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O questionamento da técnica em Heidegger (página 2)


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Ou seja, é porque sou originariamente livre que posso ser livre para, inclusive, a impropriedade, inautenticidade ou decadência. Como estamos lançados no mundo insistimos em existir. No entanto, sem o retorno da queda do impessoal decadente para o âmbito da experiência originária, a reflexão se perde e é esquecida no interior do novo modo de ser e de pensar: o modo calculador. Um cálculo nunca é livre: calcular significa pensar mecânica e deterministicamente. No cálculo podemos prever resultados, mas estes resultados não são questionados. Escatologia, nesta explicação, portanto, significa: a possibilidade de um destino último da história da humanidade. Uma destinação última pode significar o fim do evento histórico e do "evento" filosófico, com a morte do homem, mas também pode significar o niilismo positivo, como uma preparação para um novo começo. O homem é livre para a morte e pela morte, mas, esquecido de seu ser, o homem deixa de ser mortal e se transforma em animal biológico. Assim, fisiologicamente interpretado, o ser humano pode ser estocado em hospitais por tempo indeterminado. Tempo aqui não significa temporalidade, pois carece de experienciação, mas significa, novamente, cálculo. O que podemos entender do tempo da espera e da esperança? Certamente alguém pode preferir "despertar" em outro tempo após longo tempo em coma. Mas não há garantias. É nesse horizonte, também sem garantias, que Heidegger pensa o perigo extremo de extinção do próprio ser humano. Mas, inspirado nos versos de Hölderlin, vê o florescimento do que pode salvar, pois no perigo extremo há, no seu limite, a possibilidade de superação. A salvação, no entanto, somente pode florescer com o questionamento radical.

Nessa monografia, as obras principais utilizadas foram Ser e Tempo, A Questão da Técnica, A Época das Imagens de Mundo e o livro Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), textos de Martin Heidegger.

Cláudia Drucker, Francisco Rüdiger, Luiz Hebeche e Zeljko Loparic são os comentadores considerados nesta pesquisa.

"Tudo o que é essencial, não somente o essencial da técnica moderna, em todos os lugares, se mantém oculto por mais tempo. Não obstante, permanece referido a seu imperar enquanto o que antecede a tudo: o que é primordial. [.] Aos homens, a madrugada inicial se mostra apenas no final." [4]

É no fim que se vislumbra o primeiro começo, a origem. Heidegger reconhece a antecedência cronológica e, portanto, historiográfica da ciência exata da natureza (teoria física) em relação à técnica moderna. Mas o elemento técnico já naquele momento se instalava, subsistindo, como Gestell. A ciência exata é historiograficamente anterior à moderna técnica, mas, historicamente é posterior; posto que a técnica, em sua essência, a precede. Justamente porque é a técnica que impera como o primordial. O primordial é anterior. Assim, a física já guardava a essência da técnica e já preparava "o recolher que desafia no desabrigar requerente": a própria técnica. (HEIDEGGER, 2007, p. 386).

A técnica não é uma aplicação da ciência moderna, mas o seu modo próprio de "conhecer". A marca da origem técnica da ciência moderna se mostra na exigência que aceitemos o princípio de regularidade e a forma específica como esta regularidade é pensada: ou seja, como necessidade que se impõe à razão, mesmo quando não podemos dizer com certeza de onde tiramos tanta certeza. Assim, um dos temas centrais da filosofia heideggeriana da técnica é o seu caráter impositivo. Impor condições é da sua natureza. O modo técnico de tomar as coisas é o "desafio" ou "provocação" (Herausfördern, Herausforderung). Não se obedecem aos ritmos e potencialidades das coisas. Não nos limitamos mais a apenas acelerar os ciclos naturais. Já determinamos o que a natureza deve produzir. O brilho do sol e a força do vento são desafiados a revelar suas possibilidades energéticas. Inventam-se organismos feitos de partes de outros organismos. O desafio colore todas as nossas relações: todas as coisas são tomadas como "estoque", "recurso" ou "fundo" (Bestand) que se oferece para variadas expectativas. A técnica é uma forma pré-consciente e pré-deliberada de se relacionar com as coisas, ou seja, o próprio modo de aparecimento das coisas. A provocação é uma condição geral dos fenômenos, que se caracteriza precisamente por excluir todas as outras. (DRUCKER, 2004. p. 71).

