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Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová (página 2)

Cláudio da Silva Leiria
Partes: 1, 2, 3

A recusa às transfusões de sangue possui importantes reflexos na esfera médica – acarretando dilemas éticos pois os médicos estão condicionados a enxergar a manutenção da vida biológica como o bem supremo – e no âmbito jurídico, no qual se debate se é direito do paciente recusar um tratamento médico por objeção de consciência quando este, aparentemente, é o único meio apto a lhe salvar a vida.

Felizmente, as comunidades médicas e jurídicas, ainda que de forma tímida, têm dado sinais de que tendem a reconhecer o direito do paciente rejeitar determinados tratamentos médicos, independentemente do risco que ele esteja correndo com essa recusa.

Tem-se a modesta pretensão de demonstrar que, frente às normas constitucionais que tutelam a liberdade de crença e de consciência, o direito à intimidade e à privacidade, os princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana, bem como em razão de dispositivos da legislação infraconstitucional - fatores aos quais se associa o risco inerente às contaminações nas transfusões - é absolutamente legítima a recusa das Testemunhas de Jeová em se submeter a tratamentos médicos/cirurgias que envolvam a administração de sangue e seus derivados, mesmo nos casos de iminente risco de vida.

Neste artigo, segue-se a linha interpretativa de que, havendo recusa do paciente de receber transfusão de sangue em situações de iminente risco de vida não se configura a colisão de direitos fundamentais (direito à vida X direito de liberdade religiosa)[6], mas, sim, concorrência de direitos fundamentais, pois a conduta sujeita-se ao regime de dois direitos fundamentais de um só e mesmo titular.

Os riscos das transfusões de sangue

Rejeitar transfusões de sangue torna-se cada vez menos uma questão religiosa e mais uma questão médica. Atualmente, não é pouca a literatura médica a relatar que as transfusões de sangue envolvem inúmeros riscos, muitas vezes letais.

Os testes realizados pelos bancos de sangue não geram a segurança necessária quanto à pureza desse material biológico. Um Diretor da Cruz Vermelha Americana, tecendo considerações sobre os altos custos envolvidos em tais testes declarou que "Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado[7]".

O Dr. LUIZ GASTÃfO ROSENFELD, hematologista, disse que apesar de toda a evolução tecnológica, diante dos conhecimentos atuais, as transfusões de sangue não eram totalmente seguras no que diz respeito à transmissão de moléstias infecciosas[8]

WILSON RICARDO LIGIERA faz esclarecedora síntese dos riscos decorrentes das transfusões de sangue:

"Ela (a transfusão) também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo. Em recente e conceituado trabalho científico, Herbert et al comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva.

"Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas categorias: primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de natureza imunológicas, imediatas ou tardias, e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas.

"Alguns exemplos de doenças infecciosas e parasitárias, transmitidas por transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais são: a AIDS (sigla, em inglês, para "síndrome da imunodeficiência adquirida", causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a tripanossomíase (Doença de Chagas), a malária, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (vírus da leucemia e linfoma de células T Humano) e por outros protozoários e bactérias.

"(...)

"Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a terapêutica transfusional, tais como, erros humanos operacionais (e.g., transfusão da tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a supressão do sistema imunológico do paciente, aumentando as chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores. Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: "Atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as transfusões.[9]"

Também há de se fazer menção aqui aos imensos riscos diante da chamada "janela imunológica", que corresponde ao tempo que o organismo leva para produzir, depois da infecção, uma certa quantidade de anticorpos que possa ser detectada pelos exames de sangue específico. Assim, por exemplo, se uma pessoa que foi infectada pelo vírus HIV (AIDS) doar sangue até 11 dias após a infecção, os exames feitos nesse sangue não detectarão o vírus, ou seja, obter-se-á um falso resultado negativo.

As Testemunhas de Jeová não rejeitam todos os tratamentos médicos. Recusam, no entanto, uma terapia que, conforme é admitido pelas próprias autoridades em saúde, acarreta muitos riscos graves.

Alternativas médicas às transfusões de sangue

Ainda que de forma sucinta, mencionar-se-ão algumas alternativas médicas às transfusões de sangue. Essas alternativas experimentaram grande desenvolvimento nos últimos trinta anos, podendo-se conjecturar, com boa dose de razoabilidade, que em poucas décadas os progressos técnicos acabarão totalmente com a necessidade de transfundir sangue.

a) Dispositivos cirúrgicos para minimizar a perda sanguínea: eletrocautério/eletrocirurgia; cirurgia a laser; coagulador com raio de argônio.

b) Técnicas e dispositivo para controlar hemorragias: pressão direta; agentes hemostáticos; hipotensão controlada.

c) Técnicas cirúrgicas e anestésicas para limitar a perda sanguínea: hipotermia induzida; hemodiluição hiperrvolêmica, redução de fluxo sanguíneo para a pele; recuperação sanguínea intraoperatória.

d) Dispositivos e técnicas que limitam a perda sanguínea iatrogênica: oxímetro transcutâneo; uso de equipamento de microcoletagem.

e) expansores de volume[10]lactato de Ringer; solução salina hipertônica; colóide Dextran.

Com o uso de alternativas médicas já foram feitas, sem sangue: cirurgias de coração aberto; cirurgias ortopédicas e oncológicas; transplantes de fígado, rim, coração e pulmão; transplantes de células-tronco periféricas.

De bom alvitre salientar, no entanto, que quando o paciente perde de 25% a 30% do volume sanguíneo, está em iminente perigo de vida face ao risco de choque hipovolêmico[11]Assim, a transfusão de sangue seria imperiosa para restabelecer o volume intravascular e restaurar a capacidade de transporte de oxigênio, não podendo, atualmente, ser suprida por outra alternativa médica.

Do direito à liberdade religiosa

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no inciso XVII, proclama: "Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular."

Neste tópico, deve-se iniciar tentando responder a indagação: O que é religião?

ALEXANDRE DE MORAES esboça sintética resposta, afirmando que "a religião é um complexo de princípio que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto"[12]

JEAN RIVERO, na obra Les Libertés Publiques (Paris, PUF, vol. 2º, 1977, p. 148 e s.) , sobre a "especificidade do fato religioso", tece as seguintes considerações:

"(A religião) afirma a existência de realidades sobrenaturais, a propósito das quais o homem está em situação de dependência: a religião organiza as relações que esta dependência postula.

"(...)

"O crente adere a esta informação, aceita esta organização de suas relações com o sobrenatural. Em vista disso, sua adesão transborda largamente a simples profissão de uma opinião num outro domínio, pois ela comporta, não uma mera preferência pessoal e subjetiva, mas a crença numa realidade considerada como objetiva, transcendente e superior a todas as outras.

"(...)

"Enfim, a religião, e notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total. Na medida em que elas lhe fornecem uma explicação global do seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação. Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre toda ordem humana, conduzem cada crente conseqüente consigo mesmo a preferir, em caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta.[13]"

Inegável que a liberdade de religião veio bastante prestigiada no texto constitucional. Assim, no Preâmbulo da Carta Magna, os constituintes declararam que a promulgaram sob a proteção de Deus; no artigo 5º merecem destaque os incisos VI[14](liberdade de consciência e de crença, livre exercício dos cultos religiosos, proteção aos locais de culto e suas liturgias), VII (assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva) e VIII (não-privação de direitos por motivo de crença religiosa).

A liberdade religiosa é um direito fundamental de primeira geração (ou dimensão), impondo ao Estado um dever de não-fazer, de não-interferir naquelas áreas reservadas ao indivíduo. Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA[15]há três subdivisões da liberdade religiosa: a) liberdade de crença, que assegura a liberdade de aderir a uma religião, de mudar de religião, ou não seguir religião alguma; b) liberdade de culto, que é o poder expressar-se em casa ou em público em relação às tradições, cerimônias e ritos da religião que se adotou; e, c) liberdade de organização religiosa, que confere aos que professam uma determinada religião o direito de se organizarem sob a forma de pessoa jurídica para a realização de atos civis em nome da fé professada.

