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Direitos republicanos, identidades colectivas e esfera pública no Brasil e no Quebec. (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Partes: 1, 2, 3

a) A Expansão dos Direitos e a Percepção da Cidadania no Brasil

Muitos analistas já chamaram a atenção que a expansão dos direitos de cidadania no Brasil não seguiu o processo tradicional descrito por Marschall (1976), no qual os direitos civis, os políticos e os sociais foram institucionalizados nesta ordem (Cardoso 1991, inter alia). De fato, os três tipos de direitos de cidadania definidos por Marschall não só foram estabelecidos e expandidos mais ou menos ao mesmo tempo no Brasil, mas, em alguma medida, poder-se-ia dizer que os direitos sociais assumiram a liderança do processo, mesmo que seu nível de institucionalização seja ainda insatisfatório nos dias de hoje. Tratando-se de uma sociedade onde a escravidão era uma instituição legal até 1888, e onde as classes médias urbanas assim como a classe trabalhadora eram relativamente pequenas e politicamente frágeis até os anos cinquenta, durante muito tempo a maior parte da população estava na realidade excluída do exercício dos direitos civis e políticos, mesmo quando estes já existiam no papel ou já estavam previstos em lei. Seja devido à falta de educação e à ignorância sobre direitos de cidadania, ou devido ao fato das condições sociais e do senso comum correspondente enfatizar uma visão hierárquica do mundo social — especialmente nas áreas rurais onde a maioria da população vivia antes de 1950 —, a realidade é que de uma maneira geral os direitos de cidadania não estavam ao alcance de uma parcela significativa da população. Tal quadro é particularmente interessante porque, de certo modo, de um ponto de vista formal, com excessão dos dois períodos de ditadura (1935-45 e 1964-85) o Brasil se constituiu numa democracia liberal desde a promulgação de sua primeira constituição em 1824. Mesmo levando-se em conta que neste momento o voto era censitário, situação que perdurou até 1891, quando as restrições econômicas foram banidas e o voto universal foi estabelecido, deixando fora do sistema apenas os analfabetos, os vagabundos, os soldados e os homens religiosos, além da exclusão significativa das mulheres, que só passaram a gozar do direito de votar em 1933.

Mas se, de um ponto de vista formal, os direitos civis e políticos já estavam em grande medida legalmente sancionados na virada do século, este não era o caso dos direitos sociais, cuja legislação era muito tímida até os anos trinta, marcando o início da era Vagas, quando o ministério do trabalho foi criado (em 1931). Neste momento também foi aprovada no Congresso uma lei sobre direitos de férias e os direitos de securidade social foram ligeiramente ampliados, para incluir a instituição de um seguro contra acidentes de trabalho, ao lado do estabelecimento de fundos de pensão governamentais e seguro de saúde. Entretanto, o acesso a estes direitos e benefícios era mediado pela carteira de trabalho dada para os trabalhadores cujas ocupações estavam reguladas pelo Estado. A apresentação da carteira de trabalho por parte dos trabalhadores era um requisito para o acesso aos serviços e/ou para que suas demandas fossem processadas. Esta situação motivou Santos a definir a condição dos trabalhadores através da noção de cidadania regulada:

"…Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões, antes que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei.

Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece…." (Santos 1987:68) Deste modo, todos os trabalhadores rurais e aqueles que trabalhavam em áreas urbanas, mas cujas ocupações não estavam legalmente reguladas pelo Estado, eram excluídos dos respectivos direitos e vantagens. Na mesma direção, se a carteira de trabalho foi instituída em 1932, os sindicatos foram legalizados mais ou menos na mesma época e passaram a ter um papel importante na esfera pública, como mediadores oficiais e obrigatórios entre as demandas dos trabalhadores e o Estado. Como apenas os trabalhadores cujas ocupações/profissões haviam sido reguladas poderiam se associar em sindicatos, eles eram os únicos habilitados a apresentar reclamações trabalhistas às Juntas de Conciliação e Julgamento, assim como desfrutar certos benefícios, como tirar férias por exemplo (Santos 1987:69). A citação acima indica que a legislação trabalhista que entrou em vigor na década de trinta não apenas excluía a maioria da população dos direitos sociais implementados no período, mas estabelecia uma hierarquia entre as ocupações/profissões reguladas, instituindo diferenças de acesso aos direitos segundo o status de cada uma.5 Numa palavra, este processo de expansão de direitos significou que os direitos sociais não foram estabelecidos segundo princípios universalistas, o que motivou a formação de fortes identidades coletivas associadas à filiação sindical, tornando difícil a articulação de um discurso coerente em defesa de uma perspectiva universalista sobre os direitos de cidadania, dado que tal perspectiva não encontrava respaldo entre os trabalhadores.6 Como assinala Santos, a carteira de trabalho se tornou uma certidão de nascimento cívico para o cidadão regulado (Idem:69).7