A técnica nos provoca e, assim, nos convoca. A técnica se apropria do tempo e do ser humano na provocação que apela por correspondência. Corresponder ao apelo é, ao mesmo tempo, realizar e ser realizado pela técnica. Ou seja, ao corresponder ao apelo gestéltico, o ser-aí se realiza enquanto ser humano e realiza a destinação histórica: a própria técnica como evento apropriador. Há, assim, um comprometimento entre ser-aí e técnica.

Heidegger, no início do texto A questão da técnica – a partir de sua interpretação das quatro causas do ente, segundo Aristóteles – descreve o que ele considerou a relação entre a causalidade e o que há de instrumental na técnica. Sua interpretação dos conceitos de causalidade e télos abre uma nova perspectiva sobre o que está em jogo, tanto no fazer como no pensar.

Heidegger pensa outro tipo de explicação para o que se entende tradicionalmente por causalidade, no sentido de se buscar um fim ou um objetivo. O fim é o início da coisa criada, é o seu télos, na interpretação de Heidegger. A causa é entendida como um comprometimento entre o que primeiro causou e que, no presente mantém o "efeito". As causas se mantém causando no télos, na articulação entre as causas do ente, que o deixam situar no mundo. Na situação de mundo comprometem-se mutuamente presente, passado e futuro. É esse o mesmo sentido da explicação em Ser e Tempo sobre nossa dívida com o tempo. Somos "culpados" por existir, simplesmente porque existimos. À medida que existimos, estamos comprometidos com o que nos causa e com o que causamos. Somos culpados por existir, pois estamos comprometidos com nós mesmos. Esse comprometimento se amplia quando, convocados pela Gestell, correspondemos ao seu apelo, simplesmente calculando. Essa correspondência já é uma "cumplicidade", um comprometimento. "O comprometimento tem o traço fundamental desse deixar situar (An-lassen) no sentido de um tal deixar situar". (HEIDEGGER, 2007, p. 379). É nessa situação que o não-presente se presenta, se produz como poiesis. "A physis é inclusive poiesis no mais alto sentido" (p. 379), pois é auto-poiética. (HEIDEGGER, 2007, p. 377-380).

Na sua origem, a técnica mais antiga, entendida como techne, já pertence à poiesis. Tanto techne como episteme são modos de desabrigar, e "ambas são nomes para o conhecer em sentido amplo. Significam ter um bom conhecimento de algo, ter uma boa compreensão de algo. O conhecer dá explicação e, enquanto tal, é um desabrigar". (HEIDEGGER, 2007, p. 380).

Também a técnica moderna é um desabrigar, mas não no sentido da técnica manual mais antiga, como um desabrigar da poiesis. A técnica mais antiga tinha o sentido poiético em harmonia com a physis, que deixava desabrigar a produção como cultivo. A physis transformada em natureza, determinada pela ciência exata, é então, um desabrigar que desafia o cultivo como produção. Assim, não se trata mais de um cultivo propriamente, mas de uma provocação que transmuda a physis em natureza e, nesse sentido, provoca à produção, tendo o ser humano como medium desse processo. A técnica provoca e convoca homem e natureza.

O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar à frente no sentido da poiesis. O desabrigar imperante da técnica moderna é um desafiar <Herausfordern> que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Mas o mesmo não vale para os antigos moinhos de vento? Não. Suas hélices giram, na verdade, pelo vento, permanecem imediatamente familiarizadas ao seu soprar. O moinho de vento, entretanto, não retira a energia da corrente de ar para armazená-la". (HEIDEGGER, 2007, p. 381).

No que o antigo camponês cuidava e resguardava[5]a moderna técnica desafia, desabriga e reserva em estoques. "O fazer do camponês não desafia o solo do campo. Ao semear a semente, ele entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu desenvolvimento". (HEIDEGGER, 2007, p. 381).