Como bem destaca JAYME WEINGARTNER NETO,

"O Estado deve levar a sério o fato de que a religião ocupa um lugar central na vida de muitas pessoas, devendo, portanto, "consideração e respeito por todas as formas de religiosidade, mesmo pelas mais inconvencionais (núcleo da livre escolha de crença – CPJ 1.1.2). O Estado tem, neste contexto, um dever de abster-se de perturbar; a adesão/abandono de uma confissão religiosa, a educação religiosa das crianças por seus pais ou responsáveis, o serviço religioso, o uso de indumentária própria ou de símbolos religiosos, etc. Trata-se de uma reserva de intimidade religiosa cujo mérito intrínseco é insindicável pelo Estado[16]

No século XX, dois importantes documentos internacionais prestigiaram a liberdade religiosa: a Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação com base na religião ou crença (1981) e o Documento Final de Viena (1989).

A liberdade de religião, conforme o dispositivo constitucional, não abrange apenas o direito de crer em uma doutrina, mas também o de exercer os preceitos da fé professada. Nessa última hipótese se insere o expressar a fé em todos os aspectos da vida, seja fazendo proselitismo, demonstrando a fé em público, escrevendo e compondo músicas a respeito, bem como recusando tratamentos médicos específicos.

As Testemunhas de Jeová, ao rejeitarem um determinado tratamento médico (transfusão de sangue), mesmo nos casos de iminente risco de vida, estão apenas querendo viver de acordo com suas crenças. Ora, a religião é um modo de expressão espiritual, cultural e ideológica de um agrupamento humano, e por isso deve ser respeitada, especialmente nas hipóteses em que o exercício de seus dogmas e prescrições não causa lesões aos direitos de terceiros.

Da objeção de consciência e da não-privação de direitos por motivo de crença religiosa

Objetar quer dizer recusar-se a fazer algo. Objeção de consciência é expressão que designa os casos em que um indivíduo, por alguma convicção pessoal profunda, íntima, recusa-se a praticar determinado ato ou aceitar alguma específica situação.

Infelizmente, as Testemunhas de Jeová, por motivo de crença religiosa, têm cerceado um elementar direito agasalhado constitucionalmente – o de recusar um determinado tratamento médico (transfusão de sangue) que é repleto de riscos, como já visto.

A objeção de consciência não fere o princípio da isonomia, sendo mero sofisma o argumento de que se estaria a privilegiar o direito de uma minoria. Ora, o princípio da isonomia deve ser visto dentro de um quadro amplo de direitos, liberdades e garantias. A liberdade de consciência é norma especial, que prevalece sobre a norma geral da isonomia. Para se ter justiça, ocioso dizê-lo, deve-se tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Assim, por exemplo, não fere o princípio da isonomia reserva de vagas para deficientes físicos em concursos públicos, atendimento privilegiado em várias situações para crianças, adolescentes e idosos (Leis 8.069/90 e 10.741/03).

Outra falácia encontradiça é o argumento de que o Estado dispõe de um "Direito superior" ao do particular, algo como um jus imperii. Ocorre, no entanto, que a força tem limites, não podendo o Estado compelir alguém a algo pelo que sente extrema repulsa.

Também a justificar a objeção de consciência tem-se o fato de que a sociedade humana é plural, e isso é um fato irreversível.

Direito à privacidade

A Constituição Federal, no inciso X do artigo 5º, tutela o direito fundamental à privacidade nos seguintes termos: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

A privacidade é necessidade básica do ser humano, que deseja viver com sossego e tranquilidade, sem ter a sua vida íntima e privada indevidamente devassada por terceiros, nem ser sufocada por ingerências do Estado que ultrapassem imperiosas necessidades sociais.

Em fecundo parecer, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO[17]anota que o direito à privacidade é o dos que reclamam a não-ingerência do Estado, da coletividade ou de algum indivíduo, impondo um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular do direito que não pode ser violada por quem quer que seja. Agrega, com base em famoso julgado da Suprema Corte Americana, que duas são as facetas desse direito: a) evitar a divulgação de questões pessoais, e, b) independência em tomar determinada espécie de decisões importantes.

O mesmo parecerista frisou que a doutrina e jurisprudência americana incluem no direito à privacidade as decisões relativas ao próprio corpo (vacinações, testes de sangue obrigatórios); concepção e contracepção; tratamentos médicos; e estilos de vida.

Não é ocioso destacar que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (o famoso Pacto de San José da Costa Rica), no seu artigo 11, itens 1 e 2, garante a proteção da lei contra interferências arbitrárias na vida privada, honra e dignidade do indivíduo.

O jurista CELSO RIBEIRO BASTOS[18]em parecer, bem gizou que:

"Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos "motivos humanitários" da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos."

Assim, também sob o prisma da proteção constitucional da intimidade e da privacidade, incabível forçar-se alguém a receber transfusão de sangue.

Do princípio da legalidade

Sob a ótica legal, plenamente admissível a recusa das Testemunhas de Jeová em se submeter a transfusões de sangue, mesmo nos casos de iminente risco de vida.

A Constituição Brasileira, no seu artigo 5º, inciso II, prescreve que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, salvo em virtude de lei (princípio da legalidade). Assim, como no país não há lei que obrigue qualquer pessoa a aceitar transfusões de sangue como tratamento médico, a recusa será válida, devendo ser respeitada.

CELSO RIBEIRO BASTOS[19]faz as seguintes considerações sobre esse tema:

"...a Lei Suprema dita um requisito para que exista a restrição à liberdade. Esta restrição consiste na necessidade de lei, com o que fica implícito que a restrição à liberdade pode existir. É dizer, as leis dotadas de caráter genérico e abstrato definem diversas situações, deixando uma margem de liberdade, ou melhor, um espaço para fazer ou não fazer alguma coisa."

O eminente parecerista, após afirmar que ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se a tratamento específico contra a sua vontade, ilustra esse direito de recusa com o exemplo de pessoa que, apresentando problemas visuais, fosse obrigada a procurar um oftalmologista e a usar os óculos por ele prescritos, ou, ao passar por problemas financeiros, fosse compelida a consultar um economista e seguir suas orientações.

Também, já foi observado alhures que não se poderia abolir a opção individual de rejeitar transfusões de sangue sem ferir a Constituição, pois se isso acontecesse, estaria criada a absurda situação de alguém preferir ficar em casa para não ter a sua liberdade pessoal violada pelo médico. Mas então teria de ser criada uma lei para obrigar uma pessoa a ir ao médico...

Princípio da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana é o cume, o ápice do sistema jurídico brasileiro e do da maioria dos países: na verdade é um superprincípio, do qual decorrem a necessidade de respeito à integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo, relacionando-se, também, à proteção da igualdade e da liberdade do ser humano.

Para INGO WOLFGANG SARLET:

"...a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional de dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos por parte de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção[20]

Mesmo o direito fundamental à vida não é absoluto[21]encontrando limites no princípio da dignidade da pessoa humana, que, afinal, é o alicerce de todo e qualquer direito. Note-se que é a dignidade da pessoa humana – e não a vida - um dos fundamentos da República (CF/88, art. 1º, inciso III). Ainda, um dos objetivos fundamentais da República é justamente promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação, inclusive religiosa.

Assim, impor uma transfusão de sangue contra a vontade do paciente da religião Testemunha de Jeová equivaleria a violentá-lo, não só no seu corpo, mas também nas suas convicções religiosas, no seu modo de ver e compreender o mundo. Em outras palavras, seria fazer tabula rasa da dignidade do aderente dessa religião.

