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O questionamento da técnica em Heidegger (página 3)


Partes: 1, 2, 3

O caráter incontornável do ser simplesmente dado no manual que, em Ser e Tempo, articula o jogo entre a manualidade (Zuhandenheit) e o ente simplesmente dado (Vorhandenheit), agora, com a questão da técnica, tal caráter não apenas se instalou absolutamente, através da objetificação e produção de tudo o que a natureza "permitir", mas, e principalmente, essa se tornou a única face do ente intramundano, dito agora e apenas ser simplesmente dado.

O que em Ser e Tempo indicou o fundamento ôntico do manual e que se movia no horizonte da ambiguidade estrutural entre autenticidade (ou propriedade) e decadência ou fuga (impropriedade), revelando o valor ontológico do ente simplesmente dado no manual, incontornável de sua entidade; agora, após a questão da técnica, a meu ver, se revela como o único modo de apresentação do manual: o manual, com o fim da questão da técnica – não apenas o fim do questionamento como tal como correlato do fim da filosofia – se revela como inquestionado, não se questiona mais o manual em seu ser, em sua manualidade, o ente intramundano da manualidade é suplantado pelo ser simplesmente dado. O manual revelado como inquestionado em seu ser ente intramundano, despe ontologicamente o ente intramundano de seu sentido – como ente intramundano – e passa a ser considerado apenas a partir de seu aspecto ôntico: simplesmente dado.

Podemos ir ainda mais fundo nessa reflexão, que não é simples, e vislumbrar as possíveis consequências para o ser da técnica: entificado com as técnicas calculatórias e teorizantes, o manual é ele mesmo considerado, agora como simples ente, uma matéria-prima. O manual como matéria-prima do pensamento revela a crescente e abrangente produção, inclusive acadêmica que, como academia não apenas produz, mas também reproduz. Há, assim, uma fusão ou indistinção entre o fazer e o pensar: do ponto de vista não apenas prático, mas também teórico, em termos de metodologia, por exemplo, vale mais o saber-fazer. Tomado como paradigma universal – o âmago da lógica cibernética – o modo calculador é produzido e reproduzido nas universidades e nas ciências. Diferentemente da matéria-prima pensada a partir de uma physis grega, a matéria do pensamento já está agora previamente formatada: é matéria e forma do pensamento moderno técnico. Um pensamento que não se pensa a si mesmo, mas se calcula a si mesmo, tornando inviável qualquer questionamento. Inquestionado em suas bases, o modo de pensar calculador se revela como a crescente irreflexão, indicando um possível fim, de proporções teológicas: o inquestionado se torna inquestionável.

3.1 Da Angústia ao Medo: Pressentimento e Sentimento

O estar só e lançado no mundo é angustiante. O estar à mercê de um ente assustador é amedrontador. No que a angústia liberta o medo aprisiona. A angústia nos mantém despertos à existência e o medo nos mantém domesticados. Que indivíduo singular tem coragem – o antídoto do medo – contra o monstro[48]tecno-lógico? Quem questiona a técnica como tal? Pessoas se suicidam ao perderem o chão seguro da técnica e, importante frisar, do capital. A existência é insegura mesmo, é perigoso existir. Mas quando quebra uma bolsa de valores, por exemplo, muitos dos que perderam aquilo a que se agarravam se suicidam, ao se darem conta de sua mortalidade. Mortal e só é condição existencial do ser humano como ser-: conforme Ser e Tempo, o estar só e lançado no mundo é condição originária de existência do Dasein. Essa solidão ou singularidade (pois somos únicos) a que estamos condenados pode tanto suscitar o sentimento (ou situação) de liberdade como também o sentimento de abandono. E por que não abandonados à nossa liberdade? Na nossa singularidade somos abandonados à liberdade para escolher entre as infinitas possibilidades que o destino nos abre. A existência autêntica exige do homem um reconhecimento de seu estado de singularidade como condição para a liberdade: ser só é o preço pago para ser livre, e o preço pago é, ao mesmo tempo, a "conseqüência" e a condição de possibilidade da liberdade. A liberdade para escolher dentre as possibilidades (destino) envolve responsabilidades por tais escolhas. Assim, a liberdade é condição ontológica de possibilidade de existência: eu só existo porque sou livre; sou livre para experimentar o tempo como temporalidade. Temporalidade é correlato de existencialidade e historicidade.

