humana. Essa observação é relevante na medida em que permite situar a legitimação dos direitos humanos em uma posição externa ao próprio ordenamento jurídico.

Em países subdesenvolvidos como o Brasil, nos quais o mínimo existencial é historicamente ignorado pelos poderes constituídos, a questão assume perspectivas dramáticas e que certamente não seriam vistas em países do denominado primeiro mundo. Nestes, o contingente populacional que depende do intervencionismo estatal para sobreviver é sensivelmente reduzido, o que, face à reconhecida possibilidade de o Estado assegurar a observância do mínimo existencial, em muito suaviza qualquer polêmica sobre a matéria.

Ainda que o mínimo existencial seja tradicionalmente integrado por zonas interditas à atuação estatal, vale dizer, pelo imperativo reconhecimento de um rol mínimo de liberdades, intangíveis por excelência, merecem igual proteção os direitos conexos, por imprescindíveis à usufruição dessas liberdades, estando a elas umbilicalmente ligados.

Em relação ao direito à educação fundamental, nos parece incontroverso tratar-se de uma parcela integrante do mínimo existencial, não só por suas características intrínsecas como em razão de sua importância para a concreção de outros direitos necessários a uma existência digna. Como vimos, há muito a educação fundamental foi incorporada aos tratados e convenções internacionais, isto sem olvidar a sua paulatina inserção nos ordenamentos de inúmeros Estados, inclusive o Brasil. Neste País, aliás, os textos constitucionais, a contar do primeiro, sempre lhe fizeram certa deferência. Além dos prismas da universalidade e do historicismo, a Carta de 1988 a erigiu à condição de direito subjetivo público, o que em muito reduz a abstração que sempre circunda os limites do mínimo existencial e afasta a possibilidade de que sua oferta seja postergada ou negada.

Do mesmo modo, ante a reconhecida miserabilidade da população brasileira, também os programas suplementares de oferta de material escolar, transporte, saúde e alimentação são indissociáveis do direito à educação: uma pessoa que não possua livros não poderá acompanhar as lições que lhe são ministradas; não possuindo recursos para custear o transporte, simplesmente não poderá comparecer à escola; estando doente, não poderá estudar e entrar em contato com outros estudantes; e, ainda, sem alimentação não haverá como assimilar as mais comezinhas lições.

Identificados os lineamentos básicos do mínimo existencial, com a conseqüente integração do princípio da dignidade da pessoa humana, nos parece que destoa dos valores por ele condensados qualquer iniciativa dos poderes constituídos, de cunho material ou normativo, que procure suprimir direitos, liberdades e garantias já alçados a essa condição. Os direitos fundamentais, na mesma medida em que podem impor prestações positivas ao Poder Público, impõem limites à sua atuação. Sendo a Constituição um sistema aberto de normas, será flagrantemente inconstitucional qualquer medida que se afaste dos valores responsáveis por sua concretização, ainda que emanados de normas infraconstitucionais. À guisa de ilustração, será ilegítimo o ato que determine o fechamento de uma escola sem que existam outras em condições de atender à demanda, a extinção de cargos de professor, com a conseqüente colocação em disponibilidade de seus ocupantes, enquanto flagrante a carência de pessoal nessa seara etc. É indiscutível que um estudo responsável da denominada proibição de retrocesso social exige maiores reflexões de seu artífice. No entanto, nos parece relevante o registro, ainda que meramente enunciativo.

Como vimos, o direito à educação, na vertente aqui analisada, enseja a correlata obrigação do Estado em prestá-la, o que importa na necessária observância dos princípios regentes da atividade estatal, quer sejam expressos, como a impessoalidade e a eficiência, quer sejam implícitos, como o princípio da continuidade dos serviços públicos. Especificamente em relação à continuidade ou permanência do serviço, é ela mera derivação de sua utilidade e essencialidade, ambas de matiz constitucional. Tratando-se de serviço público essencial, é imperativa a sua manutenção em caráter contínuo e regular, vedando-se a interrupção ou mesmo a disponibilização em nível inferior ao exigido. Não bastasse isto, é vedado ao Poder Público, inclusive, desafetá-lo e transferi-lo à responsabilidade da iniciativa privada. Ainda que seja admissível e aconselhável a participação da sociedade na concreção desse direito fundamental, o que representa mera projeção da horizontalidade dessa categoria de direitos, optou o Constituinte por tornar inarredável a participação estatal, recaindo sobre o Poder Público o dever jurídico de prestá-lo.

IX. A Questão da Efetividade do Direito à Educação e os Recursos Públicos Disponíveis

Delineados os contornos básicos do direito à educação e a parcela mínima a ser fornecida aos residentes no território nacional, resta aos interessados a utilização dos mecanismos de acesso à justiça sempre que seja divisado o descumprimento do dever jurídico que recai sobre o Estado, quer seja com o seu não oferecimento ou mesmo com a sua oferta irregular. Dentre os instrumentos processuais contemplados no texto constitucional, merecem ser lembrados, em caráter meramente enunciativo, o mandado de segurança, individual e coletivo, o mandado de injunção e a ação civil pública, os quais serão manejados pelos respectivos legitimados em conformidade com as leis de regência.