Analisou esse ponto com muita propriedade ANA CAROLINA DODE LOPEZ, em trecho que merece detida reflexão[22](grifos não constam do original):

"Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados. A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.

"O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art. 1º, III, da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez."

MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ e MAÍLA MELLO CAMPOLINA fazem a aguda afirmação de que erigir a vida como um "bem coletivo" ou como pertencente ao Estado é tirar do ser humano a única coisa que deveras possui: ele próprio[23]

A conclusão inafastável, portanto, é que também pelo princípio da dignidade da pessoa humana é vedada a transfusão de sangue contra a vontade do paciente da religião Testemunha de Jeová, mesmo quando a vida corra sérios riscos.

Do artigo 15 do Código Civil

Legitima também a recusa a tratamentos médicos, como transfusões de sangue, o disposto no artigo 15 do novel Código Civil, o qual prescreve que "Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica".

Essa inovadora disposição legal tem cariz protetora dos direitos individuais, devendo ser lida como "ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica". Com efeito, se o médico acreditar na necessidade urgente de uma transfusão de sangue, é porque o paciente estará correndo risco de vida, o que impõe que nenhuma terapia seja realizada sem o seu prévio consentimento[24]ou, olhando a questão de outro ângulo, refira-se que a própria transfusão de sangue é, incontestavelmente, um tratamento de risco, seja pela insegurança e precariedade dos testes sorológicos efetuados, quer pelo desconhecimento do comportamento de vírus e outros agentes potencialmente patogênicos existentes eventualmente no material biológico a ser objeto da transfusão.

Nesse passo, pede-se vênia para transcrever as judiciosas considerações de FELIPE AUGUSTO BASÍLIO[25]sobre o assunto:

"...pela nova regra do Código Reale, o pressuposto para que o médico não atue sem o consentimento do paciente é a própria gravidade da situação em si, de maneira que não será o caso emergencial ou a situação gravosa que lhe permitirá agir sem o consentimento.

"As conseqüências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo que responderá por perdas e danos. Por este artigo, o risco de morte do paciente cria a obrigação do médico de colher o seu consentimento sobre o método terapêutico a ser aplicado, sob pena de responder civilmente pelos danos aos seus direitos de personalidade que o tratamento forçado pode causar."

Conclui-se que o artigo 15 do Código Civil revogou, então, quaisquer normas de hierarquia igual ou inferior que autorizavam a intervenção médica contra a vontade do paciente (especialmente os artigos 46 e 56 do Código de Ética Médica, vindo a lume por mera resolução do Conselho Federal de Medicina, e o art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal), mesmo naqueles casos de iminente risco de vida[26]

Do artigo 17 do Estatuto do idoso

Mais uma inovação legislativa chancela o direito de os pacientes, independentemente dos motivos, recusarem transfusões de sangue: está-se falando do artigo 17 do Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2003), que possui a seguinte redação:

"Artigo 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:

I – pelo curador, quando o idoso for interditado;

II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contatado em tempo hábil;

III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar;

IV - pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público.

Assim, como regra geral, o art. 17 do Estatuto do Idoso autoriza que o paciente, independentemente do seu estado clínico, mas desde que no domínio de suas faculdades mentais, escolha o tratamento de saúde que entender mais adequado.

Veja-se bem que o inciso III do parágrafo único do artigo 17 deixa evidente que não basta a situação de iminente risco de vida para que seja o médico possa escolher o tratamento. Imperioso que, antes, ocorra a impossibilidade de manifestação do paciente, familiares ou de seu representante legal. Dito de outra forma: o médico, nos casos de iminente risco de vida, só poderá agir ao próprio talante se tornar-se impossível conhecer, por qualquer meio, a vontade do paciente ou representante legal quanto ao tratamento.

Por evidente, em respeito ao princípio da isonomia, a autorização para que o paciente idoso, mesmo em situação de iminente risco de vida, possa recusar tratamento médico, deve ser estendida, em uma interpretação constitucional, aos pacientes civilmente capazes de idade inferior a 60 anos pois não há qualquer razão lógica/ética/jurídica para não se fazê-lo.

Do artigo 10 da Lei de transplantes

O art. 10, "caput", da Lei n.º 9.434/97 (Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos) prescreve que "O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento". E o § 1º desse artigo prevê que naqueles casos em que o receptor for juridicamente incapaz, ou estiver em condições de saúde que impeçam ou comprometam sua manifestação válida de vontade, o consentimento será dado pelos pais ou responsáveis legais.

Percebe-se, assim, que a legislação mencionada coloca em primeiro plano - portanto, acima da vontade do médico - o consentimento do paciente. Desta forma, mesmo que o paciente se encontre em iminente risco de vida, pode decidir se quer, ou não, se sujeitar ao transplante.

Desta maneira, como o sangue é considerado um tecido[27]devem as transfusões se submeterem ao princípio - veiculado na lei - de que "quem decide é o paciente", independentemente da situação de iminente risco de vida.

Não se desconhece o teor do parágrafo único do art. 1º da Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos: "Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo, o sangue, o esperma e o óvulo". Entretanto, a exclusão expressa do sangue "para os efeitos da lei" jamais poderia significar que, de fato, sendo um tecido, pudesse ser transfundido contra a vontade do paciente.

A expressão "para os efeitos da lei" deve ser interpretada no sentido de que para fazer a disposição do sangue o doador, por exemplo, não precisará de autorização judicial (art. 9º); que prescindirá de autorizar a doação preferencialmente por escrito e diante de testemunhas (art. 9º, § 4º); que o receptor não precisa estar inscrito em lista única de espera, etc.

Da inexistência da obrigação jurídica de viver

Aos pacientes, independentemente de posicionamentos morais, filosóficos ou religiosos, não se pode impor uma obrigação jurídica de viver mediante o recebimento de uma transfusão de sangue, se considerarmos que ninguém está obrigado para com si mesmo. Deveras, para existir uma relação jurídica é necessário que hajam pelo menos duas pessoas – sujeito ativo e sujeito passivo -, podendo uma delas exigir um bem, a que a outra está obrigada a entregar.

Nesse andar, ANDRÉ FRANCO MONTORO[28]seguindo a lição de DEL VECCHIO, afirma que podemos definir a relação jurídica como o vínculo entre pessoas, por força do qual uma pode pretender ou exigir um bem de outra pessoa, que é obrigada a uma prestação (ato ou abstenção).

Decorre do conceito acima que a sociedade como um todo não tem o direito subjetivo de exigir que um dos seus membros preserve sua própria vida contra a vontade e, portanto, não tem esse membro o dever de atender a essa pretensão da sociedade. E de outra quadra, ninguém está obrigado a defender seu próprio direito.

Sob outro enfoque, é de se afirmar que, em respeito às liberdades do cidadão, o Estado só pode exigir-lhe condutas, positivas ou negativas, que não violem os direitos de terceiros. E nada mais, sob pena de, em cruel inversão de valores, o homem servir ao Estado, e não este àquele.

Como bem ressaltado por J. STUART MILL[29]

"el único propósito sobre el cual el poder puede ser realmente ejercido sobre cualquier miembro de uma comunidad civilizada, contra sus deseos, es para prevenir el daño a otros. Su propio bien, ya físico o moral, no es suficiente garantía. No lo podemos forzar a llevar a cabo tal o cual acto porque el hacerlo sea lo mejor para él, porque lo hará más feliz, porque em opinión de otros sería lo más sabio o lo más correcto. Estas serían buenas razones para discutirlo o razonarlo com él, para persuadirlo, para rogarle que lo realice; pero no para obligarlo, amenazarlo o cartigarlo por haberlo realizado...La única parte de la conducta de cualquiera, por la que debe de responder a la sociedad, es aquella que concierne a los demás."