A Stimmung fundamental e privilegiada do ser-aí, a angústia, condição prévia para a compreensão, não somente abre o ser-aí para o mundo e para si, como também aponta para algo mais originário e inquietante: o próprio destino[49]do ser-aí. Diante do estranhamento e do sentir-se "deslocado" no mundo, distanciado pela própria angústia, em sua transcendentalidade, o ser-aí existe autenticamente. É sua existência que torna possível ao ser-aí se perguntar pelo sentido do seu ser e pelo ser dos outros entes; em sua abertura constitutiva (o do ser-aí) há uma indicação, novamente, do caráter de transcendência[50]do ser-aí. Tudo que é prévio, como a compreensão e a abertura do ser-aí, já o são em uma disposição de afinamento (Stimmung). Tal caráter é o que permite ao ser-aí o distanciamento necessário para se fazer a pergunta fundamental: "por que há o ente e não antes o nada?".

É sempre numa disposição de afinação que o ser-aí compreende o mundo, ele próprio já se encontra sempre dis-posto, compreendido em uma situação de mundo: o ser-aí sempre está situado no mundo, numa situação de afinação com o mundo. No § 40 de Ser e Tempo, Heidegger nos apresenta a Stimmung fundamental: a angústia. Tal disposição de "humor", ou tonalidade afetiva, é o afinamento privilegiado, pois é o que trás o ser-aí "à tona" novamente, sempre que ele decai, fugindo de si, na impessoalidade e falação decadentes. Na impessoalidade do público e do falatório, é como se o Dasein fugisse de si mesmo, fechando-se. Ao se dar conta de sua Stimmung originária, a angústia, o ser-aí resgata a si mesmo e experimenta a existência originariamente, autenticamente. Não que o ser-aí não esteja sempre angustiado, de fato ele está, ainda que oscilando entre sintonias (Stimmung) diferentes, ele está sempre na angústia, embora fuja dela.

Por que a angústia é a tonalidade afetiva fundamental? Ela é fundamental porque, num primeiro sentido, a angústia é abertura, ela abre o ser aí não apenas para a existência, mas também para o apelo do ser: somente o ser-aí é capaz de "ouvir" esse apelo. O mundo e os entes intramundanos tocam o ser-aí, exatamente porque o ser-aí é aberto para o mundo, é esse apelo que toca o ser-aí e não o contrário: não é o mundo que toca o ser-aí. Já no § 40 de Ser e Tempo, Heidegger nos dá uma resposta a esta questão: a angústia promove a abertura de possibilidades de existência do ser-aí como ser-no-mundo. No fundo, a angústia é o existencial responsável pelo próprio destino do ser-aí, pois é ela, abrindo possibilidades, que abre a possibilidade fundamental do ser-aí: a possibilidade de poder-ser, ser-no-mundo. O que, a rigor, confere ao ser-aí também um sentido de alteridade, porque, embora o mundo seja meu mundo, ser-no-mundo é também ser-com-os-outros.

A angústia é a Stimmung fundamental também porque ela abre o ser-aí de modo privilegiado, apontando (ainda que sem direcionamento) para a existência mesma e sua impermanência, sua pendência. Embora o ser-aí seja pendente, o seu fim – a sua morte – é impendente. A impendência da morte, no entanto, não é no sentido de que ela ainda não se realizou como o ainda-não ser simplesmente dado, pelo contrário, esta impendência diz respeito à sua iminência. Se a morte fosse o ainda-não, então seria pendente, à espera de seu fim, e não é este o caso. A impendência da morte consiste em sua iminência: a morte é a possibilidade iminente, impendente e certa. A angústia, como pre-sentimento da morte, no fundo, manifesta o próprio nada. E o nada não pode ser sentido, pode apenas ser pre-sentido. Todos os sentimentos são sentidos, mas a morte mesma jamais se torna sentimento. Quando a morte chega, ela já passou: é impossível experienciá-la. (HEIDEGGER, 2005, p 57).