Por outro lado, a carteira de trabalho também se tornou um símbolo importante de identidade social, que poderia ser exigido pela polícia em suas rondas, ou em diligências nas favelas urbanas, quando o documento é frequentemente solicitado de maneira arbitrária, ainda que sob o argumento de suspeição. Neste contexto, a carteira de trabalho é tomada como um símbolo de correção e de dignidade, que identifica os cidadãos respeitadores da lei, fazendo com que aqueles que não têm a carteira possam ser tratados pela polícia como vagabundos ou cidadãos desqualificados, tornando-se imediatamente suspeitos, e ficando sujeitos a atos de desconsideração,8 a provocações e arbitrariedades por parte da polícia. Na realidade, isto significa que as pessoas que não têm carteira de trabalho e que são pobres, naturalmente, estão sujeitas a terem seus direitos civis arbitrariamente questionados (quando não violados) pela polícia.9

Além disto, a regulação de ocupações e/ou profissões pode trazer ainda outros benefícios para aqueles trabalhadores registrados nelas. Um destes benefícios mais significativos é a reserva de vagas no mercado de trabalho, às quais os trabalhadores e/ou profissionais registrados passam a ter acesso exclusivo. Isto é, em tais ocupações/profissões só aqueles trabalhadores que foram formalmente registrados podem ser legalmente contratados. Se faz sentido sancionar legalmente este tipo de constrangimento para contratações ou para o exercício da profissão em áreas como direito e medicina, onde a falta de treinamento adequado do profissional pode prejudicar seriamente as condições de existência ou a saúde do cliente, não se pode dizer o mesmo no caso de profissões como jornalismo, por exemplo, que não expõem aos mesmos riscos aqueles que se utilizam dos seus serviços. Neste sentido, deve-se observar que a atividade jornalística frequentemente exige treinamento em outras áreas (e.g., economia, ciência política, sociologia etc), cujos especialistas eram até recentemente formalmente recrutados pela imprensa sem que o diploma de jornalismo fosse exigido, e tinham bom desempenho em suas funções.

Ainda que a institucionalização da carteira de trabalho, e da legislação trabalhista que veio com ela, tenha caracterizado um processo desigual e injusto de formalização dos direitos sociais, com suas respectivas implicações para o status da cidadania também em outras áreas, este processo não deixou de representar, ao mesmo tempo, uma expansão significativa dos direitos de cidadania. Contudo, as identidades coletivas formadas durante este período, em conexão com a regulamentação de profissões ou ocupações, se articulam bem com a estrutura hierárquica da sociedade brasileira (no que concerne ao ethos da população e a sua visão de mundo), e continuou tendo um impacto na definição de políticas públicas durante todo o processo de redemocratização que culminou com a promulgação na nova Constituição, tendo ainda hoje um papel importante na esfera pública. Isto é, com a diferença significativa de que parte da legislação recente cuja elaboração foi motivada por esta perspectiva, com o apoio dos sindicatos, não pode ser vista como um avanço inequívoco no processo de expansão dos direitos de cidadania.

Basta lembrar alguns aspectos dos direitos sociais sancionados pela nova Constituição de 1988, alguns dos quais são tematizados de maneira reveladora nos debates atuais sobre as propostas de reforma constitucional encaminhadas pelo governo, ou na polêmica em torno da institucionalização de um sistema de eleição paritário para a escolha do reitor e dos diretores das universidades federais.

