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É essencial entender que os sistemas de proteção tradicionais buscam regulamentar uma realidade antiga, cujo peso específico no mundo do trabalho ainda é significativo, mas está declinando rapidamente. O universo de trabalhadores desprotegidos, com isto, aumenta fortemente, exigindo a definição dos sistemas de apoio mais amplos, com referenciais novos de cobertura.
A flexibilização dos vínculos reflete-se nas remunerações do trabalhador. Um primeiro ponto de referência, já visto acima, é a baixa participação dos salários no Pib, atualmente da ordem de 37%, quando atinge dois terços do Pib, como ordem de grandeza, nos países em desenvolvimento. Muito se escreveu sobre o peso dos encargos sociais no Brasil, e a cifra que é sempre mencionada é a de 100% de encargos. Um pequeno raciocínio de Márcio Pochmann nos traz de volta à realidade: 100% de encargos sobre um salário industrial de 2,9 dólares por hora, representa um custo total da mão de obra de 5,8 dólares. Os Estados Unidos terão um encargo menor em porcentagem, mas incidindo sobre um salário de 14 dólares, o que significa um custo total da mão de obra incomparavelmente maior. Isto sem mencionar os custos da Alemanha, da ordem de 30 dólares.
À baixa remuneração salarial de forma geral, é preciso acrescentar a desigualdade na remuneração. A dimensão do problema pode ser vista nesta avaliação do Banco Mundial: "Os ganhos de engenheiros em Frankfurt, na Alemanha, são 56 vezes maiores que os ganhos de mulheres não qualificadas na indústria têxtil em Nairobi, no Kenya. Parte desta diferença resulta da estrutura de remuneração das ocupações dentro de cada economia – a relação do salário de engenheiro e da trabalhadora não qualificada no setor têxtil é de 8 para 1 em Nairobi, e 3 para 1 em Frankfurt. E outra parte resulta das diferenças internacionais de pagamentos por trabalho semelhante – a relação salarial entre um engenheiro alemão e o seu colega kenyano é de 7 pára 1, enquanto a relação salarial de duas trabalhadoras do setor têxtil, na Alemanha e no Kenya, é de 18 para 1".
O Banco Mundial não é otimista quanto ao futuro: "Não há uma tendência mundial para uma convergência entre trabalhadores ricos e pobres. Na realidade, há riscos que os trabalhadores nos países mais pobres caiam ainda mais para trás, na medida em que os investimentos e avanços educacionais se tornam mais dispares".
A desigualdade nas remunerações salariais é uma característica também do Brasil. "Em relação à qualificação profissional, observa-se que no Brasil o nível médio das remunerações no setor administrativo é quase dez vezes superior ao do operário. Nos países industrializados selecionados, a diferença entre o nível de remuneração do setor administrativo e do operário não alcança três vezes. As diferenças entre os níveis médios de remuneração por tempo de serviço e por tamanho de estabelecimento no setor industrial brasileiro superam significativamente as dos países industrializados selecionados. A magnitude das desigualdades de remuneração está associada tanto ao padrão de uso da força de trabalho quanto ao modo com que os salários são determinados em cada país (atuação sindical, funcionamento do mercado de trabalho, estatuto do trabalho, entre outros)".
Um desnível importante pode também ser encontrado entre salários de homem e de mulher: para funções iguais, a mulher recebe 60% do salário que receberia o homem. Este ponto pode ter impactos dramáticos, pela elevada incidência de mulheres que sustentam a família sozinhas.
Uma avaliação das "remunerações", apresentada na Síntese dos Indicadores Sociais 2000, do IBGE, indica que "o rendimento médio dos ocupados com remuneração cresceu substancialmente de 1992 para 1999, de R$ 402,45 para R$ 525,10, com flutuações durante o período." No conjunto, o nível de remuneração continua extremamente baixo. Outra característica é a desigualdade regional: "A região Sudeste continua, em 1999, apresentando o maior valor de rendimento médio dos ocupados: R$ 631,20 enquanto o Nordeste apresentou o menor, R$ 314,70". Uma terceira característica, é a desigualdade entre altos e baixos rendimentos: "Quando se analisa o rendimento médio dos 10% mais ricos da distribuição da renda (medida em salários mínimos) verifica-se um crescimento substancial no período, passando de 13,33 salários mínimos a 17,63 salários mínimos, enquanto aqueles que se encontram nos 40% mais pobres não chegaram a ultrapassar sequer 1 salário mínimo de rendimento médio (0,94 salário mínimo), em 1999, embora em 1992 tivessem apenas 0,70 salário mínimo."
Na avaliação do IBGE, "As consequências dessa desigualdade podem ser melhor apreciadas quando se comparam alguns indicadores sobre a população inserida nestes estratos da distribuição de renda. Nos 10% mais ricos, cerca de 80,1% de domicílios tinham saneamento básico adequado, enquanto nos 40% mais pobres a proporção era de apenas 32,3%. Também, o percentual de estudantes de nível superior é muito desigual: nos 10% mais ricos, verificou-se um percentual de 21,0,% dos estudantes de nível superior de 20 a 24 anos, enquanto nos 40% mais pobres a proporção era insignificante, 2,6%."
A tendência geral, portanto, continua no sentido da hierarquização do trabalho, da fragilização dos vínculos, e da crescente desigualdade da remuneração. Na continuidade do processo, o que temos pela frente é uma fratura social cada vez mais profunda. A partir de um certo nível, as desigualdades generalizam um clima de insegurança, e passam a tornar a própria economia ineficiente, transformando-se num círculo vicioso de desorganização social. Não existe nenhuma tendência espontânea no sentido do reequilibramento social. Os segmentos mais frágeis da sociedade são empurrados para uma situação cada vez mais catastrófica, enquanto segmentos minoritários optam por diversos tipos de corporativismo, que pode ser encontrado na classe dos advogados, dos economistas, dos jornalistas, dos políticos, formando casulos inseguros mas confortáveis. Com a exclusão de grandes massas numa ponta, e a formação de rígidas defesas corporativas na outra, a sociedade perde simplesmente a capacidade de mudança, que é o que mais se necessita frente às transformações em curso. Assim as mudanças tecnológicas ficam cada vez mais divorciadas dos processos políticos e sociais.
O tempo de trabalho está aflorando como problema central. Na medida em que as tecnologias permitem uma produtividade mais elevada, aparece cada vez mais como absurda uma situação onde por um lado há gente que se torna neurótica por excesso de trabalho, desarticulando inclusive a vida social e a vida familiar, e por outro lado uma imensa maioria que se sente excluída do processo, por não ter acesso ao emprego, ou por se ver obrigada a inventar formas de sobrevivência cada vez mais surrealistas. Quando o planeta produz 6 mil dólares de bens e serviços por pessoa e por ano, é preciso constatar que o essencial não é produzir mais, mas produzir melhor, coisas mais úteis, e de uma forma que não nos impeça de viver. O motto de uma recente conferência de economistas, resume bem a nova consciência que aflora: crescer por crescer é a lógica da célula cancerosa.
O tempo, único recurso efetivamente não renovável, constitui um elemento essencial da nossa qualidade de vida, e a jornada de trabalho volta hoje à tona, depois de algumas décadas de relativa calma neste aspecto. Guy Aznar, André Gorz e outros trazem com força o fato da produtividade crescente exigir uma redistribuição mais racional do "estoque" de empregos, sobretudo considerando o problema do desemprego.
Mas há outros fatores que concorrem. A urbanização e o peso das metrópoles, em particular, transformaram o transporte até o local do trabalho num martírio para muita gente, sendo freqüentes deslocamentos diários de várias horas. Longe de ser secundário, este elemento de estresse e de esgotamento tem forte impacto sobre a produtividade do trabalho, e priva o trabalhador de uma fatia importante do seu tempo de vida.