Por tudo isso nós sentimos algo e pressentimos nada. Aquilo que sentimos pode ser cuidado e resguardado. Mas sentimos medo também, e esse sentimento deve ser combatido. Sentimos medo das técnicas, medo de sua presença (os negadores da técnica) e de sua supressão (os defensores da técnica). Mas combater o monstro tecnológico é questioná-lo em suas bases quando ele não for mais dócil para nós. Não questionado o monstro da técnica, nós é que nos tornamos dóceis para ele.

CONCLUSAO

Este signo, como evento, coloca o ente no extremo abandono do ser e irradia ao mesmo tempo a verdade do ser como seu mais íntimo brilho.[51]

Olhando para o mundo e para as coisas e, do ponto de vista fenomenológico e cotidiano, é incontornável que sejam simplesmente dadas, não apenas no manual, como menciona Heidegger, mas o ser simplesmente dado é um dos modos de ser. Nessa modalidade de ser o ente intramundano (innerweltlich) pré-temático dá lugar à tematização e às possíveis teorias. Portanto, as ciências teoréticas, todas elas somente são possíveis porque o pré-temático subjaz como sentido e, principalmente, do ponto de vista da efetividade, porque o ser pode ser simplesmente dado ao pensamento – nas ciências. O perigo e o questionamento a ser levantado é quando o modo de ser simplesmente dado se torna o único modo de ser.

No horizonte do inquestionado surge o último (ou o próximo) deus – inquestionável – da metafísica da presença, representando a consumação da filosofia como metafísica. Consumação aqui entendida como realização e fim. Do mesmo modo, reduzido o pensamento ao modo de pensar técnico e calculador, o solo do inquestionado não somente é fértil e propício ao advento do inquestionável, como também, do ponto de vista político, é ideal para a instalação de ditaduras e totalitarismos.

O maquínico nunca erra, o erro é atribuído a um erro de cálculo do algoritmo[52]Quando o pensamento calculador não dá conta do desconhecido, não o chama mais mistério, pois o mistério foi banido pela ciência: o misterioso é o ainda-não revelado pela ciência, como o ainda-não ser simplesmente dado. Nesse mesmo sentido, natural e sobrenatural são termos indistinguíveis no bojo da ciência como representante máxima da indiferença ontológica: conhecido e desconhecido, natural e sobrenatural são, respectivamente, termos indiscerníveis. O sobrenatural, indistinto, deve se tornar visível e deve ser explicado pela ciência. O sobrenatural, não mais questionado, se objetifica como natureza: tudo o que permanece inquestionado no pensamento técnico é naturalizado pela "natureza" totalizante - nada pode ficar de fora de seus domínios. Quando o inquestionado se totaliza, então se essencializa como fundamento.

A incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual permanece incontornável, mas não pode permanecer impensada: mesmo o que não se contorna deve ser questionado, sob pena de findar também a filosofia. Partindo do caráter incontornável ao caráter irreversível do ser simplesmente dado, chegamos ao fim do questionamento da técnica como tal. O conceito de irreversibilidade, aqui, não é contrário ao conceito de incontornabilidade, pelo contrário, quando o incontornável se tornar irreversível, podemos dizer que o incontornável se tornou absolutamente incontornável. O fim do questionamento funda a era do inquestionado e o ser, cego em relação ao seu próprio fundamento, se instala como simplesmente e irreversivelmente dado. Manipulatória e dominadora, a técnica se coloca a si mesma como irreversível. Onticamente, da técnica, ao alcançar proporções gigantescas – senão gigantomaníacas – o homem se vê refém.

Como modo de pensar técnico, somos reféns do impensado; como modo de ser prático (agir) somos reféns do gigantesco. Estamos à mercê da tecno-logia como modo de ser e agir e, correlativamente, como modo de pensar. O incontornável se torna irreversível e inquestionado: o ente da metafísica da presença. A esse fim do questionamento da técnica corresponde o fim do questionamento como tal e representa o triunfo do objeto "evidente" (das ciências) sobre o fenômeno existencial. Em outras palavras, o fim da questão da técnica significa o fim da filosofia, suplantada em seu modo de pensar reflexivo, pelo modo de pensar maquínico: o algoritmo é o novo logos. Mas será que Heidegger tem razão ao dizer que ao "olharmos para o perigo, avistamos o crescimento do que salva"? (HEIDEGGER, 2007, p. 394).