No primeiro caso, penso especialmente na aprovação do Regime Jurídico Único (RJU) pelo Congresso, mudando a situação funcional ou o carácter do vínculo empregatício dos servidores públicos, os quais ganharam tantos direitos especiais que, sob importantes aspectos, é difícil não pensar sobre eles como um grupo de trabalhadores privilegiados. Contudo, o mais impressionante em tudo isto é que, como outras tentativas ou esforços legislativos do mesmo tipo, a aprovação do RJU foi motivada por preocupações que visavam a justiça social. Ou seja, medidas satisfazendo interesses privados são formuladas como (se fossem) um benefício para a sociedade mais ampla, e privilégios ilegítimos são apresentados sob a capa dos direitos sociais, como se estivessem apoiados em princípios universalistas. Neste sentido, devo dizer que, além das tradições culturais que impulsionaram o fortalecimento das identidades coletivas mencionado acima, há pelo menos dois aspectos que precisam ser considerados para tornar inteligível a distância entre os ideais de justiça social e a promulgação de leis que, na realidade, sugerem a direção oposta: (a) o fato da Constituição ter sido votada imediatamente após um longo período de ditadura, dentro do qual foi produzido um grande déficit em relação aos direitos de cidadania (não apenas sociais), e o Congresso estava ansioso para reverter este quadro; e, (b) o país estava atravessando um longo período de hiper inflação no qual a maioria das pessoas havia perdido qualquer referência para apoiar suas avaliações econômicas ou financeiras, e o governo havia perdido o controle sobre o real significado de seu orçamento.10

Assim, o RJU estabeleceu um regime de estabilidade para todos os servidores públicos e um sistema previdenciário no qual eles não apenas se aposentavam com o salário integral, mas tinham "direito" a um aumento para tornar o salário equivalente à próxima posição na carreira, ou a uma elevação salarial de 20% para aqueles que já estavam no topo! Se somarmos a isto o fato de que até recentemente todo homem podia se aposentar depois de 35 anos de trabalho (30 anos no caso das mulheres), independentemente do período de contribuição previdenciária, ou do valor desta, é fácil imaginar o tamanho do déficit potencial de tal sistema. Especialmente se tomarmos como referência os segmentos de melhor remuneração no funcionalismo público, cujos membros são também aqueles que se aposentam mais cedo, que vivem mais, e que contribuem proporcionalmente menos para o sistema antes da aposentadoria. Sem dúvida, este é um sistema extremamente iníquo, qualquer que seja o angulo tomado para examiná-lo. Uma consequência imediata do sistema é que os trabalhadores da iniciativa privada pagam duplamente por este privilégio do funcionalismo público: primeiramente, porque os direitos especiais do funcionalismo são pagos com o dinheiro dos impostos pagos por todos e, depois, porque o déficit criado pelo sistema também terá que ser pago com o dinheiro do contribuinte. Dinheiro que, de outra maneira, poderia estar sendo investido em políticas públicas de natureza mais universalista.

Direitos Republicanos e o Interesse Público

De qualquer forma, este é o tipo de problema que uma ênfase nos direitos republicanos, assim como proposta por Bresser Pereira, pretende evitar. Diferentemente dos direitos civis e políticos, os quais foram historicamente institucionalizados para evitar as arbitrariedades de um Estado autoritário, ou mesmo dos direitos sociais que protegem os pobres contra os ricos e os poderosos, os direitos republicanos são definidos por Bresser Pereira como uma proteção contra aqueles que privatizam ou se aproveitam da coisa pública, res publica, em benefício próprio (1997:106). Isto é, trata-se dos direitos de acesso aos bens públicos ou ao patrimônio compartilhado por todos os cidadãos, os quais não deveriam ser apropriados por indivíduos ou por grupos de interesse (Idem:119).