Um outro fator significativo é a crescente contradição entre o que se exige do trabalhador nos setores mais avançados, em termos de conhecimento, competência e criatividade, e a jornada exaustiva. Na era do knowledge organization, kan-ban, kaizen, qualidade total e outras exigências da modernidade, as condições físicas e mentais da criatividade precisam ser repensadas.
Numa visão mais ampla, adquire grande importância o próprio deslocamento dos eixos dinâmicos da economia, com cada vez mais atividades de hotelaria, de restaurantes, de turismo, lazer, cultura e outras que têm em comum o fato de exigirem tempo disponível por parte da população. É interessante ter sido reeditado no Brasil o livro de Paul Lafargue, O Direito à Preguiça, de 1880, e que ganha nova atualidade. Segundo Lafargue, a redução da jornada "teria como objetivo fazer com que os operários comecem a praticar "as virtudes da preguiça", que seriam: o prazer da vida boa (festas, danças, música, sexo, ocupação com as crianças, lazer e descanso) e o tempo para pensar e desfrutar da cultura, das ciências e das artes". O comentário de Marilena Chauí, na introdução do livro, diz tudo: "Longe, portanto, de o direito à preguiça ter sido superado pelos acontecimentos, é ele que, numa sociedade que já não precisa de exploração mortal da força de trabalho, pode resgatar a dignidade e o auto-respeito dos trabalhadores".
A experiência da França, que a partir de 1999 passou a adotar a semana de 35 horas, constitui um passo muito significativo. Apesar das numerosas críticas de quem via na medida uma intervenção indevida do Estado, o fato é que a França conheceu uma redução drástica do desemprego, e um forte aumento de produtividade, levando o país a assumir o papel de locomotiva da economia européia, no lugar da Alemanha. A Lei Aubry, que institui os novos horários, permite também visualizar dificuldades e resistências. Mas o essencial, é que a equação funciona em termos macroeconômicos, pois ao se aumentar o nível de emprego, reduzem-se as contribuições do Estado para sustentar desempregados, e os recursos economizados podem ser redistribuídos sob forma de isenções para empresas, ou subvenções para os trabalhadores. Um novo equilíbrio é encontrado, com os trabalhadores trabalhando menos horas, e mais gente trabalhando. É a essência da proposta de Guy Aznar, Trabalhar Menos para Trabalharem Todos.
No entanto, um novo arranjo teve de ser negociado – e ainda está sendo em boa parte negociado – entre os três personagens, o Estado, os trabalhadores e os empresários. Muitos trabalhadores querem manter a totalidade de vencimentos, e buscam horas extras, que passam a ser contadas a partir de 35 horas semanais. O Estado transforma o dinheiro que usava para sustentar desempregados em apoio às empresas que contratem mais empregados. As empresas negociam diretamente com os sindicatos a nova distribuição de tempo e remuneração: negocia-se o aumento de empregos, o "banco de horas" que transforma excesso de horas trabalhadas em crédito para período de descanso e assim por diante. O resultado não é apenas positivo: a maior força de negociação empresarial pode aproveitar a "brecha" de flexibilização para buscar vantagens.
No conjunto, trata-se de um novo patamar de negociação onde o Estado consegue dinamizar a economia, os trabalhadores passam a ter mais empregos, e os empresários conseguem maior produtividade e mais mercados. Esta visão é importante, pois grande parte das dificuldades de se adaptar as relações de trabalho às novas relações técnicas de produção vêm do fato dos atores sociais se agarrarem a vantagens adquiridas, movidos mais pela insegurança do que pela construção dos novos equilíbrios necessários. A filosofia do Win-Win, de Hazel Henderson, (traduzido no Brasil como Construindo um Mundo onde Todos Ganham), é aqui essencial, pois as tentativas empresariais de arrancar vantagens a qualquer preço simplesmente imobilizam o sistema.
Enquanto as novas tecnologias não dão lugar a reformulações mais amplas de relações sociais de trabalho, e com a insuficiente força política e sindical de criar esta plataforma de negociação, multiplicam-se micro-experiências de forma caótica. Assim é que, por exemplo, a informática permite o controle individualizado dos trabalhadores com rigorosa eficiência. Robert Kuttner traz o exemplo de uma grande empresa onde atendentes de relações públicas respondem por telefone a reclamações de clientes: o computador controla os intervalos, e o empregado tem direito a dois segundos entre uma chamada e outra. É o avanço tecnológico servindo a regressão aos ritmos de início do século XX. Grande parte das empresas norte-americanas hoje exigem que os trabalhadores usem um localizador eletrônico no pescoço, e o computador registra ausências, locais ou colegas visitados durante o trabalho, gerando um ambiente perfeito de Big Brother.
É importante notar que estas mesmas tecnologias abrem perspectivas menos sinistras. Usada com bom-senso, a nova conectividade via computador ou celular deveria permitir muito mais flexibilidade no uso do tempo, sem prejudicar os processos produtivos. Sem nenhuma tecnologia, muitas empresas instalam hoje salas de sesta, pois constataram que a produtividade à tarde é muito baixa, e que quarenta minutos de descanso, incluindo uma boa soneca, renovam uma pessoa. O trabalho domiciliar pode constituir um fator reapropriação de horários e de ritmos pelo trabalhador, mas pode também constituir um fator de exploração ou de informalização, além de levar à desarticulação da vida das pessoas.
No conjunto, as tecnologias evoluem rapidamente, e as adaptações da organização social às novas condições técnicas se dão de maneira caótica e perversa. As pessoas estão trabalhando mais, sentindo-se mais inseguras e estressadas, e sentem sobretudo uma perda generalizada do controle sobre as suas vidas.
Keynes escreveu em 1930 um curto ensaio extremamente interessante, prevendo como seria o mundo no fim do século: "Assim, pela primeira vez desde a sua criação, o homem deverá enfrentar o seu problema permanente – como utilizar a sua liberação da pressão das preocupações econômicas, como ocupar o seu lazer que a ciência e os juros acumulados terão ganho para ele, para viver com sabedoria, agradavelmente e bem". A realidade é que temos todo o potencial tecnológico e econômico para "viver agradavelmente e bem". Falta-nos a sabedoria, a capacidade de organização política e social.
De forma geral, o debate tem se centrado bastante nas dimensões materiais do trabalho, que apresentam realmente aspectos dramáticos, mas insuficientemente sobre as dimensões psicológicas, sobre como as pessoas se sentem no trabalho, ou fora dele, no clima geral de insegurança criado. Outro fator que tem dificultado a compreensão dos processos, é a segmentação excessiva dos diversos aspectos do trabalho, prejudicando a visão de conjunto, e a compreensão da transformação extremamente ampla, tecnológica, institucional, social, cultural e política que está ocorrendo. Estamos passando por uma transformação em profundidade de todo o universo do trabalho.
O desafio é sistêmico. Keynes já se espantava, em 1930, com "a imensa anomalia do desemprego num mundo cheio de necessidades". Todos sentimos os absurdos desta situação. Hazel Henderson traz um comentário interessante de pequenos empresários: "Será que não há nada além da infindável competição, como ratos, nesta competição econômica global (global economic rat race). Será que os resultados continuarão a ir para os que jogam mais rápido, com a força de trabalho mais barata, os que se importam menos com direitos humanos, comunidade, e valores ambientais"?
O sentimento é difuso, mas profundo. Várias gerações viveram com um sentimento de que basta ser sério, dedicado, ou até sacrificado, para que o sucesso seja alcançado. Ou seja, uma pessoa honesta e trabalhadora teria o seu lugar na sociedade. A erosão deste sonho gera um sentimento amplo de insegurança, e mais, de perda de referenciais. De certa forma, não é apenas o problema de ter ou não ter dinheiro para sobreviver, mas das próprias atividades terem ou não terem sentido. A crise é, neste sentido, de civilização.