O pensador é o espelho do mundo: se o mundo não se reflete límpida e transparentemente no pensamento, então o pensamento não é pensamento e o pensador não é pensador. Ao substituir o papel de espelho pelo papel de calculador e determinador da extensão do mundo, o filósofo se descaracteriza a si e ao seu pensamento. Nesse horizonte do pensar, também a filosofia se converte em mais uma concepção de mundo. Como concepção, imagem ou visão de mundo, a filosofia é vista como um bem cultural (HEIDEGGER, 2006a, p. 48). Nessa sedução ao determinismo do cálculo, o encanto filosófico – porque existe o mundo – é substituído pelo encanto maquínico – porque domino o mundo; o encanto da Gestell (maquinação) se mostra como um desencantamento do mundo. E o que desencantou com o mundo? A filosofia.

A "filosofia", nos moldes do novo paradigma, é também calculatória. Tudo na era da técnica é medido por seu valor instrumental, como meio para fins. Por isso se perguntam os "filósofos" da determinação: qual a utilidade imediata desse modo de pensar filosófico? E eles mesmos respondem: Nenhuma. E não estão errados em sua resposta, pois ao se chegar a essa conclusão há uma completa inversão do modo de pensar. A filosofia que se pensa a si mesma e a seus fundamentos é tomada como delírio ou devaneio; e em seu lugar é exigência geral "clareza e distinção" no pensamento, como correspondente ao objeto aprisionado pelo cálculo. O pensamento é transformado em representação. Mas no extremo desse niilismo maquínico, Heidegger, nas Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) vislumbra a possibilidade de um "trânsito a um outro começo" do pensar. Qual a tarefa desse pensamento e o que seja esse pensamento permanece, ao fim das reflexões do autor, um mistério. Há a indicação de uma possível saída pelo modo de pensar poético. O filósofo aponta uma saída poética, resgatando de certo modo o "caminho da linguagem", como morada do ser. Pois o que há em comum entre a filosofia e a poesia é que ambas são linguagem.

Inspirado nos versos de Hölderlin, o filósofo da Floresta Negra indica a esperança em uma possibilidade última, quando tudo o mais sucumbiu ao nada da Gestell: lá mesmo, no mais íntimo niilismo gestéltico há a possibilidade de salvação, de um recomeço do pensar, uma superação, que só se abarca por completo no final. Daí a radicalidade do pensamento filosófico. Radical diz na raiz: pensar a raiz é pensar o ser na sua origem. Paradoxalmente, somente se pensa a origem quando se chega ao fim, no fim vislumbra-se o primeiro começo e a sua possível superação. Mas isso é para poucos, nas palavras de Heidegger: para os insólitos. Esses extraordinários que de tempos em tempos perguntam e, ao perguntar, se colocam na posição mais elevada da alma: a solidão indispensável para pensar a nobreza do ser e dizer sua singularidade. (HEIDEGGER, 2006a, p. 28).

Naturalizada, a técnica permanece impensada, inquestionada. Heidegger levantou a questão da técnica. Quando não mais houver questionamento a fazer sobre a técnica, ela reinará soberana, acima dos homens e dos deuses. E mais, quando o inquestionado se tornar inquestionável, surgirá então o novo deus. Enquanto há o questionamento eu posso reconhecer que o novo deus será o maquínico, a técnica como fundamento onto-teológico, ou mais propriamente ateológico; mas, paradoxalmente, com o advento desse novo deus, seu fundamento permanecerá impensado e, assim, novamente, não o reconhecerei.

Mas, enquanto não chega esse novo deus, questiono agora, à guisa de conclusão, a comparação que considero definitiva entre Ser e Tempo e A Questão da Técnica. Para explicar minha posição, cito novamente o já mencionado no capítulo 2 deste trabalho:

[...] O martelar não somente não sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. [...] (HEIDEGGER, 2006b, p. 117).