Bresser Pereira distingue três tipos de direitos republicanos: (1) o direito ao meioambiente ou ao patrimônio ecológico; (2) o direito ao patrimônio histórico-cultural; e, (3) o direito à economia pública ou ao patrimônio econômico, a coisa pública em sentido estrito (Ibidem:120).

Este último está no cerne da análise de Bresser Pereira, em vista das dificuldades especiais para se criar mecanismos efetivos em sua defesa, e constitui um tipo particularmente estimulante para a discussão da complexidade da separação entre interesses públicos e privados em certos contextos. De acordo com Bresser Pereira, enquanto os direitos republicanos clássicos são de fácil identificação e existem meios relativamente efetivos para protegê-los, não se pode dizer o mesmo sobre os modernos atos de violência contra estes direitos. No primeiro caso o autor menciona o direito de proteção contra atos de corrupção, nepotismo e evasão fiscal, sendo todos claramente definidos e tipificados na lei.11 Entretanto, quando se fala das formas modernas de agressão aos direitos republicanos a coisa muda de figura. Pois, mesmo que não seja difícil identificar onde a violência ocorre, ou caracterizar o tipo de atos através dos quais a violência tem lugar, é frequentemente difícil separar entre estes atos aqueles cuja pretensão de legitimidade pode ser fundamentada, e aqueles onde isto não pode ser feito.

Os principais exemplos de agressões à res publica que Bresser Pereira tem em mente são: (a) políticas industriais que dão subsídios ou benefícios fiscais mal justificados (e.g., às usinas de álcool no nordeste), e a prática de fechar contratos com empresas privadas sem concorrência pública; (b) políticas que se pretendem orientadas por interesses sociais mas que, de fato, trazem benefícios especiais apenas para alguns indivíduos ou grupos, normalmente no âmbito das classes médias que têm poder eleitoral, como no caso das vantagens dadas às pessoas que deviam dinheiro ao Banco Nacional de Habitação (BNH), referente a financiamentos para a compra da casa própria, no final dos anos oitenta; e, (c) políticas administrativas que protegem indevidamente os funcionários públicos, tornando difícil fazer com que eles se dediquem ao trabalho ou pagando-lhes um salário desproporcionalmente alto (Bresser Pereira 1997:125).

A discussão acima sobre o RJU e o excepcional sistema de previdência dos funcionários públicos no Brasil se encaixam perfeitamente neste terceiro exemplo de violência à res publica descrito por Bresser Pereira. Contudo, se estes exemplos representam casos claros e cristalinos de agressão aos direitos republicanos, é frequentemente difícil separar subsídios mal justificados daqueles que são razoáveis, ou políticas habitacionais socialmente orientadas daquelas que viabilizam interesses privatistas ou exclusivistas, assim como distinguir aumentos de salário ou vantagens merecidas dadas ao funcionalismo público da implementação de privilégios injustificados de todos os tipos. É por isso que, contrariamente às formas clássicas de violência contra os direitos republicanos, Bresser Pereira argumenta que as formas modernas são relativas e dependem de processos de formação de consenso para viabilizar a separação entre interesse público e privado (Idem:127).

Parece-me que este ponto é bem fundamentado, e sugere uma dificuldade a mais para a criação de leis ou procedimentos que identifiquem de maneira efetiva estas formas modernas de violência, e que garantam a proteção dos direitos republicanos contra elas.

Entretanto, a discussão de Bresser Pereira deixa de fora pelo menos um tipo importante de agressão à res publica cuja natureza não é essencialmente econômica, e não atenta para a importância de uma dimensão cultural que tem um papel significativo nos esforços para separar os interesses públicos dos privados. Do meu ponto de vista, as demandas para a institucionalização de um sistema de gestão paritária nas Universidades Federais seria um bom exemplo de violência contra a res publica cujo impacto econômico seria uma consequência apenas secundária. O principal objetivo desta demanda é a alteração das regras para escolha de dirigentes universitários, assim como daquelas que definem a composição dos conselhos e comitês que dirigem a universidade em todos os níveis. O argumento é de que a chamada "comunidade universitária" é composta por três segmentos — docentes, discentes e funcionários técnico-administrativos — que deveriam ter o mesmo peso, enquanto segmentos, na direção da universidade. Desta maneira, o reitor (além dos diretores de institutos e faculdades, assim como os chefes de departamento) deveria ser eleito pelo sistema paritário: onde os votos são computados de acordo com uma fórmula na qual o voto de cada indivíduo é igual à percentagem que ele ou ela representa no conjunto de seu segmento (ver Cardoso de Oliveira, 1996a e 1996b).