O estudo de Robert Reich, The future of sucess, é inteiramente centrado neste dilema: "Estou escrevendo aqui sobre como ganhar a vida e sobre como viver (making a living and making a life) e sobre porque conseguir ambos não somente parece, mas é mais difícil. Montanhas de papel e oceanos de tinta foram gastos para detalhar a exuberância estonteante da economia que emerge. No entanto, quase não há discussão sobre o que isto significa para nós como pessoas, ou sobre as escolhas que estão à nossa frente para os diversos tipos de vidas que queremos levar. As angústias mais profundas desta época de prosperidade concernem à erosão das nossas famílias, à fragmentação das nossas comunidades, e ao desafio de mantermos intacta a nossa integridade Estas angústias fazem parte integral da economia emergente, tanto quanto os seus enormes benefícios: a riqueza, a inovação, as novas oportunidades e escolhas. O meu objetivo aqui é convidar para um debate que é mais amplo do que a recomendação "reduza a velocidade e viva". Ver esta luta por um melhor equilíbrio entre trabalho pago e o resto da vida somente como uma luta pessoal, travada privadamente, consiste em ignorar as tendências mais amplas que desequilibram a balança. Trata-se também da questão de como o trabalho é – e de como deveria ser – organizado e recompensado. É uma questão de uma sociedade equilibrada".
Além de perder os sentidos, este universo torna-se opaco. A imensa maioria das pessoas simplesmente sente-se impotente frente a uma dinâmica cada vez menos incompreensível. E o desconhecido é um poderoso gerador de angústia. Ortega Y Gasset exprimiu este sentimento de maneira profunda: "Não sabemos o que está acontecendo, e é exatamente isto que está acontecendo".
A crise é também perversa. A humanidade produz amplamente o suficiente para a sobrevivência digna de todos os habitantes do planeta. O próprio Brasil, com uma renda per capita da ordem de 6 mil reais, poderia, houvesse um mínimo de decência nos processos redistributivos, assegurar uma vida confortável para todos os seus habitantes. Todas as imagens de televisão nos mostram famílias de sucesso, crianças consumindo produtos de luxo, quando não exibem como ridículas pessoas simples, ou simplesmente necessitadas. Não ter sucesso, emprego, dinheiro, passa a significar perder dignidade humana, direito de convívio social.
Uma análise de Álvaro Gomes, sobre a situação dos bancários na Bahia, transmite bem a dimensão extremamente concreta destes dramas sociais: "A precarização das relações de trabalho compromete o sentimento primordial de estabilidade. O fenômeno de desemprego estrutural se apresenta como uma ameaça constante e permanente da possibilidade de exclusão, agudizando o sofrimento psíquico...É evidente que os desempregados, aqueles ameaçados de perder o emprego, os que não conseguiram ainda se inserir no mercado de trabalho, sofrem bastante, porque são atacados os ‘alicerces da sua identidade’". No caso das demissões em massa ocorridas "as ameaças de desemprego e a implementação do projeto de qualidade total nos bancos, especialmente nos Bancos do Brasil e Baneb, resultaram num sofrimento mental incalculável, chegando ao ponto da ocorrência de vários suicídios durante esse processo. No Banco do Brasil foram 22 em um ano, entre 1995 e 1996, no Baneb foram quatro em um ano e seis meses...No Baneb, o aumento dos procedimentos médicos é um indicativo do grau de sofrimento dos bancários e dos familiares. Para ilustrar essa situação, pegamos o número de atendimentos psicoterapêuticos de 1990, 5.233, com 6.428 funcionários para compararmos com o número de 1999, 10.995, com apenas 2.750 funcionários. Se a situação foi tão grave para os trabalhadores, imagine a situação dos 3.678 desempregados, no período de 1990 a 1999".
No plano mais geral, o problema atinge em particular os jovens. Nas palavras de Claude Lévy-Leboyer, "os papéis profissionais representam um elemento capital do desenvolvimento da personalidade adulta e da socialização do indivíduo.(...)Os mais atingidos são os jovens que procuram um primeiro trabalho, exatamente aqueles que, sob o plano psicológico, também estão à procura da sua identidade". A autora, como outros pesquisadores do trabalho, insistem na importância do sentimento de impotência e de incompreensão dos processos de mudança em curso: "Os trabalhadores percebem o ambiente econômico, o mercado de emprego e a sua própria carreira como dominados por forças que lhes escapam. Por isso, seu destino profissional pessoal lhes parece fora do seu controle".
Gera-se assim uma mudança profunda. Cansados de se sentir uma "cortiça que bóia" ao sabor das águas, muitos procuram no setor informal, em atividades sociais mas motivadoras, ou até em segmentos de economia ilegal, formas menos tradicionais de reconstrução da sua relação com o trabalho. Hamilton d’Angelo, em pesquisa de doutorado sobre o camelô de São Paulo, realça a que ponto as pessoas podem freqüentemente encontrar melhor remuneração, mas sobre tudo ter mais controle sobre as suas atividades, serem donas de si. Lévy-Leboyer apresenta um estudo inglês de vida e uso do tempo de onze desempregados bem adaptados: "Todos souberam criar para si uma atividade (política, social, religiosa ou artística) que os ocupa em tempo integral e lhes dá, ao mesmo tempo, o sentimento de desenvolver suas capacidades e de serem úteis à sociedade mais que antes. Nenhum deles desejava voltar atrás". A visão geral é que não basta denunciar a flexibilização: há sem dúvida uma desvalorização relativa do emprego tradicional, e há novos caminhos em construção.
O grande desafio, é compreender a generalização da angústia criada, e construir um sistema de seguridade social que gere um mínimo de confiança quanto ao futuro. E a reação às mudanças não é necessariamente negativa. Como analisava Karl Polanyi, as lutas do século XIX na Inglaterra, retardando alguns aspectos da revolução industrial, asseguraram um maior tempo de transição e contribuíram para reduzir os dramas sociais. O eixo central não está em evitar as mudanças, pois as transformações tecnológicas, e os seus impactos sobre as relações de trabalho, constituem uma realidade. Trata-se de administrá-las, pois sem uma gestão adequada, o que poderia constituir um avanço pode nos levar à barbárie. O grande drama, é que ao analisarmos as tendências atuais dos processos de mudança, o que vemos não é uma renegociação dos interesses sociais, mas uma expansão escandalosa de privilégios.
A indignação chega aos lugares mais insuspeitos. A mensagem que segue parece uma carta de um cidadão indignado: "Senhor Presidente, temos de fazer algo para acabar com este sofrimento. Devemos ir além da estabilização financeira. Devemos abordar os problemas do crescimento com equidade no longo prazo, base da prosperidade e do progresso humano. Devemos prestar especial atenção às mudanças institucionais e estruturais necessárias para a recuperação econômica e o desenvolvimento sustentável. Devemos nos ocupar dos problemas sociais. Devemos fazer tudo isto. Porquê se não temos a capacidade de fazer frente às emergências sociais, se não contamos com planos a mais longo prazo para estabelecer instituições sólidas, se não conseguimos uma maior equidade e justiça social, não haverá estabilidade política. E sem estabilidade política, por mais recursos que consigamos acumular para programas econômicos, não haverá estabilidade financeira". Este texto é importante porque se trata do discurso do presidente do Banco Mundial, em Washington, frente à junta de governadores do Banco. A consciência do impasse planetário gerado já na pertence apenas às esquerdas. E não deixa de ser impressionante o fato de termos um governo mais conservador do que o Banco Mundial.