O médico DIXON cita também J. STUART MILL para expressar que é o paciente quem pode dispor sobre a própria saúde, aceitando ou rejeitando quaisquer espécie de tratamentos: "...cada qual é o guardião correto de sua própria saúde, seja ela física, seja mental, seja espiritual. A humanidade é que mais lucra ao permitir que cada um viva como bem lhe parecer, em vez de compelir cada pessoa a viver como parece ser bom para os demais[30]"

Mas, frise-se novamente, o paciente Testemunha de Jeová não é um suicida, quer viver, mas declina de receber tratamento que vai de encontro às suas convicções religiosas e que, ademais, repita-se vezes várias, é de alto risco.

Ainda nesse tópico, necessário tecer considerações sobre a conceituação da palavra "inviolabilidade", constante no "caput" do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, para que, ao final, se possa responder à indagação: a inviolabilidade do direito à vida permite – ou proíbe – que o indivíduo possa recusar tratamento médico em caso de iminente risco de vida?

Parece extremamente razoável dizer que o termo "inviolabilidade" não deva ser interpretado no sentido de proibição de o indivíduo dispor da própria vida, mas sim como a impossibilidade de terceiro violar o bem da vida de outrem.

Afirmando o referido acima em outras palavras: não se pode confundir "inviolabilidade" com "indisponibilidade", termos que juridicamente traduzem conceitos distintos. A inviolabilidade diz respeito a direitos outorgados a certas pessoas, em virtude do que não podem ser molestadas ou atingidas. Já a indisponibilidade é atributo daquilo que não se pode dispor ou ceder.

Assim, por exemplo, o artigo 5º, "caput", da Constituição Federal dispõe que a "propriedade" também é inviolável. Ora, tal não impede que o indivíduo, na forma da lei, possa alienar o bem para terceiro, nem que o poder público possa fazer restrições ao direito de propriedade, inclusive por legislação infraconstitucional, como sói acontecer.

De idêntica forma, a "intimidade", segundo o mesmo artigo 5º, é inviolável. Entretanto, a "inviolabilidade" não proíbe que o indivíduo participe de reality shows televisionados (Big Brother, v.g.), ou então, publique autobiografia em que narre fatos pessoais e íntimos de sua pessoa.

A questão da recusa de menores a tratamentos com transfusões de sangue

Segundo o artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, adotada em 20.11.1989:

"Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.

No presente tópico, impõem-se as seguintes perguntas: podem os pais negar autorização para transfusões de sangue em seus filhos menores? Com que idade o menor poderá recusar tratamentos médicos por objeção de consciência?

Inicialmente, refira-se que os pais são os detentores do poder familiar, a eles cabendo empreender os melhores esforços para salvaguardar a vida e a saúde dos filhos. Aos pais também pertence a iniciativa da formação religiosa dos filhos, ao menos até certa idade, quando então estes poderão decidir, por si só, qual religião adotar – caso, é claro, desejarem seguir alguma.

Para prosseguir-se, necessário fazer referência à doutrina do menor amadurecido (mature minor doctrine), do direito anglo-americano.

Considera-se menor amadurecido aquele paciente que, embora não tendo atingido a idade da maioridade civil, é dotado da capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e as consequências do tratamento médico proposto, podendo aceitá-lo ou recusá-lo.

Na teoria do menor amadurecido, o importante a considerar é a capacidade decisória, e não algum limite prefixado de idade.

Acerca do tema, importante citar que foi reconhecido pelo Tribunal de Recursos de New Brunswick (Canadá) o direito de um paciente de 15 anos de idade recusar uma transfusão de sangue:

"Em declarações juramentadas anexadas à petição, tanto a Dra. Scully como o Dr. Dolan dispuseram que [J.] estava cônscio de seu quadro clínico, do tratamento deste e da possibilidade mui real de que sua recusa de aceitar sangue ou hemoderivados lhe pudesse ser fatal. Todavia, ambos acharam que [J.] era suficientemente amadurecido para entender as consequências de sua recusa de receber transfusões. A Dra. Scully disse que uma transfusão imposta seria prejudicial para a saúde de [J.] e, a menos que [J.] mudasse de idéia, ela "não administraria nenhuma transfusão de sangue, não importa qual fosse o resultado do tratamento dele".

"No Canadá, o Direito Comum reconhece a doutrina do menor amadurecido, a saber, de um que é capaz de entender a natureza e as consequências do tratamento proposto. Assim sendo, o menor, se amadurecido, tem deveras a capacidade jurídica de dar consentimento para seu próprio tratamento médico[31]

No Brasil, o jovem de 16 anos de idade, já pode votar (CF, art. 14, § 1º, inc. II, "c"); na órbita civil, não é mais absolutamente incapaz, podendo inclusive ser emancipado.

Assim, deflui inexoravelmente desses comandos legais que o jovem de 16 anos (que pode influir na vida política de seu país, escolhendo governantes e parlamentares, bem como, emancipado, contratar, casar, ser proprietário de empresas, etc) é, de forma ficta, indiscutivelmente amadurecido, pode exercitar a objeção de consciência, recusando tratamentos médicos mesmo com a oposição dos representantes legais.

JAYME WEINGARTNER NETO faz interessante observação sobre o que se pode denominar de "maioridade religiosa":

"Pode-se presumir, juris tantum, a maioridade religiosa dos adolescentes (pessoa entre 12 e 18 anos de idade, consoante art. 2º da Lei n.º 8.069/90), afastável por demonstração imaturidade biopsicossocial para o ato/omissão religiosos considerado, bem como a incapacidade religiosa das crianças (até 12 anos de idade incompletos, conforme o dispositivo citado), também afastável por demonstração de maturidade biopsicossocial para o ato/omissão religiosos em apreço[32]

No Direito Brasileiro, não se deve olvidar que a criança e o adolescente têm direito à liberdade de opinião e de expressão, crença e culto religioso, conforme dispõem os artigos 15[33]c/c o art. 16, incisos II e III[34]do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90).

Repita-se, se o adolescente é amadurecido (possui a capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e, especialmente, as consequências do tratamento médico proposto), sua objeção de consciência deverá ser respeitada, tenha 12, 13, ou 17 anos de idade.

Em parecer, o Dr. MARCO SEGRE[35]sustenta que é eticamente aceitável que um adolescente manifeste sua recusa, e seja atendido, a uma transfusão de sangue.

Em resumo ao que foi abordado, pode-se concluir que o adolescente a partir de 16 anos de idade, pelos direitos em perspectiva que a lei lhe confere (direito de votar, direitos civis plenos com a emancipação), deve ser considerado maior amadurecido, sem perquirições adicionais, cabendo-lhe recusar ou aceitar determinados tratamentos médicos. Em relação ao adolescente entre 12 e 16 anos de idade, para verificar se deve ser respeitada sua vontade quanto a terapias médicas, necessário aferir previamente se é um "menor amadurecido".

Princípios bioéticos da autonomia, da beneficência, do consentimento esclarecido e da justiça

A relação médico-paciente se rege por princípios bioéticos, cuja adequada compreensão lançará luzes sobre a questão da legitimidade ética de recusa a determinados tratamentos e terapias.

Bioética, na precisa lição de JOÃfO DOS SANTOS DO CARMO e JUSELE DE SOUZA MATOS, é

"disciplina que busca discutir, refletir e lançar bases criteriosas para a prática da ética nas pesquisas, nas decisões e nas aplicações biotecnológicas que envolvem seres humanos e outros seres viventes. Para a Encyclopedia of Bioethics, "Bioética é definida como o "estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar" e ainda como "estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e princípios éticos"[36].

O campo da Bioética, assim, é bastante amplo, tratando de assuntos variados envolvendo administração da vida e morte em todos os seus aspectos, tais como: pesquisa com seres humanos e animais; direitos reprodutivos/reprodução assistida; engenharia genética; aborto; eutanásia; transplante de órgãos e tecidos, etc.