O martelar se apropria do martelo (ente intramundano) pre-tematicamente, como ser e sentido do martelo; do mesmo modo, também a técnica, como evento apropriador se apropria pré-conscientemente, da nossa época e, em correspondência, do ser humano. O ser humano é o martelo de que o martelar gestéltico se apropriou. E somente houve esta apropriação porque, na essência, o ser humano corresponde a esse apelo, de modo que "uma adequação mais perfeita não seria possível". Eis o que considero a relação definitiva entre o filósofo de Ser e Tempo e o filósofo após a khere.

Da incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual podemos extrair a exata noção do que o pensador da Floresta Negra chamou de apropriação e comprometimento. Só há apropriação porque, de algum modo, há uma correspondência, na correspondência comprometem-se "causa" e "efeito". Não é óbvia, no entanto, a relação entre o martelar e o calcular. O martelar é um modo de ser de um ente simplesmente dado; já o calcular é um modo de pensar de um ser que não se torna nunca, do ponto de vista existencial, simplesmente dado.

O absolutamente inquestionado é irreversível porque, no niilismo do não-reconhecimento, ou do esquecimento, não há mais questionamento. O que não é questionado permanece para sempre imutável. Tanto o incontornável não temático no manual, como o tematizado a posteriori, em teorias, são, ambos incontornáveis e correspondem ambos, tal como os funcionários da técnica, ao mesmo apelo gestéltico. O lugar do questionamento é o entre o pré-temático e a sua tematização: é o pensamento da diferença ontológica. Pensar filosoficamente, nesse sentido, é pensar a diferença, não a identidade, nem a semelhança, nem a assimilação. Pensar a diferença é pensar a singularidade que nos distingue absolutamente. Roubar o fogo dos deuses não nos assemelha a eles, nem nos distingue deles. O que nos distingue dos deuses é o fato de nos superarmos a cada vez, como super-homens, tornando-nos a cada vez outros, mas permanecendo os mesmos. Aos deuses, imortais e imutáveis, resta permanecerem sempre os mesmos, e para sempre. Os deuses são incontornável e irreversivelmente dados.

Uma bomba atômica por si mesma, aparentemente, não indica nenhum perigo. Aparentemente, apenas; porque a finalidade de sua produção é intrinsecamente nefasta. Seu objetivo é a explosão. Parece óbvio e ingênuo dizer isto, mas não é nem óbvio nem ingênuo. A manipulação atômica para fins medicinais, por exemplo, embora seja semelhantemente imprevisível quanto a seus resultados, guarda em si um propósito intrinsecamente bom. A produção da bomba e a possibilidade de fim do mundo são de responsabilidade de todos, funcionários e não-funcionários da técnica estamos todos comprometidos. Inquestionada sua produção, seu crescimento floresce.

O que está em jogo aqui, em suma, é uma nova concepção de verdade por correspondência ou adequação, não no sentido lógico, mas no sentido ontológico. Do mesmo modo que o martelar se apropriou do martelo, na incontornabilidade do seu ser simplesmente dado no manual, também a maquinação se apropriou do agir e pensar humanos, de tal modo que "uma adequação mais perfeita não seria possível".

Refletir sobre este tema é questionar o ser humano em sua intimidade mais originária. Ou seja, é questionar o ser humano que, esquecido de seu ser – a Cura – se converte em objeto da representação e na representação.