Como os docentes constituem o menor segmento, o voto de cada um deles, como indivíduos, tem um peso maior do que aquele dos membros dos outros segmentos.

Quanto à composição dos conselhos e comitês universitários, a idéia é de que seus membros deveriam ser igualmente distribuídos entre os segmentos. Chamei atenção, em outro lugar, que o principal problema com estas demandas é que elas abstraem a Universidade e sua "comunidade" da sociedade mais ampla, deixando inteiramente de lado o papel ou função social da instituição, para tentar legitimar a pretensão de igual participação dos segmentos no gerenciamento e na definição da política acadêmica da Universidade (Cardoso de Oliveira 1996a; 1996b). É como se os interesses dos segmentos, enquanto grupos corporados, devesse ter prioridade sobre os interesses da sociedade como um todo. É bem sabido que a Universidade cumpre seu papel social através da produção de conhecimento e do treinamento de técnicos e/ou de especialistas de todos os tipos, e qualquer proposta para alterar seu sistema de gerenciamento ou suas políticas acadêmicas tem que estar subordinada a estes valores e objetivos maiores. Isto significa que tentativas sérias para legitimar a participação eventual dos segmentos, como tais, no gerenciamento da Universidade, teriam que argumentar e avaliar a contribuição potencial de cada segmento para a realização dos objetivos e da função social da instituição na sociedade. Mas, isto nunca foi feito. O mero fato de constituírem os usuários imediatos do espaço da Universidade é percebido como um argumento suficiente para permitir que os segmentos tenham uma posição privilegiada na determinação dos projetos da instituição e na sua organização. Ao contrário, de acordo com o argumento desenvolvido aqui, a proposta da paridade poderia ser vista como uma tentativa de privatizar o espaço público da Universidade.

Gostaria de chamar atenção para o fato de que, como no caso do RJU e do sistema previdenciário especial do funcionalismo público discutido acima, a demanda pela institucionalização da paridade é formulada como um direito social, e como um passo importante em direção a um gerenciamento mais democrático da Universidade. Em outras palavras, uma reivindicação cuja eventual implementação significaria um exemplo de privatização do espaço público — na medida em que se estaria dando precedência aos interesses particulares dos segmentos contra o interesse público da sociedade — é apresentada como o seu oposto, ou como um mecanismo para tornar o gerenciamento da Universidade mais aberto, mais transparente, e mais orientado para o interesse público. A distância entre os ideais afirmados e as consequências factuais da demanda, levam-me para o último aspecto que gostaria de mencionar sobre cidadania e identidades coletivas no Brasil, antes de me dirigir para a questão de como a articulação entre direitos de cidadania e identidades coletivas ganha forma no Quebec.

Tendo como referência o trabalho de DaMatta, onde ele caracteriza o Brasil como uma sociedade relacional que articula a lógica moderna do individualismo com uma lógica tradicional que valoriza a hierarquia e dá precedência às relações, argumentei que os brasileiros costumam valorizar muito mais as expressões de consideração à pessoa de seus interlocutores, do que o respeito aos direitos (universalizáveis) do cidadão genérico (Cardoso de Oliveira 1996b). Na mesma direção, DaMatta afirma que, enquanto a lógica moderna é simbolicamente associada ao mundo da rua, a lógica tradicional seria identificada com o mundo da casa onde a família e as relações personalizadas têm prioridade. A articulação das duas lógicas teria engendrado então desvios para cima e para baixo na condição da cidadania. Isto é, enquanto o mundo da rua seria vivido como um espaço onde prevalece a percepção de "subcidadania", no mundo da casa, ou quando os atores se beneficiam das regras vigentes ai para pautar suas relações no espaço público, seria experimentada a condição de "supercidadania" (DaMatta 1991:100; Cardoso de Oliveira 1996b:71).