É útil lembrar aqui um mecanismo simples. O avanço econômico depende em boa parte da capacidade de investimento de cada país. A taxa de investimentos média é da ordem de 20 a 25% do Pib. Traduzidas em investimento per capita, estas taxas mostram um desnível dramático: um país industrializado médio, com uma renda anual per capita de 30 mil dólares, investe algo como 7,5 mil dólares por pessoa e por ano. Já o país em desenvolvimento, com uma renda da ordem de 1 mil dólares, investe 250 dólares. Assim, com a mesma taxa de investimentos, o país pobre, que deveria investir mais para reduzir as disparidades, investe 30 vezes menos. O resultado é que o processo de polarização entre ricos e pobres tende a ser cumulativo. No caso brasileiro, com uma taxa de investimentos da ordem de 16%, para um Pib per capita da ordem de 2,8 mil dólares, o investimento per capita é da ordem de 450 dólares. Não existe nenhum mecanismo espontâneo, capaz de levar a uma reversão desta tendência no plano mundial. Os ricos tendem a ficar mais ricos, os pobres a ficar mais pobres.
No plano nacional, os mecanismos são um pouco diferentes, mas os efeitos muito semelhantes. O sistema capitalista é orientado pelo lucro, e não pelas necessidades. Produzir para pobres não rende, pois não têm capacidade de compra. Assim, as empresas lutam para ocupar o espaço econômico "nobre" do mercado, orientando-se pela demanda dos ricos. Este mecanismo predomina tanto no caso dos produtos industriais, como dos planos de saúde privatizados, das escolas privadas, da estratificação dos programas de televisão (geral, cabo, pay-per-view), e outros. Quando têm acesso a produtos mais sofisticados, os pobres têm de arcar com todos os sobrecustos da demanda em pequena escala, pagando juros escorchantes nos bancos (microcrédito privado a 8,5% por mês, por exemplo) ou nas lojas, quando compram eletrodomésticos a prazo, pagando o dobro do que pagam os ricos.
No conjunto, está se gerando uma consciência planetária de que o capitalismo, ao assegurar espaço de iniciativa para as empresas, constitui um bom sistema de produção. E gera-se igual compreensão de que este sistema não sabe distribuir. Isto é importante, pois o ciclo econômico exige uma sucessão equilibrada de investimento, produção, geração de renda e consumo. Ao não distribuir adequadamente a renda, o sistema é estruturalmente incompleto. A redistribuição da renda através de diversos mecanismos públicos, portanto, não é paternalismo, é uma necessidade sistêmica.
A inexistência de mecanismos redistributivos no início do século XX gerou as bases da expropriação dos capitalistas em boa parte do planeta. O desenvolvimento de mecanismos públicos redistributivos na Suécia, e depois nos Estados Unidos no quadro do New Deal, e de forma generalizada na Europa ocidental depois da II Guerra Mundial, assegurou aos países industrializados várias décadas de prosperidade e de relativo equilíbrio. Em nenhum lugar se conheceu um equilíbrio natural macroeconômico conseguido espontaneamente através de mecanismos de mercado.
A fragilidade econômica da imensa massa de pobres do país se traduz em fragilidade política, e na conseqüente dificuldade de gerar políticas econômicas redistributivas. Ao dedicar uma página especial ao Brasil, o relatório das Nações Unidas sobre pobreza no mundo constata: "O mais notável é que a incidência da pobreza ainda é quase tão elevada como era no fim dos anos 1970, apesar de uma redução de cerca de 21% em 1994 para 15% em 1997. A principal razão desta persistência é a desigualdade muito elevada. Novas políticas são necessárias para reduzir a desigualdade e estimular maior crescimento. A distribuição desigual do gasto social é sem dúvida um fator de maior importância na persistência da desigualdade e portanto da pobreza." As políticas sociais no Brasil, de acordo com o relatório, em vez de reduzir a desigualdade, tendem a aumentá-la: "O grosso dos benefícios se destina à classe média e aos ricos".
Somos um país pobre num mundo que onde a distância entre países ricos e pobres aumenta. Entre os países pobres, somos hoje o país de maior concentração de renda, e portanto de maior discriminação dos pobres. Não bastasse isto, as políticas sociais, que deveriam ser compensatórias, privilegiam os ricos. E quanto mais pobres se tornam os pobres, mais dificuldades haverá de se gerar espaço político para a mudança. Os nós do sistema são bem amarrados. Geramos um mundo de prosperidade tecnológica acoplada a uma miséria medieval. O atraso da transformação das relações sociais faz com que as dinâmicas modernas de avanços tecnológicos e de globalização, que carregam consigo fortes tendências à elitização, reforcem a nossa velha herança de opressão e discriminação, gerando uma situação que, além de ser eticamente vergonhosa, é economicamente burra e politicamente insustentável.
Esperar que o mercado conserte este tipo de situação é evidentemente pouco realista, e poucos economistas nutririam esta esperança de boa fé. Numa visão de século XIX, com inúmeros pequenos estabelecimentos competindo por uma mão de obra relativamente homogênea, podia-se aplicar o velho ditado de que quando dois patrões correm atrás de um operário, os salários tendem a subir, e quando dois operários correm atrás de um patrão, tendem a baixar.
Que lógica de mercado explica o tipo de salário que ganha, no Brasil, o professor primário? É a mesma lógica política que faz que hoje tenhamos 12% analfabetos adultos, enquanto o Japão, que iniciou o seu processo moderno de desenvolvimento em 1868, encerrou o século XIX sem analfabetos. O Japão teve uma política, e não esperou uma mão invisível. Esta política permitiu, por sua vez, avanços tecnológicos notáveis de forma generalizada, e não em ilhas de excelência num mar de miséria.
A entrada das empresas transnacionais, particularmente a partir dos anos 1950, gerou um universo de trabalhadores relativamente bem pagos e protegidos: vindo de países com salários e proteção social incomparavelmente mais elevados, estas empresas podiam pagar melhor e ainda obter grandes vantagens de custo de mão de obra. Formou-se uma elite operária, que por sua extrema concentração empresarial e geográfica, não teve poder de arrastar a massa de trabalhadores do país. Tratou-se aqui muito mais de uma política de um segmento empresarial, do que de mecanismos de mercado. Da mesma forma, são políticas empresariais que hoje reduzem as poucas vantagens obtidas, ao generalizarem a precarização do trabalho.
As profissões liberais adotaram em geral políticas corporativas para proteger-se. É absurdo, por exemplo, que seja obrigatório ter um diploma de jornalista para escrever no jornal. O médico Escoffier-Lambiotte, por exemplo, um dos melhores jornalistas da área da saúde, que escreve no Le Monde, é um bom médico, que por acaso escreve bem. Mas encontramos o mesmo comportamento na área dos economistas: o jornal da Ordem dos Economistas de São Paulo insurge-se que "elementos alienígenas à nossa profissão" (o texto é assim mesmo) façam análises econômicas, filosofia que excluiria os aportes de Adam Smith ou de Karl Marx, para começar. A forma de inserção dos advogados nos sistemas de repartição do produto social, colocando-se como atravessadores necessários de qualquer negociação, é também bastante impressionante: numa herança, para dar um exemplo, os filhos espantam-se com a fatia que caberá ao advogado, de um patrimônio que os pais acumularam durante uma vida de esforços. E se trata aqui de um simples direito de herdeiros. Os advogados custam ao mundo empresarial norte-americano cerca de 320 bilhões de dólares por ano, custos repassados evidentemente aos preços (faz parte do que chamam de custos intangíveis), O corporativismo jurídico se manifesta de norte a sul do país, da faculdade até a aposentadoria.
O nível de remuneração dos médicos, por exemplo, arrebanhados hoje em autênticos currais profissionais pelos planos de saúde. mostra a que ponto o repensar a regulação social do trabalho constitui uma necessidade vital no país. O corporativismo médico foi desarticulado por este amplo supermercado da doença que representam os planos privados de saúde, controlados por grandes empresas da área financeira, área de corporativismo maior.