O lugar da Cura e seu questionamento em relação a este destino técnico é a tarefa que tomarei no mestrado. Heidegger questionou a técnica, é preciso questionar a Cura, essência do ser-aí. Apropriando-me do pensamento de Luiz Hebeche, questionar a "Cura" é "tornar-me uma questão para mim [mesmo]" (HEBECHE, p. 19). Ao se chegar ao fim do questionamento da técnica, restará então, como possibilidade filosófica, o auto-questionamento. Fazer esse questionamento significa pensar qual o papel do ser humano ou sua "responsabilidade" em relação à técnica e ao perigo extremo engendrado por ambos. Homem e técnica estão necessariamente comprometidos (Verschulden), na mesma relação entre causa e efeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HEIDEGGER, Martin. A Época das Imagens de Mundo. Tradução de Claudia Drucker, com consulta às traduções de Wolfgang Brockmeier para o francês, em Chemins que ne mènent nulle part (Paris: Gallimard, 1986, pp. 99-146), e de William Lovitt para o inglês, em The Question Concerning Technology and Other Essays (Nova Iorque: Harper, 1977, pp. 115-154). Disponível em:

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LOPARIC, Zeljko. A Fabricação do Humano. 19-Nov-2007. Disponível em:

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RÜDIGER, Francisco. Martin Heidegger e a Questão da Técnica. Porto Alegre: Sulina, 2006.

Dedico este trabalho a Patrícia Donato e a Tâniara Aguiar, minhas interlocutoras em Filosofia.

Autor:

Claudio Rosa Donato

Florianópolis

Orientador: Prof. Dr. Darlei Dall"Agnol.

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para a obtenção do título de Bacharel em Filosofia e aprovado em sua forma final pelo Curso de Graduação em Filosofia, da Universidade Federal de Santa Catarina.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Filosofia – Bacharelado, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito final para obtenção do título de Bacharel em Filosofia.

10 de Dezembro de 2010.

Banca examinadora:

Prof. Dr. Darlei Dall"Agnol – Orientador

Prof. Dra. Cláudia Pellegrini Drucker – Membro

Prof. Dr. Roberto Wu – Membro


[1] "A questão do ser é a questão da verdade do Ser". (HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), 2003, p. 6).

[2] Neologismo, cunhado pessoal e arbitrariamente, derivado de Gestell,

[3] Dasein.

[4] HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Revista Scientia Studia, 2007.p. 386.

[5] Resguardar significa guardar com cuidado.

[6] Natureza não no sentido de essência, mas como um dos modos de ser humano.

[7] Para melhores esclarecimentos sobre a diferença entre historiografia (Historie) e historicidade ou história (Geschichte), vide os parágrafos 72 a 77 de Ser e Tempo.

[8] Mas a disponibilidade como acúmulo, depósito e armazenamento de instrumentos refere-se já á questão da técnica.

[9] O modo de pensamento técnico se mostra também como meio para fins. Por esse motivo, o sucesso das Universidades será atingido se se formarem profissionais técnicos.

[10] "História não tomada aqui como um âmbito do ente entre outros, senão somente em vista á essencialização do ser [Seyn] mesmo. Deste modo, já em Ser e Tempo a historicidade do ser-aí deve ser entendida somente desde a intenção fundamental-ontológica e não como uma contribuição á filosofia da história presente a mão. [...] O evento-apropriador é a história originária mesma, com que se poderia insinuar que aqui em geral a essência do ser [Seyn] é concebida "historicamente". (HEIDEGGER, 2006a, p. 43).

[11] Nada deve escapar á técnica, tudo deve ser explicado pela ciência, tudo deve ser descoberto. O ainda-não descoberto é o ainda-não ser simplesmente dado.

[12] HEIDEGGER, Martin. A época das Imagens de Mundo. Tradução de Claudia Drucker, com consulta ás traduções de Wolfgang Brockmeier para o francês, em Chemins que ne ménent nulle part (Paris: Gallimard, 1986, pp. 99-146), e de William Lovitt para o inglês, em The Question Concerning Technology and Other Essays (Nova Iorque: Harper, 1977, pp. 115-154). Disponível em: http://ateus.net/artigos/filosofia/a-epoca-das-imagens-de-mundo/

[13] Estoque e armazenamento de material genético humano e técnicas de criogenia.

[14] A morte fabricada nos campos de concentração: a técnica promove a massificação da vida e da morte.

[15] Não se trata, aqui, de uma análise ética da questão do consumo. Aliás, consumir material genético ou tecido humano produzido em laboratório não tem em si um caráter negativo ou positivo.

[16] Direção, comando e controle de informações são elementos essenciais da cibernética.

[17] Conforme as Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), Seer ou Seyn, em referência ao ser-historial.