Na precisa lição de CLOSET[37]as idéias da bioética surgiram a partir: a) dos grandes avanços da biologia molecular e da biotecnologia aplicada à medicina realizados nos últimos anos; b) da denúncia dos abusos realizados pela experimentação biomédica em seres humanos; c) do pluralismo moral reinante nos países de cultura ocidental; d) da maior aproximação dos filósofos da moral aos problemas relacionados com a vida humana, a sua qualidade, o seu início e o seu final; e) das declarações das instituições religiosas sobre os mesmos temas; f) das intervenções dos poderes legislativos como também dos poderes executivos em questões que envolvem a proteção à vida ou os direitos dos cidadãos sobre sua saúde, reprodução e morte; e, g) do posicionamento dos organismos e entidades internacionais.

Dentre os itens citados no parágrafo supra, provavelmente as denúncias de abusos praticados contra pacientes em experimentos médicos foi o que deu maior impulso ao desenvolvimento da disciplina da Bioética. Três casos são emblemáticos:

A – A divulgação do artigo "Eles decidem quem vive, quem morre", de autoria da jornalista Shana Alexander, publicado na Revista Life, em 1962. No referido artigo, foi contada a história da criação de um comitê de ética hospitalar em Washington, nos EUA (Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle). O "Comitê de Seattle" tinha como meta definir as prioridades para a alocação de recursos para os pacientes renais. Uma das questões enfrentadas pelo Comitê foi sobre os critérios de admissão de pacientes renais crônicos a tratamento de hemodiálise, em razão de que o número desses pacientes ultrapassava o de máquinas de hemodiálise disponíveis.

B – Em 1967, Henry Beecher publica o artigo Ethics and Clinical Research, enfocando 22 pesquisas médicas, subsidiadas por verbas governamentais e de companhias médicas. Os 22 relatos de pesquisa foram selecionados de 50 artigos publicados em periódicos científicos internacionais.

Nesses artigos, eram relatadas situações de desrespeito aos pacientes que eram "cidadãos de segunda classe": internos em hospitais de caridade; adultos e crianças com deficiências mentais; idosos, pacientes psiquiátricos institucionalizados, presidiários, recém-nascidos, enfim, pessoas sem autonomia e sem direito de fazer escolhas. Dentre as atrocidades praticadas, cite-se que uma pesquisa exigia a inoculação intencional de vírus da hepatite em indivíduos institucionalizados por retardo mental, visando o acompanhamento da etiologia da doença. Foram injetadas células vivas de câncer em 22 pacientes idosos e senis hospitalizados, os quais não foram comunicados de que as células eram cancerígenas.

C – Em 1967 Christian Barnard, da África do Sul, transplantou o coração de um paciente tido pela equipe do médico como "quase morto", enquanto que o paciente que recebeu o coração foi diagnosticado como paciente cardíaco terminal[38]

A bioética assenta-se em quatro pilares, ou princípios, a saber: a) o princípio da beneficência; b) princípio da autonomia; c) princípio do consentimento informado; e, d) princípio da justiça.

A - Princípio da beneficência, que expresso no capítulo I, art. 2º, do Código de Ética Médica brasileiro: "o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional".

Destarte, as experimentações médicas devem se pautar em fazer o bem, preservando-se a integridade e o direito à vida dos que a elas são submetidas.

Sobre o princípio da beneficência, preciosa é a lição de BRUNO MARINI[39]

"Inicialmente, não podemos esquecer que a visão tradicional hipocrática sobre a "beneficência" deve ser encarado num contexto histórico diferente do nosso. De fato, vivemos numa era em que cada vez mais os direitos do paciente e do cidadão (e aqui se inclui a autonomia) vêm ganhando mais destaque na bioética e na ciência jurídica. Ao contrário do que acontecia na Idade Média, o médico não mais é encarado como uma autoridade (de caráter quase que mítica) inquestionável e autoritária.

Deve-se deixar bem claro que o princípio da beneficiência requer que o médico faça o que beneficiará o paciente, mas de acordo com a visão deste, e não com a do médico.

B – O princípio da autonomia reconhece o direito da pessoa de decidir, livre de pressões externas, sobre a sua submissão a determinada terapia ou tratamento médico; por esse princípio, pode o paciente inclusive rejeitar toda e qualquer espécie de tratamento. Ter autonomia significa autogovernar-se, fazer escolhas, ter liberdade para decidir acerca de seu comportamento.

RONALD DWORKIN tece meritórias considerações sobre a força que deve ser emprestada ao princípio da autonomia:

"Nos contextos médicos, essa autonomia está frequentemente em jogo. Por exemplo, uma Testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas. Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação. Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstância desse tipo[40]

A mesma linha de pensamento trilha CLAUS ROXIN. Afirma o jurista alemão que é o paciente quem tem o direito de decidir sobre a omissão ou a suspensão de medidas prolongadoras da vida[41]

"Em tais situações a questão jurídica é em princípio clara. Não haverá punibilidade, porque não é permitido tratar um paciente contra a sua vontade. Se um canceroso se recusa a deixar-se operar (como, p. ex., o caso do penalista Peter Noll, muito discutido e também documentado pela literatura), a operação não poderá ser feita. ...A vontade do paciente é decisiva, mesmo nos casos em que um juízo objetivo a considere errônea, ou que seja irresponsável aos olhos de muitos observadores. Também quando a mãe de quatro filhos proíbe aos médicos, por motivos religiosos, que lhe ministrem uma transfusão de sangue que lhe salvaria a vida – este caso realmente ocorreu – devem os médicos curvar-se e deixar a mulher morrer."

Digno de nota que o Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue (International Society of Blood Transfusion – ISBT/SITS), adotado em 2000 pela OMS (Organização Mundial de Saúde), estabelece no seu artigo 2 que "O paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento. Qualquer diretriz antecipada válida deveria ser respeitada".

Ainda, o art. 48 do Código de Ética Médica (Resolução n.º 1.246/1988 do Conselho Federal de Medicina prescreve que "É vedado ao médico: [...] Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar[42]

Em artigo sobre a autonomia do paciente, XAVIER A. LÓPEZ DE LA PEÑA e MOISÉS RODRÍGUEZ SANTILLÁN[43]escrevem que ao recusar receber sangue como medida terapêutica, o adepto da religião Testemunhas de Jeová não está atentando contra a própria vida:

"Si, de outro lado, la idea central de la controversia que suscitan los pacientes Testigos de Jehová ante el prestador de servicios de salud es la de que con su rechazo a aceptar sangre como medida terapéutica estan atentando y disponiendo con ello contra su vida (cometiendo suicidio), y de outro impidiendo que el médico cumpla con su deber de medios para tratarle como señala la lex artis, podríamos entonces iniciar con tratar de discernir em primer lugar si esta acción es un suicidio. Consideramos que no. El paciente que bajo estas circunstancias rechaza la transfusión de sangre no quiere de ninguna manera morir puesto que busca la atención médica y acepta cualquier outro recurso que no sea sangre; tampoco esta ejecutando directamente uma acción contra sí mismo, luego entonces no se le puede culpar de intención suicida. La falta de sangre exógena que considera inaceptable per se no le causará la muerte, sino las consecuencias del choque hipovolémico por sua falta endógena por la causa que ésta sea; es la evolución natural de un processo patológico particular el que le conduciría en todo caso a la muerte. Em ninguna situación el certificado de muerte establece como causa directa de la defunción a la falta de transfusión sanguínea sino, en su caso y a modo de ejemplo para retomar la idea anterior, a choque hipovolémico por sangrado de tubo digestivo alto secundario a varices esofágicas rotas, o por herida penetrante de abdomen con lesión de aorta abdominal y hemoperitoneo consecuente, etc."(p. 124)

Ao invés de estar atentando contra a própria vida quando recusa transfusão de sangue, o paciente aderente da religião Testemunha de Jeová está na verdade prestigiando o bem "vida", pois no conceito desta incluem-se os direitos de personalidade e outros atributos espirituais que, suprimidos, reduzem o ser humano à mera condição de um animal.