Que mecanismos de mercado representam estas formas organizadas de pressão? Podemos falar sem dúvida de competição pelos recursos do país, de busca organizada de vantagens, mas não de livre concorrência nem de mecanismos de mercado.
Este ponto não é secundário, pois um sistema que não é regulado pelo mercado, e que não dispõe, por razões históricas no caso brasileiro, de mecanismos públicos sérios de proteção, termina por gerar insegurança generalizada, coisa que não é boa nem para as empresas, nem para os trabalhadores, e muito menos para a imensa massa de excluídos ou semi-excluídos dos segmentos informal e ilegal. Gera-se um clima permanente de guerra social, impedindo o surgimento do principal fator de produtividade que é o capital social, a capacidade de gerar espaços articulados de colaboração e cooperação. Herdamos assim um sistema patológico, onde a tecnologia vai para a frente, e as relações sociais vão para trás.
Não podemos deixar de lado, finalmente, as diversas situações de segmentos parcialmente excluídos, e cujo poder de negociação é praticamente nulo. O metalúrgico pode parar um processo produtivo. Que processo pode paralisar o aposentado, cruzando os braços? De forma geral, os aposentados são jogados numa situação catastrófica e humilhante, e o que torna o processo particularmente vergonhoso para nós, é a própria impotência deste segmento da população. Vamos esperar que o mercado, e a aposentadoria complementar, resolvam o problema? Trata-se sem dúvida de uma alternativa válida para os segmentos privilegiados da sociedade, mas não para a massa de trabalhadores pobres do país.
Um outro imenso segmento fragilizado é constituído pelas mulheres que estão sozinhas à frente de uma família, caso que representa em geral situações desesperadoras, pois vêm-se permanentemente divididas entre a necessidade de trabalhar para sustentar os filhos, e a necessidade de assegurar um mínimo de presença. Hoje, 26% das famílias são dirigidas por mulheres nestas condições, e não se pode esperar delas nenhuma mobilização organizada, pelo próprio esmagamento que significa a sobrecarga e as dificuldades materiais que sofrem.
Que mecanismo de mercado preside ao nível de remuneração do trabalho infantil? Estamos falando em 4,3 milhões de jóvens na faixa de 15 a 17 anos, 1,8 milhão de crianças na faixa de 10 a 14 anos, muitíssimas mais jovens ainda. Como além disto temos milhões de desempregados, que poderiam estar assegurando este trabalho se devolvêssemos as crianças às atividades da sua idade, trata-se de uma burrice econômica e social impressionante, que nos coloca frente ao tamanho real de caos institucional que vivemos.
Uma categoria sempre esquecida é a dos empregados domésticos. O peso deste ramo de atividade é grande: são 6,5 milhões de pessoas ocupadas, quando a totalidade dos ocupados na indústria de transformação atinge 11,7 milhões, e a construção 5,4 milhões. Trata-se em geral de mulheres, (93% do total) freqüentemente submetidas a humilhações impressionantes. Que "troca" existe na negociação individual de uma mulher de poucos recursos, que busca um salário de sobrevivência?
Finalmente, temos de falar da generalidade dos excluídos por pobreza, insuficiente educação, fome e desemprego, gente abaixo da linha da pobreza ou da indigência. Estamos falando aqui, como ordem de grandeza, de 50 milhões de pessoas. É importante entender que os manuais de economia debruçam-se sobre os diversos segmentos dos chamados recursos humanos, e apresentam teorias sobre como, por exemplo, o aumento do salário mínimo ou de direitos sociais pode aumentar o desemprego e coisas do gênero. No entanto, para entrar no jogo de mercado, como é chamado, pelo menos as pessoas têm de estar no jogo, ter uma profissão, ter uma capacidade de trabalho, saúde, educação, formação profissional, um tipo de capital inicial negociável. Grande parte da população fragilizada, no entanto, não tem nada a negociar. O mercado envolve trocas. E os que não têm nada a trocar? São os esquecidos do mercado, da teoria econômica. No entanto, são pessoas, e nenhum mecanismo de mercado irá resolver o seu problema.
Nestas áreas fragilizadas, em particular dos aposentados, de mulheres chefes de família, das crianças, dos excluídos econômicos, é vital formular políticas ativas de inclusão, sob pena de prepararmos uma catástrofe social. É impressionante vermos a capacidade de pessoas ricas se indignarem com a falta de iniciativa dos que foram jogados em situações desesperadoras. Os ricos sempre acharam chocante o ócio dos pobres, e apresentam um grande receio do mal que pode causar qualquer ajuda, qualquer paternalismo. Trata-se, como bem o descreve o relatório das Nações Unidas, de atitudes obscenas, que nenhum argumento econômico pode justificar.
Os caminhos que temos pela frente envolvem indiscutivelmente uma transformação profunda das relações de trabalho em geral. O motor desta transformação é, sem dúvida, a tecnologia, que avança rapidamente. Mas os mecanismos reguladores da transformação, ou os novos pactos sociais que devem emergir, ainda engatinham. O descompasso gerado leva ao caos que enfrentamos. Hoje, resgatar a governabilidade do processo de mudança é essencial, e o desenho de novas políticas, de novos espaços de parcerias e de elaboração de consensos, ou de luta quando necessário, tornou-se muito mais importante do que construir um carro mais veloz, que trafegará na velocidade das carroças do início do século nas caóticas cidades que construímos.
A visão geral que aqui queremos descrever, é que a regulação social do trabalho tornou-se indispensável, mas não será suficiente. Quando a mudança é sistêmica, não basta nos concentrarmos num aspecto. Estamos enfrentando, na realidade, uma mudança da própria sociedade, e o estudo da mudança de trabalho precisará referir-se ao processo mais amplo de que faz parte.
Ninguém duvida que necessitamos de qualificação profissional. Mais do que isto, precisamos promover de forma generalizada a educação de base no país. Dos 93 milhões de pessoas economicamente ativas em 2004, 19,6 milhões não tinham nenhuma instrução ou até três anos, entrando portando no nível dos analfabetos funcionais. Mais 25 milhões tinham o ensino fundamental incompleto, até o 7º ano. Como ordem de grandeza, estamos entrando na sociedade do conhecimento com praticamente a metade da PEA sem sequer o ensino fundamental, e quase um quarto de analfabetismo funcional.
A dimensão deste problema deve ser ressaltada. Enquanto em 1868 o Japão se lançava na modernização, investindo prioritariamente em todas as formas possíveis de educação, exatamente um século mais tarde, no Brasil, declarava-se que o social viria depois: primeiro, teríamos que fazer crescer o bolo. É verdade que a nossa taxa de analfabetismo está baixando. É um consolo limitado, quando sabemos que o nível de educação exigido para uma inserção profissional adequada está se deslocando rapidamente para cima. É com a herança que vimos acima, que temos de organizar a nossa transição para a sociedade do conhecimento.
A opção política tem sido, até hoje, tornar os indivíduos responsáveis por sua empregabilidade. De certa forma, se não estão empregados adequadamente, ou simplesmente desempregados, a culpa seria a sua inadequação individual ao mercado do trabalho. Esta visão da empregabilidade tem limitações óbvias. Numa reunião que tivemos sobre o tema, na Assembléia Legislativa de São Paulo, um senhor se queixava que, sendo marceneiro desempregado, tinham lhe conseguido um curso de encanador. No curso, conheceu um encanador desempregado que estava aprendendo marcenaria. Na realidade, os problemas não são individuais.
Estudos de Helena Hirata mostram a que ponto os próprios avanços de anos de estudos na Europa se devem menos à necessidade de preencher postos de trabalho existentes, do que ao objetivo de reduzir a pressão do desemprego jovem, ao retardar a entrada no mercado de trabalho. Inclusive, o desemprego de diplomados já se manifesta de maneira bastante ampla.