Assim, numa comparação com os EUA, sugeri que os dois países teriam déficits de cidadania em direções opostas, ainda que o déficit brasileiro tenha me parecido muito maior do que aquele encontrado nos EUA. Argumentei, então, que condições satisfatórias para o exercício da cidadania requeriam um equilíbrio entre os princípios de justiça e de solidariedade, os quais, no plano da vida cotidiana, poderiam ser razoavelmente traduzidos na, respectivamente, atitude de respeito aos direitos do indivíduo e na expressão de consideração à pessoa do cidadão. Enquanto uma ênfase excessiva na expressão de consideração dificultaria a efetivação do respeito aos direitos do indivíduo (de caráter universalizável), a causa do déficit brasileiro, uma preocupação exagerada com a proteção destes direitos reduziria o espaço ou as possibilidades para a expressão de consideração e, deste modo, exporia os atores a, inadvertidamente, cometerem insultos morais — a causa do déficit americano. Como os cidadãos também devem ter proteção contra insultos morais, assim como deveriam estar aptos a demandar o reconhecimento de suas identidades enquanto pessoas, o déficit americano me levou a contemplar o significado do que gostaria de chamar direitos morais, articulados com problemas de cidadania. Tais direitos, como eu os entendo, estão fortemente associados a questões relativas ao reconhecimento da identidade, e uma de suas principais características é o fato de que, via de regra, eles não podem ser imediatamente traduzidos em benefícios ou perdas materiais, nem ser satisfatoriamente protegidos por meios legais.12 De certa maneira, poder-se-ia dizer que agressões a estes direitos emergem e se tornam mais evidentes nas atitudes dos atores, e não tanto nas suas ações em sentido estrito. Retornarei ao assunto adiante, em minha discussão sobre o Quebec.

Mas, retomando o problema da distância entre, por um lado, os ideais explicitados motivando o apoio à institucionalização do RJU ou da "paridade" nas universidades e, por outro, as implicações sociais destas medidas, penso que a ênfase cultural brasileira nas expressões de consideração e sua relação com a lógica do mundo da casa, revelada por DaMatta, estimula os atores a se identificarem com suas comunidades imediatas (vistas como totalidades auto-contidas, mesmo quando percebidas como parte de uma unidade mais ampla que as englobaria), em prejuízo da sociedade a sua volta, vista como uma sociedade de cidadãos sem face ou identidade, em uma palavra, despessoalizados.13

Entretanto, isto não quer dizer que os atores não se preocupam com a sociedade dos cidadãos, ou que não endossem a noção de direitos individuais universalizáveis, segundo uma concepção moderna de cidadania. Como indiquei acima, o processo de expansão de direitos de cidadania durante a era Vargas — dando acesso a benefícios previdenciários (inclusive de assistência médica) e trabalhistas através da regulação das profissões — deu suporte à idéia de que demandas por direitos bem sucedidas favorecendo grupos particulares teriam, de fato, significado uma expansão dos direitos de cidadania, ainda que tenham significado também uma estratificação dos cidadãos no acesso aos respectivos direitos, aos quais uma parcela importante da população se manteve totalmente excluída. Pois, além de ampliar a comunidade de cidadãos, o sucesso de alguns grupos podia ser visto como um primeiro passo em direção à universalização dos direitos, ou um exemplo a ser seguido por outros grupos que, no tempo devido, seriam bem sucedidos também.