O produzir da poiesis, segundo Heidegger, leva o que está oculto ao seu desocultamento. O processo poiético é, portanto, alethéico. Alétheia significa desvelar. E o que se mostra no desvelamento é a verdade. A verdade como representação é o ocultamento da verdade como alétheia. Do mesmo modo, a técnica pensada como meio para fins é um encobrimento do seu ser que, encoberto, permanece não-questionado.

A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade. (HEIDEGGER, 2007, p. 380).

Mas se o desabrigar da técnica não é uma determinação antropológica, qual o papel do homem nesse jogo? O papel do humano é o papel da representação e da correspondência a um apelo. É da "natureza"[6] do homem o corresponder e o representar.

(.) Onde quer que o homem abra seu ouvido e seu olho, abra seu coração, liberte-se de todo o seu pesar, ao imaginar e operar, ao pedir e agradecer, em toda parte sempre já se encontrará levado para o que está descoberto. Seu descobrimento já aconteceu todas as vezes que convoca o homem nos seus modos de desabrigar a ele dispostos. Se a seu modo o homem, no seio do descobrimento, desabriga o que se apresenta, então ele apenas corresponde ao apelo do descobrimento, mesmo onde se opuser a ele." (HEIDEGGER, 2007, p. 384).

É esse o mesmo sentido, de correspondência, que Heidegger ilustra com o exemplo do "funcionário da técnica". Está o homem a serviço da técnica quando a apoia fervorosamente e também quando a nega absolutamente. Negar ou aceitar são ambas atitudes cegas, correlatas das concepções de mundo e das ideologias em geral.

É por esse motivo que a técnica moderna não é um mero fazer humano. Mesmo a tomada da natureza como uma região da representação do homem não é por ele mesmo determinada. Esta determinação é dada, segundo Heidegger, pela essência da técnica, à qual, nesse sentido, o homem corresponde, ou responde ao apelo. O que apela ao homem é o que subsiste na invocação que requer e desafia: é a essência da técnica, denominada Gestell. (HEIDEGGER, 2007, p. 384).

Heidegger, para explicar e justificar o uso do termo Gestell, para designar a essência da técnica, compara sua "extravagância" que, segundo ele, "é um antigo expediente do pensamento" com o uso feito por Platão da palavra eidos. Do mesmo modo que, corriqueiramente, Gestell significa uma estrutura ou armação, algo como uma prateleira de livros; eidos significava cotidianamente aparência de uma coisa visível.

[.] Platão, no entanto, ousa denominar com essa palavra algo completamente incomum, o que exatamente não pode e nunca será possível captar com os olhos sensíveis. E mesmo assim ainda não terminamos com o que há de incomum nesta atitude. Pois idéa denomina não apenas o aspecto não sensível do que é sensivelmente visível. Aspecto, idéa, designa e é também o que perfaz a essência do que é possível ouvir, apalpar e sentir, daquilo que de algum modo é acessível [.]. (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

Mas não aceitemos tão facilmente a justificativa de Heidegger sem nos perguntarmos se a comparação feita refere-se somente e simplesmente a um expediente de pensamento. Certamente há mais semelhança entre eidos e Gestell do que é explicitado no texto de Heidegger. Comparativamente, o que subsiste, o hypokeimenon ou "subjectum", tanto no conceito de eidos como no conceito de Gestell, é a pura forma: é a essência. No que Platão considerava o paradigma eterno, cuja participação era o que se nos aparece como dóxa, Heidegger, ao contrário, mantém a imanência, mas, paradoxalmente, separa o ente do ser na diferença ontológica. É por isso que a essência da técnica não é nada de técnico, porque se fosse assim, ser e ente se confundiriam, imanentemente. Se do ponto de vista ontológico, a filosofia de Heidegger se mantém imanente, ou, em termos de Ser e Tempo, pretende superar a dicotomia imanência-transcendência, contemplados existencialmente no conceito de Stimmung ("atmosfera"); conceitualmente – diga-se metafisicamente – sua filosofia permanece metafísica. É impossível explicar a diferença ontológica sem fazer metafisica, entendida como transcendência.