Foi-se o tempo em que seguíamos os passos profissionais dos nossos pais. Hoje, surgem profissões que só a nova geração conhece. Foi-se o tempo em que a vida era dividida numa cronologia clara, estudo primeiro, depois o trabalho e a aposentadoria. Toda pessoa hoje precisa periodicamente voltar a estudar, sob pena de se ver marginalizada, de não saber utilizar novos equipamentos que se desenvolvem em todos os setores. Nossas divisões tradicionais são cada vez menos funcionais.
Um exemplo de política inovadora pode ser visto no Grande ABC. Os prefeitos, reunidos no Consórcio do Grande ABC, adotaram uma política conjunta de dinamização das atividades econômicas, visando reduzir o impacto da emigração industrial. A forma como estão manejando a dinamização das atividades do setor dos plásticos é exemplar. Contrataram a Unicamp para elaborar um estudo conjunto de estratégia setorial. Trata-se de um setor de pequenas unidades produtivas, encaixadas entre duas áreas de gigantes, a petroquímica que fornece a matéria prima de um lado, e os hipermercados de outro. Sem forte organização própria, iriam sofrer a mesma sorte dos pequenos produtores de tabaco frente à Souza Cruz, ou dos pequenos produtores de tomate frente à Cica etc.
As sucessivas reuniões permitiram traçar o conjunto de iniciativas necessárias para dinamizar o setor. Foi feita uma parceria com a USP, resultando no Prumo, Programa de Unidades Moveis de apoio tecnológico. Para a requalificação dos trabalhadores foi feita uma parceria com o sindicato dos químicos, e a Fiesp entrou disponibilizando a Escola Mario Amato, de Diadema. As prefeituras asseguraram a formação de base através dos programas Mova e Seja de formação de jovens e adultos. Os próprios pequenos empresários passaram a organizar o seu sistema de compra, promoção e venda em conjunto, pois dificilmente um pequeno produtor isolado consegue vantagens comerciais sozinho.
A lógica do processo é que em vez de se assegurar um simples curso para trabalhadores individuais, partiu-se de uma compreensão mais ampla da dinâmica integral de um setor de atividades. E não adiantaria estar apenas formando mais gente, se o setor não consegue expandir o mercado, assimilar novas tecnologias e assim por diante. Entendeu-se que as cadeias produtivas funcionam como ciclos, tendo de desenvolver de maneira equilibrada e articulada o investimento, a renovação tecnológica, a formação da mão de obra, os controles de qualidade, a promoção, a comercialização. Não adianta modernizar um segmento apenas do processo produtivo, e esperar que surjam empregos. Trata-se de dinamizar processos produtivos, e neste processo mais amplo realmente a qualificação profissional torna-se útil.
Esta compreensão, por sua vez, exige uma outra visão das coisas, uma mudança de cultura política. A sinergia de um conjunto de atores sociais, no caso as empresas, os trabalhadores, os sindicatos, as prefeituras, as universidades, entidades de apoio como Sebrae, não vai resultar de uma convergência natural de planos elaborados separadamente. Cada ator deve entender em profundidade os interesses vitais dos outros atores, e procede-se a uma busca em conjunto das soluções que permitam uma elevação geral da produtividade dos esforços.
A cultura herdada por nossas classes dirigentes, com honrosas exceções, é de que se trata de extorquir o máximo de vantagens sempre, para vencer. Qualquer concessão é vista como porta aberta para outras concessões. Com isto, fecha-se as portas à construção de espaços convergentes de interesses, e ao maximizar a produtividade micro-econômica, reduz-se absurdamente a produtividade social.
Veja-se uma experiência concreta de política de emprego: o prefeito David Capistrano, em Santos, organizou um cadastro de desempregados, e organizou um amplo programa de recuperação das praias, envolvendo tanto o controle dos canais, como uma ampla operação de limpeza das praias, com recursos da própria prefeitura. Santos voltou a ser uma cidade atraente para o imenso mercado vizinho de turismo, São Paulo. O aumento de atividades hoteleiras e de restaurantes aumentou fortemente as receitas da prefeitura, mais do que pagando o que foi gasto com os desempregados. Santos reviveu, os comerciantes ganharam mais, os desempregados tiveram trabalho e renda, seus filhos tiveram melhores condições de desenvolvimento. Mas foi preciso ultrapassar a tradicional visão de uma política centrada em contratos com grandes empreiteiras, para realizar grandes obras que se inauguram em fins de mandato. A prefeitura, no caso, foi a articuladora de diversos interesses sociais para melhorar o funcionamento do que já existia.
Esta visão, no entanto, implica numa mudança de visão das coisas, numa mudança de cultura política. A empregabilidade é um processo social.
As políticas locais integradas
Não há dúvida que as políticas de emprego no sentido amplo dependem em grande parte de políticas macro-econômicas, como da taxa de investimentos, da taxa de juros, da proteção de determinados setores, da abertura de canais de exportação e assim por diante. No entanto, é impressionante o que se pode fazer com políticas locais, no nível, por exemplo, dos municípios.
De forma geral, não estamos acostumados a olhar o município como espaço social e econômico integrado, ou seja, como unidade de acumulação. Se visitamos uma fábrica, e vemos que o proprietário comprou dez caminhões quando tem utilidade apenas para três, deixando os outros parados, achamos uma idiotice, um desperdício. No entanto, cada município tem milhares de hectares de terra parada, um grande número de desempregados, os seus trabalhadores perdem horas improdutivas no trânsito, gastando gasolina inutilmente, e assim por diante. Não nos preocupamos com isto, porque achamos que os hectares parados são um problema particular do proprietário, que o desemprego é um problema individual de um trabalhador que não soube se formar e encontrar trabalho, que o problema do trânsito é que as pessoas gostam de andar de carro.
Em outros termos, se pensássemos o município como unidade de acumulação, como espaço que tem de utilizar os seus fatores de maneira minimamente racional, começaríamos a notar e a avaliar sistematicamente os recursos sub-utilizados, o tempo perdido pelo cidadão, as irracionalidades acumuladas. A produtividade social é um conceito importante. Em termos de redução de custos, por exemplo, uma secretaria de saúde pode achar que está economizando dinheiro ao terceirizar um serviço. Mas serviços privatizados tendem a buscar os lucros da saúde curativa, desleixando a prevenção. O resultado prático será uma forte elevação dos custos de saúde para o conjunto do município, e queda da produtividade social. Não investir na saúde materno-infantil, por exemplo, gera depois custos dezenas de vezes superiores para sustentar durante toda uma vida uma pessoa com problemas crônicos de saúde.
De forma geral, sai muito mais caro sustentar os impactos indiretos da pobreza e da ausência de políticas sociais, do que desembolsar os recursos que seriam necessários para tirar as pessoas da pobreza. Mas o essencial para nós, neste ponto, é que no nível da administração local pode-se articular políticas de renda-mínima e de educação, de educação e de saúde, de inclusão social com geração de emprego e renda. Não que iniciativas não sejam viáveis no nível nacional: o governo federal pode aprovar leis adequadas e orçamentos para os diversos setores, e facilitar muito inclusive dinamização de políticas locais. Mas é no plano local que se pode juntar as diversas políticas setoriais para formar uma política econômica e social coerente no seu conjunto, pois podem ser organizadas as parcerias necessárias, podem ser ouvidos os atores sociais mais interessados em cada problema, pode-se gerar um processo articulado de desenvolvimento.