Outro aspecto da dimensão cultural com impacto direto nos direitos de cidadania é a dificuldade encontrada pelos atores para articular, coerentemente, a dissonância entre a visão abstrata e amplamente compartilhada por eles sobre a igualdade de direitos no plano da cidadania e a orientação frequentemente hierárquica de suas ações ou práticas cívicas na vida cotidiana. O que indicaria a existência de uma certa desarticulação entre esfera pública e espaço público no Brasil. Pois, uma coisa é acreditar na igualdade de direitos (entre os indivíduos ou cidadãos), e outra coisa é deixar de fazer um favor a um amigo — normalmente em prejuízo de outros —, mesmo quando isso ocorre em situações corriqueiras, como nas solicitações para ceder um lugar na fila do banco por exemplo. Claro está que o lugar cedido aqui não é (apenas) aquele ocupado pela pessoa que faz a gentileza, mas o dos cidadãos (genéricos, despessoalizados) que encontram-se atrás dele na fila, os quais são desconsiderados (ou insultados), ainda que esta não tenha sido a intenção dos "agressores". Neste sentido, a importância atribuída à manifestação de consideração, ou ao reconhecimento do valor do interlocutor, se constitui numa barreira significativa para a universalização do respeito aos direitos do indivíduo na vida cotidiana, e é frequentemente utilizada de maneira ilegítima como um filtro para negar direitos básicos às pessoas que, à primeira vista, não parecem merecê-los. Apesar de qualquer um poder exigir, com sucesso, um tratamento com consideração, independentemente de sua classificação em termos de renda, prestígio e status social, o êxito na obtenção do tratamento desejado vai depender da habilidade (e/ou da oportunidade) do ator para transmitir o que tenho chamado de referência substantiva à sua característica de pessoa moral, ou uma identidade valorizável, a qual funcionaria como um índice de dignidade. Entretanto, quando o ator não tem sucesso na apresentação da própria identidade, ele está sujeito não apenas ao tratamento com desconsideração mas, sobretudo, ao desrespeito de seus direitos básicos de cidadania.

Na mesma direção, como as pessoas estão sujeitas a ter os mais diversos tipos de preconceitos, sempre que estes atuam na definição das interações sociais eles minam as chances de identificação da referência ou substância moral característica das pessoas dignas e, portanto, tendem a estimular o desrespeito a direitos ou mesmo atos de agressão entre as partes. Por esta razão argumentei que, em alguma medida, o preconceito racial no Brasil deve ser visto como um agravante, bastante significativo e contundente, de um padrão de discriminação cívica que afeta um segmento muito mais amplo da população (1977:145-155). O não reconhecimento do valor ou da identidade/substância moral do interlocutor estimula a negação de sua dignidade, podendo inviabilizar o seu tratamento como um igual ou como uma pessoa/ser humano respeitável, igualmente merecedor de atenção, respeito e consideração.

Agora, gostaria de sublinhar dois aspectos para sintetizar minha caracterização da relação entre identidades coletivas e cidadania no Brasil: (1) dado o processo histórico de expansão dos direitos de cidadania através da regulação de profissões, tendo como pano de fundo uma perspectiva cultural que estrutura o mundo como uma hierarquia, o fortalecimento dos sindicatos deu lugar ao desenvolvimento de identidades sociais vigorosas, as quais ainda hoje desempenham um papel importante na esfera pública e motivam os atores a ver seus sindicatos ou corporações como totalidades significativas, constituindo uma referência abrangente ou universalizável, cujos interesses eles têm dificuldade para relativizar e/ou para distinguir da idéia de interesse público, naquilo em que este representaria a perspectiva da sociedade mais ampla;14 (2) o alto valor atribuído às noções de consideração, dignidade e distinção (enquanto qualidade ou mérito singular dissociado da idéia de desempenho) em relação à pessoa do cidadão, as quais frequentemente têm precedência sobre a atitude de respeito aos direitos do indivíduo na vida cotidiana, não constitui apenas um poderoso mecanismo de fortalecimento das identidades coletivas, mas também tende a estimular atos de discriminação cívica.