O homem, sujeito da técnica e sujeito à técnica, revela-se não como subjectum, mas como aquilo que se sujeita, se submete à técnica. Nesse sentido, a subsistência não é o homem, mas a própria essência da técnica: a Gestell. Todo trabalho técnico desenvolvido pelo homem é, conforme Heidegger, apenas uma correspondência ao desafio apelativo da técnica. A técnica, em essência, não é nada de técnico:

Armação significa a reunião daquele pôr que o homem põe, isto é, desafia para desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não é propriamente nada de técnico. Ao que é técnico pertence, em contrapartida, tudo o que conhecemos como sendo estrutura, camadas e suportes, e que são peças do que se denomina como sendo uma montagem. Esta, contudo, com todo o seu conjunto de peças, recai no âmbito do trabalho técnico, que sempre corresponde apenas ao desafio da armação, mas nunca perfaz esta ou mesmo a efetua. (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

A técnica em sua essência não é realizada pelo homem simplesmente, pelo contrário, ao corresponder ao apelo gestéltico é a técnica que efetua o homem. O homem nem perfaz nem efetua a técnica. Mas essa armação (Gestell) é um modo de desabrigar, é alétheia, e, assim, torna verdadeira a moderna ciência da natureza, desabrigada da physis e entendida agora como representação, como natureza. Objetivada como natureza, tornada objeto para um sujeito, ela corresponde à "postura requerente do homem", que funda a ciência exata da natureza.

[.] Seu modo de representar põe a natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo. A física moderna não é, por isso, física experimental porque coloca em ação aparelhos para questionar a natureza, pelo contrário: porque a física põe a natureza como pura teoria, para que ela se exponha como um contexto de forças previamente passível de ser calculado, por isso o experimento é requerido, a saber, para questionar se a natureza assim posta se anuncia e como ela se anuncia. (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

Heidegger reconhece como já foi mencionado que a ciência exata da natureza, em termos historiográficos, é anterior ao advento da técnica moderna, mas somente em termos historiográficos. Em termos históricos[7]a teoria física da natureza se mostra como uma preparação para a essência da técnica. Ainda que a historiografia relate os fatos objetivamente registrados no tempo, na origem da essência da técnica moderna, como toda essência, deve ser entendida no horizonte da temporalidade e da historicidade, conforme os parágrafos 72 e subsequentes de Ser e Tempo:

A análise da historicidade da presença [Dasein] busca mostrar que esse ente não é "temporal" porque "se encontra na história", mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque, no fundo de seu ser, é temporal. (HEIDEGGER, 2006b, p. 468).

O essencial, segundo Heidegger, é aquilo que a tudo antecede do ponto de vista da historicidade e, portanto, de relevância histórica. O que é primordial a um ente se revela como sua essência. Mesmo que sua preparação a anteceda – como toda preparação – do ponto de vista cronológico. Por esse motivo, "aos homens, a madrugada inicial se mostra apenas no final". (HEIDEGGER, 2007, p. 386).

Sem vislumbrarmos esse início ou origem, não questionaremos de modo radical as bases da técnica. Não questionada em suas bases a técnica moderna é entendida como "ciência da natureza aplicada". Somente no questionamento ou problematização da técnica é que sua essência se revelará para nós. Heidegger, tal como Platão, nomeou o que considerava essencial.

A técnica, como já foi esclarecido, não está além de um fazer humano, embora não seja dirigida pelo homem. O desabrigar da armação "não acontece somente no homem e, decididamente, não por ele". (HEIDEGGER, 2007, p. 387). Esta ambiguidade é comum a toda essência. O homem guia e é guiado pela técnica.

Heidegger afirma que a essência da técnica é ambígua, da mesma forma que a essência de todas as demais atividades humanas o são, porque fecha e, ao mesmo tempo, revela. (Como? O pensador não deixa claro: será porque essa essência cria condições de refletir sobre a verdade a respeito de nosso modo de ser?). Porém, a armação (Gestell) carrega consigo um risco muito maior, quando pensamos a forma e o tipo de exigência que nos coloca. A reificação que ela promove pode levar ao completo esquecimento da essência da verdade, que é abertura tanto quanto fechamento, e, no limite, à supressão do próprio ser humano. (RÜDIGER, 2006, p. 148).