Em Belo Horizonte, por exemplo, o governo municipal tirou a verba da merenda escolar das grandes empresas intermediárias, e firmou algumas centenas de convênios com grupos de pequenos agricultores do cinturão verde da cidade. Com isto reduziu-se a corrupção tradicional nesta área, e expandiu-se o emprego ao dinamizar a pequena produção horti-fruti-granjeira da região. Como os convênios exigem cultivo sustentável, as crianças passaram a receber, nas escolas, alimentos sem produtos químicos. Não é secundário, no caso, o fato de grupos de pequenos agricultores, ao se responsabilizarem pelo abastecimento de uma escola, deixaram de produzir apenas para o mercado anônimo: é um valor importante, em termos humanos, a satisfação de um agricultor de produzir um belo tomate para as "suas" crianças. Isto é geração de capital social, representa enormes economias indiretas em termos integração social, de redução de criminalidade, de melhores condições de saúde e assim por diante.
Um vez mais, a política de emprego, de direitos sociais, de redução da exclusão, precisa deixar de ser vista como política setorial isolada, "geração de emprego e renda", ou como "fatias" setoriais, mas como uma política articulada, e o espaço privilegiado de ações sociais e econômicas articuladas é o espaço local.
Este tipo de enfoque não é necessariamente bem visto na nossa cultura política tradicional. A descentralização parece à primeira vista constituir uma perda de poder do nível central de governo. As coisas não se passam necessariamente desta maneira. O poder não é um bolo, onde se alguém come mais, outro comerá menos. A capacidade institucional de organizar os processos de transformação social passa pela adequada estruturação do que Aldaíza Sposati chama de "mapa do processo decisório".
No nosso, caso, o problema é em grande parte institucional. Apesar de significativos avanços com a constituição de 1988, o poder local ainda continua bastante limitado. Vimos acima que nos países desenvolvidos, o Estado gere aproximadamente 50% do Pib, enquanto nos países em desenvolvimento atinge apenas cerca de 25%. Como o Pib é bastante menor no caso dos países pobres, a diferença é imensa, e o nosso problema seguramente não é reduzir tamanho do Estado, mas racionalizar o seu funcionamento. Este último argumento nos leva a outra diferença essencial entre países ricos e pobres, que é de onde se concentra a máquina do Estado: quando analisamos a distribuição do bolo dos recursos públicos, vemos que os poderes locais administram, nos países ricos, entre 40 e 60% do total, enquanto nos países pobres administram entre 5 e 15%.
Em termos históricos, o processo é compreensível. Com uma urbanização mais antiga, fruto dos próprios processos de industrialização, os países hoje desenvolvidos passaram os recursos públicos para onde se apresentam os grandes problemas do nosso cotidiano, para as cidades. No nosso caso, a urbanização ainda é extremamente recente, não tendo sido acompanhada pelas transformações institucionais correspondentes. Nos anos 1950, ainda éramos um país rural, com dois terços da população vivendo dispersa nos campos. Nestas condições, era natural que o poder do Estado se concentrasse nas capitais, onde havia governo, técnicos, bancos, poder de decisão.
Hoje temos 83% de população urbana. No espaço de duas gerações, realizou-se um gigantesco êxodo rural. Contrariamente aos países ricos, onde o êxodo rural resultava da expansão industrial e da conseqüente atração urbana, no Brasil o processo foi dominantemente de exclusão rural, fruto de um triplo movimento de expansão da monocultura, de tecnificação do campo, e do uso da terra como reserva de valor ou como objeto de especulação financeira. Esta transformação deu-se de maneira extremamente acelerada, jogando grandes massas de pobres rurais nas cidades, sem empregos pré-existentes. O ritmo de urbanização não permitiu que as infraestruturas urbanas acompanhassem. Dotar periferias pobres de escolas, saneamento, segurança, escolas e outras infraestruturas, quando os novos bairros cresciam a taxas freqüentemente superiores a 10% ao ano, não era viável, sobretudo quando os recursos públicos eram, e continuam sendo, pouco descentralizados. E com poucos empregos, vivendo muitas vezes de bicos, os novos residentes urbanos não teriam capacidade própria de financiamento.
Os problemas mais dramáticos acumulados no país são relativamente simples. Trata-se muito menos de conseguir exportar mais soja ou de produzir mais automóveis, do que de assegurar infraestruturas básicas e políticas sociais para os dois terços de pobres do país. Este tipo de atividade precisa ser gerido localmente, por pessoas que conhecem a situação específica de determinado município. E em termos funcionais, como numerosas experiências de orçamento participativo têm demonstrado, nada como associar a uma iniciativa a população diretamente interessada.
É interessante aqui ver o mecanismo de regulação que Ove Pedersen chama de negotiated economy, economia negociada: "É minha asserção que os países escandinavos estão crescentemente assumindo o caráter de uma economia negociada. Uma parte essencial, e crescente, da alocação de recursos produtivos bem como a (re)distribuição do produto é determinada nem pelo mercado, nem por processos autônomos de tomada de decisão de autoridades públicas. Em vez disto, o processo de tomada de decisão é conduzido através de negociações institucionalizadas entre os agentes interessados relevantes, os quais chegam a decisões vinculantes tipicamente baseadas em imperativos discursivos, políticos ou morais, mais do que baseadas em ameaças e incentivos econômicos".
Trata-se aqui de processos de tomada de decisão que já existem, e funcionam. E são negociações institucionalizadas, ou seja existem formas organizadas e reguladas de consulta a todos os agentes interessados. O passo é importante, e faz parte de uma silenciosa revolução política. Com efeito, organizar a economia, de forma a que seja socialmente útil, já não depende de expectativas isoladas do governo por um lado, ou da empresa por outro, mas da articulação sistêmica através da sociedade civil organizada.
O potencial das políticas sociais
Ainda não estamos acostumados a ver as políticas sociais como motor de um processo de acumulação. Um prêmio "Nobel" de economia norte-americano declarou recentemente que estava cansado de uma visão de que gastar com indústria seria investimento, enquanto gastar com saúde ou educação seria ‘gasto’. Na realidade, hoje já se entende que sem investir no homem, investir na maquina terá pouco sentido.
O próprio peso das políticas sociais mudou radicalmente dentro da sociedade. Uma estimativa já antiga do Banco Mundial era de que o Brasil gastava 25% do Pib na área social. Outras estimativas mencionam 20%. O detalhe da cifra não é essencial aqui. O argumento central é que a área social tornou-se hoje o conjunto mais significativo já não só do ponto de vista social, mas do ponto de vista econômico. Nos Estados Unidos, hoje, o conjunto da indústria manufatureira representa cerca de 16% do Pib, emprega menos de 10% da mão de obra e continua reduzindo a sua participação, enquanto a saúde representa sozinha 15%, tornando-se o maior setor econômico norte-americano. Se somarmos outros tantos para educação, que se expande sob diversas formas, inclusive nas universidades e centros de formação corporativos, e áreas extremamente dinâmicas como cultura e entretenimento, estamos falando em algo como 40% do Pib. Assim, as políticas sociais tornam-se a nova locomotiva de expansão de atividades econômicas em geral.
A visão sobre a sua função social também muda rapidamente. Até meados do século XX, as políticas sociais eram essencialmente vistas como um tipo de "esparadrapo" para pobres, enquanto os ricos tinham os seus próprios sistemas privados e bastante restritos. A partir dos anos 1970, em boa parte já sob pressão das inovações tecnológicas, passou-se a entender que dinheiro gasto com educação, por exemplo, podia significar mais expansão de atividades produtivas do que dinheiro gasto com máquinas. Nascia a visão da "educação para o desenvolvimento", na linha do Banco Mundial.