Em casos tais, não nos parece aceitável a tese de que o julgamento favorável de uma pretensão dessa natureza importaria em mácula ao princípio da divisão das funções estatais. A divisão em funções garante a sua especialização e a independência em seu exercício, o que evita os conhecidos e inevitáveis males da concentração do poder. Não se trata unicamente de princípio de especificação de órgãos e funções, mas de princípio de coordenação e manutenção da unidade e organicidade do Estado. O princípio da divisão dos poderes é, em essência, um instrumento indispensável à salvaguarda das liberdades e dos direitos individuais. Assim, como utilizar um princípio que se destina à salvaguarda dos direitos individuais como a pedra angular de um entendimento que busca justamente legitimar a sua inobservância? A atuação do Judiciário não importará em qualquer ingerência externa na atividade desenvolvida, mas, tão-somente, velará para que esta mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Dessa forma, não se tratará unicamente de juízo censório ou punitivo à atividade desempenhada por outro poder, mas de aplicação de eficaz mecanismo previsto no regime democrático, sempre com o desiderato final de garantir o bem-estar da coletividade. Pontes de Miranda há muito afirmara que "o exercício do poder, ainda por parte daqueles que só indiretamente o recebem, como os juízes e os funcionários públicos, é sempre exercido em nome do povo".

Do mesmo modo, não merece acolhida a tese de que o Judiciário não estaria devidamente aparelhado para levar a efeito a valoração das circunstâncias periféricas ao caso, em especial aquelas que possibilitem uma visão de conjunto do aparato administrativo, o que inclui a ponderação de toda a gama de interesses individuais e sociais a serem atendidos e a análise das possibilidades operacionais do referido aparato. Integrando a educação fundamental o mínimo existencial e sendo dever do Poder Público o atendimento prioritário às crianças e aos adolescentes, somente em situações excepcionalíssimas será possível, em um juízo de ponderação, prestigiar interesses outros, com o conseqüente comprometimento dos recursos existentes. Assim, a importância dos valores envolvidos confere uma relativa simplicidade a essa operação, conferindo ao extraneus - in casu o Juiz - uma ampla possibilidade de realizá-la.

Outro argumento normalmente utilizado por aqueles que vêem os direitos sociais como normas meramente programáticas reside na conhecida insuficiência de recursos para o atendimento das múltiplas necessidades da população. É a denominada reserva do possível, que pode ser de ordem jurídica - ausência de previsão de gastos na lei orçamentária - ou fática - inexistência dos próprios recursos necessários à satisfação dos direitos. No caso de total insuficiência de recursos, o que deverá ser devidamente demonstrado e não simplesmente alegado, pouco espaço restará para que o Poder Público seja compelido a cumprir o seu dever jurídico. Nesse caso, o descumprimento resultará de uma total impossibilidade material, não de uma injustificável desídia.

Tratando-se de impossibilidade jurídica, o que decorreria não da ausência de receita, mas da ausência de previsão orçamentária para a realização da despesa, deverá prevalecer o entendimento que prestigie a observância do mínimo existencial. Restando incontroverso o descompasso entre a lei orçamentária e os valores que integram a dignidade da pessoa humana, entendemos deva esta prevalecer, com o conseqüente afastamento do princípio da legalidade da despesa pública. Não fosse assim, seria tarefa assaz difícil compelir o Poder Público a observar os mais comezinhos direitos assegurados na Constituição da República e na legislação infraconstitucional, o que terminaria por tornar legítimo aquilo que, na essência, não o é. Não é demais lembrar que, ao consagrar direitos, o texto constitucional implicitamente impôs o dever de que sejam alocados recursos necessários à sua efetivação. Em se tratando de direitos coletivos - que normalmente exigem um elevado montante de recursos -, apelar para a expedição de precatórios, consoante a sistemática do art. 100 da Constituição, seria o mesmo que relegar os verdadeiros detentores da facultas agendi às intempéries da própria sorte, arcando com os efeitos deletérios e irreversíveis que o fluir do tempo causaria sobre seus direitos. Como desdobramento do que vem de ser dito, poderá o Poder Judiciário, a partir de critérios de razoabilidade e com a realização de uma ponderação responsável dos interesses envolvidos, determinar a realização dos gastos na forma preconizada, ainda que ausente a previsão orçamentária específica. Caberá ao Poder Executivo, nos limites de sua discrição política, o contingenciamento ou o remanejamento de verbas visando a tornar efetivos os direitos que ainda não o são.