Como magistralmente escreveu ANA CAROLINA DODE LOPEZ[44]

"As motivações e as convicções de cada pessoa dizem respeito apenas a ela, fazem parte do seu livre-arbítrio, não cabe aos outros enumerar as motivações alheias em aceitáveis e inaceitáveis, segundo os seus próprios critérios, sua própria vivência e com um olhar externo ao problema (visão de uma pessoa sadia).

"(...)

"Os motivos que levaram cada um a realizar ou não um tratamento médico dizem respeito à autonomia da pessoa, a razão pode sim decorrer de convicção religiosa, do medo dos efeitos colaterais, por depressão, por pura vaidade, atitude de negação da doença, por todos estes motivos juntos, ou por nenhum deles; não está na alçada dos outros julgar a validade ou não desta motivação, porque é da esfera exclusiva da autonomia da pessoa..."

Desrespeitar a autonomia do paciente leva a situações graves e incompatíveis com a dignidade humana. Citem-se dois exemplos: a) Em 1976, em Porto Rico, Ana Paz do Rosário concordou em submeter-se a uma cirurgia, desde que não fosse utilizado sangue; entretanto, foi-lhe aplicada transfusão de sangue contra a vontade, por policiais e enfermeiras que, munidos de uma ordem judicial, lhe amarraram na cama para poder executar o ato. Ana Rosário em seguida à transfusão entrou em choque e morreu[45]e , b) para salvar a vida de paciente que, por motivos religiosos, não consentia em fazer transfusão de sangue após difícil parto, médico pratica tal ato contra a vontade da parturiente e seu marido. Após a alta, a mulher não foi aceita em seu lar pelo cônjuge, e nem pôde mais frequentar a igreja, sendo repudiada por todos[46]

C – O princípio do consentimento esclarecido (ou informado) requer que o médico, antes de qualquer intervenção terápica ou cirúrgica, esclareça ao paciente os benefícios e riscos correspondentes, bem como informe acerca de alternativas ao tratamento proposto, possibilitando, assim, que o doente escolha o tratamento que reputar mais conveniente.

Segundo ZELITA DA SILVA SOUZA e MARIA ISABEL DIAS MIORIN DE MORAES, o consentimento esclarecido está atualmente na pauta das discussões sobre a ética médica, e o propósito de se requerer esse consentimento é o de promover a tomada de decisões autônomas pelo indivíduo em relação aos tratamentos médicos e questões de saúde[47]

Sobre o procedimento de obtenção do consentimento informado, veja-se a lição de FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA[48]

"Se o diálogo inclui o respeito à dignidade do paciente, ele expressa também o reconhecimento do paciente, ele expressa também o reconhecimento da autonomia, da liberdade do sujeito que se afirma sobre a fragilidade que a doença e a morte testemunham. Autonomia expressa a essência humana como liberdade de escolha; antes de tudo a possibilidade de optar em relação a tudo o que diga respeito à própria pessoa. A opção responsável é o exercício do direito inerente a todo ser humano de responder por si mesmo aos desafios da existência, isto é, de dominar, pela razão e pela vontade, o curso de sua própria história. Mesmo que o acontecimento escape ao controle da mente e do livre-arbítrio, a pessoa poderá sempre compreendê-lo e tomar posição frente a ele, ainda que esta compreensão seja o entendimento da fatalidade àquilo que a sobrepuja. [...]

"Em que sentido o paciente tem o direito de decidir? Na relação terapêutica habitual, o médico detém o privilégio do conhecimento daquilo que é melhor para o paciente. Ainda assim, a administração de terapêuticas está, em princípio, sujeita ao acordo do paciente, de seus familiares e dos eventuais responsáveis. Para obter o necessário consentimento, o médico transmite ao interessado a informação pertinente, assegurando-se de que a resposta estará condicionada ao correto entendimento da informação."

D – O princípio da justiça ganha força quando surge a necessidade de conscientização acerca da distribuição igualitária e geral dos benefícios e avanços propiciados pelos serviços de atendimento à saúde.

Assim, conforme refere BRUNO MARINI[49]"justiça envolve respeitar as diferenças existentes na comunidade, e ao invés de discriminá-las ou segregá-las, deve-se buscar meios de compreendê-las e satisfazê-las", o que impõe a obrigação de o Estado possibilitar o acesso, especialmente na rede pública, de tratamentos alternativos às transfusões de sangue para os objetores de consciência.

Precedentes jurisprudenciais de respeito à autonomia do paciente no exterior e no Brasil

A voo de pássaro, ver-se-á a seguir precedentes jurisprudenciais no exterior e no Brasil em que foi reconhecido o direito de o paciente recusar tratamentos médicos à base de transfusões de sangue. Gize-se que no direito anglo-americano, devido a uma tradição liberal de forte respeito aos direitos individuais, os precedentes dessa natureza abundam, ao contrário do que acontece em países do Terceiro Mundo, em que a tradição é justamente o escasso respeito aos direitos humanos.

a) ESTADOS UNIDOS

Caso Brooks - Devido a uma úlcera, paciente Testemunha de Jeová solicitou atendimento médico. Por repetidas vezes alertou ao médico de sua negativa em receber tratamento com sangue, inclusive firmando um documento de exoneração da responsabilidade do profissional. O médico, sem informar previamente à paciente, transfundiu sangue. Levado o caso à via judicial, o Tribunal de Apelação do Estado de Illinois afirmou que a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos protege o direito de cada indivíduo à liberdade de sua crença religiosa e seu respectivo exercício. Aduziu-se que a ação governamental só poderia embaraçar tal direito quando estivesse em perigo, clara e atualmente, a saúde, o bem-estar ou a moral pública.

Esta foi a primeira decisão de uma corte de apelação nos Estados Unidos em que se reconheceu o direito de um paciente da religião Testemunhas de Jeová a recusar transfusões de sangue não desejadas.

b) CANADÁ

Caso Mallete v. Schulman (Ontario Court of Appeal, 72 O.R 2d 417, 1989) – Em consequência de um acidente automobilístico, uma Testemunha de Jeová sofreu graves ferimentos. Na sala de emergência do hospital foi encontrada uma diretriz médica, por ela firmada, de que não aceitaria tratamento médico à base de sangue, mesmo que em situação de emergência. O médico do turno, de forma deliberada, ignorou tal manifestação de vontade, transfundindo sangue no paciente. A filha adulta da paciente havia objetado energicamente a tal transfusão de sangue, mas mesmo assim o médico não se furtou de fazê-la. Quando a paciente se recuperou, demandou o médico por administrar-lhe sangue sem o seu consentimento. A Corte resolveu o caso em favor da paciente, condenando-lhe ao pagamento de vinte mil dólares canadenses pelos danos ocasionados.

O médico apelou da decisão, mas o Tribunal de Apelação de Ontário rechaçou seus argumentos, reafirmando o direito de o paciente decidir a respeito do seu próprio corpo: "Um adulto capaz geralmente tem o direito de recusar um tratamento específico ou qualquer tratamento, ou de selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que essa decisão possa acarretar consigo riscos tão sérios como a morte ou possa parecer equivocada aos olhos da profissão médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o paciente quem tem a palavra final quanto a submeter-se a tratamento".