A partir dos anos 1990, as Nações Unidas passariam a dar grande visibilidade a uma reformulação radical das funções das políticas sociais. N63o é que a educação seja boa, neste sentido, porque ajuda a desenvolver recursos humanos para as empresas: a educação é boa em si. Em outros termos, uma vida com educação, cultura, saúde, lazer, segurança, habitação, meio ambiente, é exatamente o que queremos da vida. As atividades da industria, de bancos, de comércio, são os meios, e têm de gerar dinâmicas econômicas que permitam financiar a qualidade de vida, objetivo último do conjunto das nossas atividades. Invertia-se assim a visão dos resultados dos nossos esforços de desenvolvimento. Na contabilidade tradicional, o Banco Mundial apresenta o Pib das nações, e o Brasil aparece como 9ª potência mundial. Nas contas do IDH (Indicadores do Desenvolvimento Humano), mede-se o resultado prático para a qualidade de vida da população, e o Brasil ocupa o 63º lugar.
Em torno da nova visão, nascia também o interesse privado com a área. Quando as políticas sociais eram essencialmente coisas para pobre, ficaram tranqüilamente empurradas, como custo, para o Estado. Hoje, saúde, educação e até segurança, estão se tornando o grande negócio, e estão sendo apropriados pelo setor privado. No Brasil, combinamos o atraso das políticas sociais tradicionais, com os efeitos perniciosos de uma privatização selvagem. O exemplo da saúde é neste sentido interessante.
É preciso considerar, antes de tudo, os limites das políticas sociais ancoradas em relações formais de trabalho. No Brasil, devido à presença relativamente fraca, se compararmos com países desenvolvidos, da relação de trabalho de assalariado formal, a presença dos planos de saúde fica relativamente restrita. Apenas 29 milhões de pessoas encontravam-se cobertos por planos privados de saúde em 1998, contrariamente às informações da ABRAMGE (Associação Brasileira de Medicina de Grupo) que afirmava cobrir 41 milhões de pessoas. Se acrescentarmos as pessoas cobertas por planos específicos de assistência ao servidor público ou a militares, (9,7 milhões) atingiamos um total de 39 milhões de pessoas cobertas, 24,5% da população. O que significa que 75,5% da população não estava coberta por planos de saúde. A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) apresenta uma cobertura total de 35,8 milhões de pessoas em 2006 o que, comparando com os dados de 1998 vistos acima, mostra que as proporções se mantêm.
Os planos privados buscam naturalmente as faixas de menor risco, e de maior capacidade aquisitiva. "A cobertura por plano de saúde é também maior entre as pessoas que avaliam seu estado de saúde como ‘muito bom e bom’ (25,9%) e diminui à medida que a auto-avaliação do estado de saúde piora. Entre as pessoas que avaliam como ‘ruim ou muito ruim’ seu estado de saúde, a cobertura é menor: 14,5%. Observa-se uma associação positiva entre cobertura de plano de saúde e renda familiar: a cobertura é de 2,6% na classe de renda familiar inferior a 1 salário mínimo, cresce para 4,8% entre pessoas cuja renda familiar está entre 1 e 2 salários mínimos, e passa a crescer com maior intensidade na demais classes de renda: 9,4% (2 a 3 salários mínimos), 18% (3 a 5 salários mínimos), 34,7% (5 a 10 salários mínimos) e 76% (20 salários mínimos e mais)."
"Os planos de saúde atuam no sistema de saúde brasileiro introduzindo mais um elemento de geração de desigualdades sociais no acesso e na utilização de serviços de saúde, na medida em que cobrem uma parcela seleta da população brasileira na qual predomina: pessoas de maior renda familiar, inseridas em determinados ramos de atividade do mercado de trabalho, e que avaliam seu estado de saúde como ‘muito bom’ ou ‘bom’."
Portanto: saúde cara, curativa e não preventiva, concentrada em alguns segmentos profissionais, e em geral para as pessoas mais saudáveis. A frágil cobertura dos mais pobres sai caro para a sociedade: "É preciso destacar, conclui a pesquisa do IBGE, que as pessoas sem rendimento foram as que apresentaram o maior coeficiente de internação hospitalar (11,5 por 100 pessoas no grupo)". O SUS representa um imenso avanço, e é hoje acampanhado com interesse em outros países, mas enfrenta a tensão permanente com o setor privado que busca o lucro. Não se escapa desta realidade prosaica: para quem quer lucrar com saúde, mais um doente é mais um cliente. O conjunto de políticas sociais que tornam a população mais saudável, como saneamento, acesso à alimentação e água limpa, generalização da vacina e outros elementos preventivos despertam pouco interesse nesta área. É significativo que o SUS, com o grande avanço que representa, tenha tido a sua origem nos movimentos sociais ligados à saúde, e não no setor privado ou na máquina estatal.
Este tipo de solução privatista para minorias, ou de não-solução, predomina nos diferentes setores das políticas sociais. Quando vemos os absurdos que se atinge ao privatizar a saúde, vêm nos naturalmente a saudade de sistemas do Estado. Na realidade, as políticas sociais obedecem a relações técnicas de produção bastante particulares: trata-se de serviços que precisam ser entregues às pessoas diretamente, e a cada pessoa do país. O serviço de saúde precisa atingir cada casa, cada pessoa. A escola precisa atingir todas as crianças, e assim por diante. Desenvolver sistemas intensamente capilares a partir de uma gestão centralizada produz imensas pirâmides burocráticas, ineficientes e em geral corruptas.
Frente a uma área que está se tornando dominante nos processos modernos de desenvolvimento, temos portanto um desafio: nem as tradicionais burocracias estatais, e muito menos os sistemas privados centrados no lucro a qualquer custo, respondem às necessidades de produzir serviços sociais adequados. As nossas heranças institucionais e organizacionais, e as correspondentes teorias administrativas, estudam a pirâmide burocrática e a máquina empresarial. Conhecemos Weber e Taylor. Quais serão os paradigmas de gestão que correspondem às políticas sociais?
De forma simplificada mas realista, os novos paradigmas de gestão social que surgem concentram-se na descentralização e na participação. Hoje se constata cada vez mais que praticamente todos os setores da área das políticas sociais, saúde, educação, cultura, informação, lazer, esporte, habitação, segurança – funcionam muito mais adequadamente quando as decisões são tomadas o mais perto possível da população interessada nos resultados. A descentralização pode, no quadro das nossas tradições políticas, levar a um reforço do caciquismo local. Mas no conjunto, trata-se de uma condição praticamente indispensável da racionalidade da gestão social.
A descentralização é essencial para garantir o segundo pilar da gestão social, que é a participação. As pessoas podem participar ativamente quando se trata de projetos da sua região, referentes à realidade que conhecem. E uma comunidade que participa da gestão de uma escola, por exemplo, está muito interessada em assegurar a boa qualidade do ensino para os seus filhos. De certa forma, capitaliza-se o interesse das comunidades com a qualidade da sua própria vida, como instrumento racionalizador da gestão.
O terceiro pilar deste novo paradigma da gestão está na informação. Não há participação adequada com uma comunidade desinformada. Criar os sistemas de informação é necessário tanto para a racionalidade da gestão, como para os mecanismos participativos. Em outros termos, gera-se a transparência, através dos meios de comunicação local.
Não se trata aqui, naturalmente, de assegurar apenas a racionalidade da gestão. Uma comunidade participativa, que acompanha os problemas de gestão da sua localidade, também constrói cidadania, amplia o capital social, gera uma nova cultura política. Uma cultura política baseada na consciência, informação adequada e mecanismos participativos reflete-se necessariamente no comportamento empresarial, nas exigências sindicais, nas atitudes do consumidor, nas políticas reais de proteção e seguridade social.
No conjunto, há poucas dúvidas de que não basta criar ilhas de excelência em alguns segmentos empresariais. É preciso promover sistematicamente uma mudança de cultura da gestão social, articulando diversas mudanças que poderão ter efeito sinérgico umas sobre as outras. E neste sentido, as políticas sociais podem constituir um poderoso construtor das articulações sociais que tanto necessitamos.
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