[18] Na intimidade da técnica como evento apropriador, revela-se como essência a maquinação: é a Gestell que acontece como modo de fazer ou agir, e modo de pensar. Gestell é a armação a que a totalidade do ente deve se adequar, acomodar, se espelhar e, assim, produzir e reproduzir.

[19] O que Loparic traduz por ontológico-acontecencial (seinsgechichtlich) eu opto por ser-historial, tradução adotada, por exemplo, por Cláudia Drucker.

[20] A moderna técnica transforma o ser-aí em homem. O homem é o ser-aí naturalizado. Se nas origens da técnica está a ciência exata da natureza (física), preparadora, é "natural" que, em correspondência a esse apelo (da Gestell), também o ser-aí se torne homem.

[21] Sem a experiência do mundo como existencial, também o mundo é estocado e consumido.

[22] A técnica, como consumação absoluta da metafísica da presença, representa um destino ou destinação do próprio ser, ou seja, é parte da história do ser o seu próprio esquecimento. A técnica absolutamente instalada é o ser plena e completamente esquecido. Ao ser plenamente esquecido corresponde o ente completamente representado.

[23] Niilismo, nesse contexto, entendido não apenas como negação ou não-reconhecimento do seu papel em favor da obra da Gestell, mas niilismo também como a representação de uma forma vazia, em correspondência ao apelo algoritmico-calculador da Gestell. A Gestell, como forma vazia de conteúdo apela ao vazio de sentido da técnica e do técnico. Mas é esse vazio mesmo a essência e a verdade da técnica.

[24] HEIDEGGER, Martin. A época das Imagens de Mundo. Tradução de Claudia Drucker, com consulta ás traduções de Wolfgang Brockmeier para o francês, em Chemins que ne ménent nulle part (Paris: Gallimard, 1986, pp. 99-146), e de William Lovitt para o inglês, em The Question Concerning Technology and Other Essays (Nova Iorque: Harper, 1977, pp. 115-154).

[25] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Editora Vozes, 2006 b, p. 115.

[26] Ibidem, p. 117.

[27] Na tradução de Ser e Tempo referenciado nesse trabalho, a tradutora usa a expressão presença para designar Dasein (ser-aí). Não se trata aqui desse conceito, mas a presença no sentido entendido por Heidegger referindo-se á metafísica da presença.

[28] é o que Heidegger chama de Metafísica da presença.

[29] Zuhandenheit somente se refere ao mundo em sua totalidade no sentido da remissão: os instrumentos no mundo se remetem uns aos outros, através de sinais ou "referências".

[30] Tradução alternativa.

[31] Mundo como mundanidade, situado existencialmente, no sentido originário (ontológico). A mundanidade do mundo se refere á experiência existencial do mundo. A mundanidade está para a existencialidade, a historicidade, e a temporalidade. Temporalidade é tempo experimentado existencialmente.

[32] Mundo como extensão, situado espaço-temporalmente, no sentido não-originário (existenciário, ôntico). O mundo (ôntico) está para a historiografia e o tempo calculado. Tempo calculado é experiência existenciária, ôntica.

[33] Instrumentalidade, manualidade.

[34] Voz.

[35] "Escuta" como correlato da Voz (Stimme), mas não como relação correspondencial simplesmente, pois Stimmung compreende de uma feita Voz e Escuta: na afinação.

[36] Adaptação ou corruptela do termo Stimmung entendido como atmosfera, termo que indica a imbricação entre objeto e sujeito: Stimmung não é interno nem externo, mas dá conta de ambos.

[37] Acrecente-se intramundano.

[38] Em seu ser.

[39] Diga-se pré-tematicamente.

[40] Reproduzo na íntegra a nota explicativa (N17): "SER PARA = UM-ZU: é para se distinguir nitidamente os dois planos designados pela mesma expressão ser para: referida á presença [Dasein], indica o plano estrutural de constituição da existência (Sein-zu); referida á manualidade, exprime o plano constituído do conjunto instrumental (Um-zu).