Esclarecendo o argumento, gostaria de enfatizar que, a partir de uma ótica cultural ou interacionista, a superação dos déficits dos direitos de cidadania no Brasil não dependeria tanto do eventual sucesso da repressão às manifestações de consideração, mas das possibilidades em universalizá-las, tornando-as menos seletivas. Neste sentido, articulando os dois aspectos, a discussão acima demonstra que o resgate dos direitos republicanos não pode se dar exclusivamente na esfera legal, especialmente no que concerne a sua dimensão moral, cuja sustentação requer não apenas a efetivação de processos de formação de consenso (como indicado por Bresser Pereira), mas a internalização de valores que viabilizem uma transformação na orientação das ações ou das atitudes dos atores em suas práticas cotidianas. Como veremos na discussão que se segue sobre o Quebec, preocupações com a manifestação de reconhecimento da dignidade ou do valor de identidades coletivas podem ter implicações diferentes.

b) Identidades Coletivas e Direitos Individuais: a Crise Constitucional no Canadá

Talvez se possa dizer que o Quebec nunca esteve completamente satisfeito com os termos do acordo que deu origem à criação do Domínio do Canadá em 1867 e,15 desde então, têm havido momentos de tensão com o resto-do-Canadá.16 Porém, a crise constitucional atual data de um período bem mais recente, tendo assumido um carácter particularmente crítico a partir de 1982, quando Trudeau aprovou no Parlamento as condições para o patriamento da Constituição Canadense, que contemplavam a anexação de uma Carta de Direitos e Liberdades emendada à Constituição. Até então, a Constituição Canadense era mantida no Parlamento Britânico e não podia ser emendada autonomamente.

A Carta estabelecia uma série de direitos e liberdades individuais, com o objetivo de proteger todo e qualquer cidadão canadense contra as arbitrariedades do Estado, e foi percebida no Quebec como uma ameaça aos direitos coletivos dos franco-quebequenses, especialmente aqueles relacionados à legislação linguística da província. Deste modo, a despeito de suas reivindicações históricas por maior autonomia política nas áreas relativas à força de trabalho, educação, cultura e imigração, a principal demanda do Quebec frente à Ottawa ou ao resto-do-Canadá foi articulada em termos do reconhecimento de sua especificidade ou distinção cultural. Isto é, o Quebec quer uma garantia constitucional de que, em certos assuntos, como no caso da política da língua, seu poder de legislar não seja limitado pela Carta de Direitos e Liberdades, que toma os direitos individuais como um absoluto e não daria espaço para a afirmação de direitos ou de interesses coletivos. Desde as negociações que acabaram fracassando em torno do Acordo do Lago Meech, tal garantia tem sido esboçada como o reconhecimento constitucional do Quebec como uma sociedade distinta e, conforme o tempo passa, parece que esta demanda encontra uma resistência cada vez maior no resto do país.17

Numa palavra, enquanto os franco-quebequenses demandam o reconhecimento do caráter distinto da província como uma condição para a efetivação do princípio de tratamento igualitário, e como um símbolo de igualdade com os anglófonos no âmbito da federação, os anglófonos no resto-do-Canadá percebem a demanda quebequense como uma reivindicação ilegítima, ou como um privilégio injustificável e, de certa maneira, esta situação lembra um diálogo de surdos, cristalizado através da expressão the two solitudes, ou as duas solidões, que tematiza a relação entre o Quebec e o resto-do- Canadá. Enquanto os quebequenses defendem a atribuição de um lugar relevante para identidades coletivas singulares na esfera pública, permeando os direitos de cidadania e dando sentido ao sentimento de pertencimento compartilhado por membros de uma mesma comunidade/sociedade política, no resto-do-Canadá a esfera pública é vista como estando composta por indivíduos cujos direitos estariam inteiramente dissociados de suas identidades coletivas primárias, que não abrangessem a totalidade de cidadãos do país.

Como argumentarei abaixo, um dos aspectos interessantes da demanda quebequense é que, apesar de ser frequentemente formulada como um direito coletivo, não pode ser inteiramente dissociada dos direitos individuais dos cidadãos, visto que a ausência de reconhecimento da singularidade afirmada pode ser entendida como um insulto moral aos indivíduos assim afetados. Do mesmo modo, a demanda também sugere que um obstáculo significativo para que o problema seja adequadamente equacionado está na dificuldade em articular a natureza moral da demanda com o caracter legal ou constitucional da solução buscada. Contudo, antes de discutir esta questão, se faz necessário uma melhor caracterização da própria demanda.

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