Além de confirmar o direito do paciente de decidir sobre o seu próprio corpo em caso de iminente risco de vida, o Tribunal de Apelação destacou que a Diretriz Médica Antecipada é uma forma de comunicar os desejos do paciente em uma emergência quando não possa se expressar.

c) CHILE

No artigo AUTONOMÍA DEL PACIENTE: EJEMPLO DE LOS TESTIGOS DE JEHOVÁ (reimpresso com permissão da Revista Chilena de Cirurgía (2003; 55 (5): 537-542), AVELINO REMATALES nos fornece dois notáveis exemplos de como o princípio da autonomia da vontade do paciente foi respeitada pelo Poder Judiciário chileno:

1) No ano de 1996, foi rejeitado o "Recurso de Protección Rol n.º 805-96" na Corte de Apelações de Santiago. Com o recurso, o Hospital San José pretendia transfundir sangue contra a vontade do paciente, com o argumento que a vida era um bem superior. Ficou decidido de maneira sucinta, mas profunda, que "ninguém pode ser forçado a defender seu próprio direito".

2) No começo de 2001, a Corte de Apelações de Valparaíso encerrou o caso contra um médico e a esposa de um paciente. Ambos haviam respeitado a vontade do enfermo. O paciente, que não era Testemunha de Jeová, padecia de uma hemorragia digestiva e se negou a uma transfusão de sangue. O médico e a esposa do paciente – quem sim era Testemunha de Jeová – respeitaram a vontade expressada. Devido a uma condição hemodinâmica muito complexa, o paciente morreu. Os familiares ajuizaram ação contra o médico e a esposa do paciente. Dois anos mais tarde a Corte absolveu completamente aqueles que respeitaram a vontade do paciente, o consentimento informado, a autonomia, a dignidade e a liberdade. Felizmente, a enfermeira havia escrito na ficha clínica que o paciente não havia consentido com a transfusão de sangue. Assim, se estabeleceu uma vez mais que o único titular da vontade é o paciente, e ainda que no estado de inconsciência.

d) ARGENTINA[50]

Caso Bahamondez (CS, 06.04.93, Medida Cautelar ED 153-249). Bahamondez era adepto da Religião Testemunhas de Jeová, civilmente capaz, que foi internado em um hospital em razão de hemorragia digestiva. Negando-se a receber transfusão de sangue, as autoridades do hospital pediram aos juízes autorização para fazer a transfusão de maneira compulsória, alegando que isso era fundamental para manter o paciente com vida. O Tribunal de 1ª Instância e a Câmara Federal de Comodoro Rivadávia concederam a autorização (CFed. Com. Riv. 15.106.89 ED 134-297), entendendo que o direito à vida não é disponível e que a atitude de Bahamondez equivalia a um suicídio lento.

Perante a Corte Suprema, o advogado de Bahamondez alegou que seu cliente queria viver, e não suicidar-se, mas, consciente dos riscos de vida que corria, preferia privilegiar sua fé e convicções religiosas em detrimento das indicações médicas.

A Corte, por maioria, declarou abstrata a questão, ou seja, não se pronunciou porque ao tempo que o expediente chegou à Corte, Bahamondez já havia obtido alta médica. Inobstante isso, quatro juízes desenvolveram meritórias dissidências em dois grupos, fixando a posição do tribunal para casos similares, levando em conta sua função de garante supremo dos direitos humanos.

O primeiro grupo, formado pelos juízes Mariano Cavagna Martínez e Antonio Boggiano, reconheceram que a liberdade religiosa traz consigo a possibilidade de exercer a "objeção de consciência", que é o direito do indivíduo de não cumprir uma norma ou uma ordem da autoridade que violente suas convicções mais íntimas, sempre que o descumprimento não afete significativamente os direitos de terceiros e o bem comum. No caso, os juízes mencionados interpretaram que não haviam sido afetados direitos de pessoa distinta da de Bahamondez e, portanto, não se lhe podia obrigar a atuar contra a sua consciência religiosa. Em síntese, esses votos se fundamentaram no conceito de liberdade de crença religiosa e na necessidade de respeitar a dignidade da pessoa humana.

O segundo grupo, formado pelos magistrados Augusto Belluscio e Enrique Petracchi, sublinhou no seu arrazoado o direito à intimidade, e, invocando julgados norte-americanos (balancing test), mencionou o direito de "ser deixado a sós", afirmando que tal direito não pode ser restringido pela só circunstância de que a decisão do paciente possa parecer irracional ou absurda perante a opinião dominante da sociedade. Tratando-se, no caso concreto, de homem adulto, consciente e livre, não cabia impor-lhe tratamento que violentasse suas convicções íntimas.

Caso Galacher (CNCiv. Sala G, 11.08.95 ED 154-655, Buenos Aires) Tratava-se do caso de uma mulher adulta, de 30 anos de idade, seguidora da religião Testemunha de Jeová, que sofria da enfermidade de leucemia aguda. Possuía filhos pequenos. Com a concordância expressa do cônjuge, opunha-se a receber uma transfusão de sangue indicada pelos médicos.

O "Fiscal de Cámara", entre outras considerações de seu arrazoado, sustentou que o Estado Federal sempre reverenciou o "fenômeno religioso"; destacou, ainda, que a Sra. Gallacher possuía vontade real e lúcida, além do desejo de continuar vivendo, mas não à custa dos sacrifício de suas convicções religiosas.

Por sua vez, o Asesor de Menores, ao tecer considerações sobre o efeito que a decisão teria sobre os filhos da enferma, sustentou que os menores se encontravam na alternativa de pedir a sua mãe que vivesse à custa de suas crenças, ou que assumisse sua fé até às últimas consequências e entregasse a vida, dando, desse último modo para seus filhos o exemplo de uma mãe heróica que entrega a vida por suas convicções.

O Tribunal, citando o caso Bahamondez, priorizou na sua decisão a objeção de consciência, afirmando que o direito de decidir a forma pela qual se possa morrer é um direito personalíssimo.

e) BRASIL

O juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, nos autos do processo 024.08.997938-9, indeferiu um pedido de alvará feito pelo Hospital Odilon Behrens, que pediu autorização para fazer uma transfusão de sangue em uma paciente que pertencia à religião Testemunhas de Jeová.

A paciente, por motivos religiosos, não aceitava a transfusão, mesmo ciente do risco de vida que corria. Após passar por uma cirurgia, a paciente apresentava queda progressiva dos níveis de hemoglobina.

O magistrado assinalou que as autoridades públicas e o médico tem o poder e o dever de salvar a vida do paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição. "Entretanto", salientou, "estando a paciente consciente, e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana".

O juiz referiu que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer tratamento clínico. A restrição diz respeito a qualquer tratamento que envolva a transfusão de sangue, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento.

Em trecho lapidar, o magistrado mencionou que no seu entendimento, resguardar o direito à vida implica, também, preservar os valores morais, espirituais e psicológicos". O Dr. Dresch citou que, embora não fosse lícito à parte atentar contra a própria vida, a Constituição, em seu art. 5º, inciso IV, assegura, também, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos.

O juiz referiu que o recebimento do sangue pelo seguidor da corrente religiosa "o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar, que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes".

Em razão disso, e pela informação de que a paciente se encontrava lúcida, o juiz não autorizou a realização da transfusão de sangue, que estava sendo recusada por motivos religiosos: "Desta forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão", concluiu o juiz.

O juiz Dresch citou outras decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que preservam o direito de seguidores da religião em não passarem por transfusões de sangue[51]Em uma das decisões do TJMG ficou decidido que é "possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico".

Não houve recurso do hospital, tendo a decisão transitado em julgado em 16/07/2008.

Lei islandesa sobre os direitos dos pacientes

O Anuário de 2005 das Testemunhas de Jeová refere a existência de lei islandesa acerca dos direitos dos pacientes, a qual estipula que nenhum tratamento pode ser dado a paciente sem o seu consentimento, e que se a vontade do paciente é conhecida, deve ser respeitada.