Lembre-se que, em se tratando de matéria afeta à infância e à juventude, o argumento da impossibilidade jurídica jamais poderá beneficiar àqueles que a alegam, pois, como foi dito, nessa seara vige o princípio da absoluta prioridade. Se nem todos os direitos sociais, apesar da previsão normativa, se mostram plenamente operativos, é necessário "determinar com que prioridade e em que medida deverão ser", e esta escolha há muito foi feita pelo Constituinte. E ainda, a Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996, que alterou o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispôs sobre a vinculação de verbas específicas do orçamento para a implementação do direito à educação. Além disso, criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), que tem por fim universalizar o ensino fundamental e remunerar condignamente o magistério.

O FUNDEF foi regulamentado pela Lei no 9.424, de 24 de dezembro de 1996 e pelo Decreto Federal no 2.264, de junho de 1997, tendo introduzido alterações na forma de desenvolvimento do ensino fundamental no âmbito dos diferentes entes da Federação, implementando uma partilha de recursos cuja intensidade e freqüência variarão em conformidade com o número de alunos matriculados no ensino fundamental. Além destes diplomas legais, deve ser observada a Lei no 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Para a integração das receitas do Fundo, serão utilizados 15% das seguintes fontes: Fundo de Participação dos Estados – FPE, Fundo de Participação dos Municípios – FPM, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações – IPIexp e Desoneração de exportações, de que trata a Lei Complementar no 87/96. A estas receitas serão acrescidas verbas complementares da União, destinadas aos Estados em que a receita originariamente gerada não é suficiente à garantia de determinado valor individual por aluno, valor este que será fixado pelo Presidente da República através de decreto. E ainda, quanto à destinação, os recursos do Fundo serão utilizados da seguinte forma: 60% para a remuneração dos profissionais do magistério em exercício no ensino fundamental e 40% em outras ações de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, conforme o disposto no art. 70 da Lei no 9.394/96.

X. Síntese Conclusiva

A fundamentalidade do direito à educação é imanente à sua condição de elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e à concreção da própria cidadania.

Identificadas as três gerações de direitos fundamentais, as quais, não obstante sucessivas entre si, não excluem as anteriores, coexistindo harmonicamente, o direito à educação tem sido tradicionalmente incluído no rol dos direitos sociais, que se enquadram no plano da segunda geração. Apesar disso, é indiscutível a sua importância à concreção dos direitos de primeira geração, pois não se pode falar em liberdade plena sem o exato conhecimento de seu próprio alcance.

Os direitos sociais, quer sejam enquadrados como mera variante dos direitos e garantias individuais, quer sejam considerados como projeções do princípio da dignidade humana, são "cláusulas pétreas", erigindo-se como limites materiais ao exercício do poder reformador.

Em decorrência da tendência à universalidade dos direitos fundamentais, têm sido intensificadas, a partir da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas para se conferir um colorido normativo ao seu reconhecimento. Nessa perspectiva, o direito à educação tem sido constantemente previsto nos inúmeros tratados, cartas de princípios e acordos internacionais, os quais buscam estabelecer a pauta mínima de direitos consagradores da dignidade da pessoa humana. No Brasil, o direito à educação é presença constante em todos os textos constitucionais, recebendo especial realce na Carta de 1988, ocasião em que o direito à educação fundamental foi erguido à condição de direito subjetivo público. Na mesma linha se desenvolveu a legislação infraconstitucional, que consagrou o princípio da proteção integral das crianças e dos adolescentes (Lei nº 8.069/90) - o que inclui o direito à educação -, aperfeiçoando o sistema da absoluta prioridade previsto no art. 227 da Constituição da República.

A paulatina contemplação do direito à educação no cenário mundial e pátrio, com a conseqüente busca da sedimentação de sua universalidade, permitiu a integração da educação fundamental ao denominado mínimo existencial, que indica o conteúdo mínimo e inderrogável dos direitos fundamentais. Além dessa perspectiva historicista, a Constituição de 1988, em seu art. 208, § 1º, tornou incontroversa a imediata exigibilidade desse direito junto ao Poder Público, erguendo-o à condição de direito subjetivo público. Tratando-se de norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, a não oferta do ensino fundamental ou a sua oferta irregular autoriza a imediata sindicação junto ao Poder Judiciário.

O provimento jurisdicional que vele pelo cumprimento da Constituição e da legislação infraconstitucional, possibilitando a concreção de direitos essenciais à dignidade da pessoa humana, em nada viola o princípio da divisão das funções estatais. Esse princípio, em essência, é um instrumento indispensável à salvaguarda das liberdades e dos direitos individuais, não sendo legítima a sua utilização como a pedra angular de um entendimento que busca justificar a sua inobservância.

Ressalvada a total inexistência de recursos, o que depende de prova por parte do Poder Público, sendo insuficiente a mera alegação, será plenamente possível a emissão de provimento jurisdicional com o fim de determinar o contingenciamento ou a realocação de dotações orçamentárias para o atendimento dos direitos prestacionais que congregam os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, como é o caso do direito à educação fundamental.

 

Emerson Garcia

emersongarcia814[arroba]hotmail.com

Partes: 1, 2, 3



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