[41] Segundo considerações do professor Hebeche, em aula, ao invés de referência, a expressão Verweisungsbezug é melhor traduzida por remissão, que também remete a uma totalidade conjuntural (conjuntura), mas que não está comprometida com a Metafísica tradicional, como no caso do termo referência.

[42] Do hino Patmos, de Hölderlin, citado por Heidegger no Die Frage nach der Technik. A Questão da Técnica, 2007, p. 391.

[43] Ou mais propriamente "niilo-teológica" (a-teológica), já que a questão totalizante da técnica não pressupõe um deus, ainda que seja possível que ao "olharmos para o perigo, avistamos o crescimento do que salva" (HEIDEGGER. A Questão da Técnica. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Revista Scientia Studia, 2007, p. 394).

[44] HEIDEGGER, Martin. A época das Imagens de Mundo. Tradução de Claudia Drucker, com consulta ás traduções de Wolfgang Brockmeier para o francês, em Chemins que ne ménent nulle part (Paris: Gallimard, 1986, pp. 99-146), e de William Lovitt para o inglês, em The Question Concerning Technology and Other Essays (Nova Iorque: Harper, 1977, pp. 115-154).

[45] Vide noção de comprometimento no texto A questão da técnica (pp. 377-380), em que Heidegger explica a relação entre a técnica como instrumental e sua relação com a causalidade. As quatro causas do ente, de Aristóteles, segundo Heidegger, estão comprometidas entre si, não apenas no início ou gênese do ente, mas perfazendo e permanecendo como causas no acontecer do ente.

[46] Eidos pensado aqui como paradigma, tal como explicado no Timeu platônico.

[47] Tradução livre: "As Contribuições questionam numa via que recém se abre através do trânsito a outro começo, no que agora ingressa o pensamento ocidental. Esta via leva o trânsito ao aberto da história e o fundamenta como uma talvez muito ampla vigência, em cuja direção o outro começo do pensar permanece sempre somente vislumbrado mas todavia já decidido. (HEIDEGGER, 2006a. p. 22).

[48] O termo monstro, aqui, não tem um sentido ético, mas, antes, indica o gigantesco da abrangência técnica: refere-se ao apelo gestéltico totalizante e á correspondente superprodução através das técnicas.

[49] Destino é possibilidade, destino último é possibilidade última: a morte. Mas a morte é uma possibilidade impossível.

[50] Transcendência aqui não no sentido tradicional - o que, aliás, é combatido por Heidegger, mas no sentido de abertura e antecipação a si mesmo. Tal como uma harmonia, a Stimmung está "além" de dicotomias como interior-exterior, imanente-transcendente, objetivo-subjetivo. Exatamente porque Stimmung não é um estado interno ou psicológico, nem tampouco é um estado de transcendência (no sentido tradicional do termo). Stimmung não é subjetivo nem objetivo - e dá conta de ambos -, não é interior nem exterior - e dá conta de ambos -, não é imanente nem transcendente - e dá conta de ambos. Stimmung é uma experiência, a mais originária, segundo Heidegger. é a experiência da própria existência. O fator de transcendência, num sentido não-tradicional, em relação á Stimmung diz respeito apenas ao seu sentido de abertura, ao aí do ser-aí, pois esta abertura é o que abre o Dasein para existir. O aí se refere á abertura do ser-aí á sua compreensão prévia, anterior a qualquer teorização. é porque eu já compreendo previamente o mundo que eu posso teorizar sobre ele, e não o contrário. O ser-aí existe porque é aberto, tem abertura para o mundo: eis a sua transcendentalidade. Existir autenticamente é responsabilidade do ser-aí. Responsabilidade não no sentido ético, mas no sentido de que somente o ser-aí é responsável por seu destino, intransferível e não-compartilhável. Seu destino - a pura possibilidade, aberta e livre - é o que há de mais íntimo em sua estrutura de Cura, e, por isso mesmo, deve ser resguardado.

[51] HEIDEGGER, Martin. Aportes a la Filosofia: Acerca del Evento. 2ª. Ed. Buenos Aires: Biblos: Biblioteca Internacional, 2006a,p.328.

[52] Erro humano?

Partes: 1, 2, 3


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