Trata-se da Lei n.º 74/1997 (que entrou em vigor em 1º/07/1997), um autêntico marco legislativo na temática dos direitos dos pacientes de recusar tratamentos médicos, como as transfusões de sangue. O governo islandês disponibilizou tradução, em inglês, da lei em comento[52]

O artigo 5º da Lei prevê que o paciente tem o direito de obter informações sobre seu estado de saúde, o tratamento proposto (com seus riscos e benefícios), possibilidade de tratamento diverso do originalmente proposto e suas consequências, bem como de consultar outro médico[53]

O artigo 7º determina que o direito de o paciente decidir sobre o tratamento que receberá deverá ser respeitado. Afirma expressamente que nenhum tratamento será dado sem o consentimento do paciente[54]

O artigo 8º prescreve que em caso de um paciente recusar um tratamento, o médico deverá informá-lo das possíveis consequências da decisão[55]

O artigo 9º, por sua vez, abre exceção ao "princípio do consentimento para o tratamento" nos casos em que o paciente estiver inconsciente ou incapacitado de comunicar sua vontade. Inobstante isso, se preteritamente à impossibilidade de manifestação era conhecida sua recusa por uma espécie de tratamento, sua vontade será respeitada[56]

O artigo 20 assegura ao paciente o direito de ir ao médico que reputar mais conveniente, o que traduz a possibilidade de ser transferido aos cuidados de outro médico ou equipe médica[57]

O artigo 21 estabelece a responsabilidade do paciente pela própria saúde, tendo o direito de participar ativamente do tratamento para o qual consentiu[58]

O surpreendente artigo 24 chancela a possibilidade de o paciente morrer com dignidade, conferindo a ele o direito de fazer cessar um tratamento na fase terminal. Acrescenta, ainda, que se o paciente for mentalmente enfermo ou estiver impossibilitado fisicamente, o médico deverá consultar os parentes antes de decidir sobre o fim ou a continuidade do tratamento[59]

Faz-se votos que a magnífica e avançada lei islandesa inspire a legislação de muitos países – especialmente a do Brasil -, para que haja o fortalecimento dos direitos humanos.

Direito dos pacientes a tratamentos alternativos às transfusões de sangue

Em respeito aos direitos fundamentais daqueles que por motivos religiosos não aceitam determinados tratamentos médicos, o Estado tem a obrigação jurídica de custear o pagamento, via SUS, de tratamentos alternativos às tranfusões de sangue – forma de materializar o atendimento dos direitos à saúde e à objeção de consciência, ambos protegidos constitucionalmente[60]

Não se deve aceitar o argumento daqueles que dizem que os tratamentos alternativos às transfusões de sangue não devem ser pagos pelo SUS porque são muito custosos e beneficiam apenas uma minoria.

Ora, em primeiro lugar, diga-se que as minorias também pagam seus tributos ao Estado, não podendo ser excluídas de terem um atendimento médico de acordo com suas convicções religiosas.

Em segundo, tratamentos alternativos beneficiam a coletividade inteira, dado que, como já citado, são inúmeros os riscos inerentes às transfusões de sangue: reações do tipo hemolítico e alérgico; transmissão do HTLV-1 e HTLV-2; TT-Vírus; malária; Mal de Chagas; sífilis; doença de Creutzfelt-Jacob (doença da "Vaca-Louca"), etc. Desta forma, o Estado, além de propiciar terapias médicas mais seguras aos usuários do sistema de saúde, evitará gastos com indenizações e tratamentos médicos de pessoas contaminadas pelas transfusões de sangue.

Em terceiro lugar, como já visto, a própria Constituição Federal protege a objeção de consciência.

Em quarto, não se pode aplicar nestas situações, visando negar o custeio dos tratamentos alternativos, a "teoria da reserva do possível", segundo a qual a satisfação dos direitos sociais fica condicionada à existência de recursos orçamentários do Estado. Em vez disso, aplica-se a "teoria do mínimo existencial", consoante a qual o Estado é obrigado a garantir o mínimo necessário para que a sobrevivência do indivíduo não periclite.

Destarte, o administrador público deve velar para que não seja negado a pessoas de poucos recursos o direito de objeção de consciência à transfusão de sangue somente porque na cidade de origem não existam as terapias alternativas. Nesse caso, o administrador deve arcar com os ônus de providenciar o tratamento em cidade, ou, se for o caso, Estado diverso do de residência do paciente. De idêntica forma, o Poder Judiciário deve ser firme em garantir tal direito em caso de recalcitrância do administrador do sistema de saúde.

Nesse aspecto, ventos benfazejos da jurisprudência começam a soprar, pois importante decisão favorável ao direito de o paciente ter custeado pelo SUS tratamento alternativo à transfusão de sangue em Estado diverso da Federação foi tomada, por maioria, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 22.395/2006, cuja ementa é a seguinte:

"TESTEMUNHA DE JEOVÁ – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃfO DE SANGUE – EXISTÃSNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA – TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – RECUSA DA ADMINISTRAÇÃfO PÚBLICA – DIREITO À SAÚDE – DEVER DO ESTADO – RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA – OBRIGAÇÃfO DE FAZER – LIMINAR CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO. Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como a única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente. A liberdade de crença, consagrada no texto constitucional, não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os princípios dela. Não cabe à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los. A inclinação de religiosidade é direito de cada um, que deve ser precatado de todas as formas de discriminação. Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-a, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. O princípio da isonomia não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais de cada um. Se o Sistema Único de Saúde do Mato Grosso não dispõe de profissional com domínio da técnica que afaste o risco de transfusão de sangue em cirurgia cardíaca, deve propiciar meios para que o procedimento se verifique fora do domicílio (TFD), preservando, tanto quanto possível, a crença religiosa do paciente."

Tratava-se do caso de cidadão de mais de 60 anos de idade que ajuizou na 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Cuiabá (MT) ação cominatória para cumprimento de ação de fazer contra o Estado do Mato Grosso, visando compelir o ente estatal a lhe custear cirurgia cardíaca (sem uso de transfusão de sangue) no Hospital Beneficência Portuguesa, na cidade de São Paulo/SP. Tal procedimento poderia ser realizado no Estado do Mato Grosso, mas somente mediante transfusão de sangue, o que ia de encontro às convicções religiosas do paciente.

Em primeiro grau, a antecipação de tutela foi indeferida, o que motivou o ajuizamento do Agravo de Instrumento junto ao TJMT. Por maioria, essa Corte, vencido o Relator Sebastião de Arruda Almeida, que negava provimento, reconheceu o dever do Estado do Mato Grosso custear a cirurgia cardíaca do paciente no Estado de São Paulo (com técnica que dispensa transfusão de sangue), diante da objeção de consciência.

O julgamento teve início em 24.05.2006, tendo o 1º vogal, Desembargador Leônidas Duarte Monteiro, em um primeiro momento, aderido ao voto do Relator, que negava provimento ao agravo. Nessa sessão, pediu vista o 2º vogal, Des. Orlando de Almeida Perri.

Na continuidade do julgamento, em 31.05.2006, o 2º vogal votou favoravelmente à pretensão do agravante, convencendo o 1º vogal a retificar seu voto.

Pela excelência das razões, calha transcrever trechos do voto vencedor do Des. Orlando de Almeida Perri (2º vogal):

"Para delimitar o âmbito deste apelo, impõe-se esclarecer que não se está a debater ética médica ou confrontação entre o direito à vida e o de liberdade de crença religiosa.

"O que se põe em relevo é o direito à saúde e a obrigação de o Estado proporcionar ao cidadão tratamento médico que não implique em esgarçamento à sua liberdade de crença religiosa.

"(...)

"Como adepto da doutrina "Testemunhas de Jeová", por força de textos bíblicos (Gênesis 9:3-4, Levítico 17:10 e Atos dos Apóstolos 15:19-21) não admite o recorrente submeter-se a procedimento cirúrgico se houver possibilidade de se utilizar transfusão de sangue, mesmo que isso represente o único recurso a salvar sua vida.

Partes: 1, 2, 3


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