Na reificação promovida pela técnica, valores, ideias e pessoas são transformadas em objetos e moeda de troca: as instâncias do espírito se convertem em objetivações. O que antes era incomensurável agora está submetido aos ditames do cálculo. Assim, falamos de compra e venda de força de trabalho, de capital "intelectual" e assim por diante. É nesse horizonte que a coisa é transformada em objeto. Mas não somente as coisas em geral, mas também o próprio ser humano se converte em objeto de negócios. Tornado objeto o ser humano, representado, reificado, quem questionará os destinos da humanidade? Heidegger antevê um perigo nesse destino técnico.

Para o filósofo de Ser e Tempo, somos conduzidos (Geschick) ser-historialmente por um destino. No entanto esse envio histórico é também um desabrigar, é poiesis. E, assim, retornamos ao início, no solo do qual, frente ao niilismo do encobrimento do ser, pode, no perigo, crescer também a salvação. Que perguntas, agora que voltamos ao início, devemos nos colocar? Que possíveis saídas surgem "onde floresce o perigo"?

1.1 Pressupostos: do Pré-temático ao Inquestionado

O elemento técnico aparece já em Ser e Tempo, embora ali não seja tematizada a questão da técnica propriamente. O conceito de instrumento (Zeug), e sua relação com o ser simplesmente dado (Vorhandenheit) já são um indício de um futuro tratamento dessa questão.

A coisa manualizada como instrumento não tem o simples caráter material ou substancial, pelo contrário, o objeto simplesmente dado (Vorhandenheit) é transformado em instrumento ou considerado instrumento somente a partir de seu uso, sua "instrumentalidade" é o que garante à coisa a categoria de instrumento (Zeug). Na verdade há uma diferença sutil entre instrumento e manual, o instrumento por si nada significa, é um ente simplesmente dado; ao passo que o manual ou a manualidade é o próprio sentido de ser do ente simplesmente dado (intramundano). Ou seja, o ente intramundano tem um sentido originário pré-temático na manualidade, mas é transformado em ser simplesmente dado na tematização. (LOPARIC, 2007, p. 2).

Nessa "pragmática" heideggeriana, o que está à mão não diz respeito a uma mera disponibilidade[8]pois somente há sentido de manualidade quando o objeto de fato está sendo ele mesmo, ou seja, está operando. Assim, a ação de martelar do martelo diz respeito à sua manualidade. Em outras palavras, não há instrumentalidade em si, há um instrumento que, à mão, se torna um manual. Somente nesse sentido instrumentalidade pode ser sinônimo de manualidade. Para Heidegger, o manual tem primazia relativamente ao "instrumento simplesmente dado", simplesmente porque a manualidade representa o sentido do ente intramundano.

O uso dos instrumentos, como indicado em Ser e Tempo, diz respeito ao uso artesanal, manual. A questão da técnica moderna somente é abordada com a virada do pensamento de Heidegger. No texto A Questão da Técnica, Heidegger retoma o tema do instrumento, mas sob novo enfoque. Em resposta à questão "o que é a técnica?", há duas respostas: "[...] técnica é um meio para fins[9][...] técnica é um fazer humano". (HEIDEGGER, 2007, p. 376). O homem, ao visar os fins, estabelece os meios. O meio técnico é o instrumentum técnico: tanto o instrumento empregado como o pensamento empregado – calculador – são meios para uma finalidade.

[...] O aprontamento e o emprego de instrumentos, aparelhos e máquinas, o que é propriamente aprontado e empregado por elas e as necessidades e os fins a que servem, tudo isso pertence ao ser da técnica. O todo destas instalações é a técnica. Ela mesma é uma instalação: expressa em latim, um instrumentum. (HEIDEGGER, 2007, p. 376).

Esta caracterização da técnica como um fazer humano ou como um meio para fins é, segundo Heidegger, uma determinação instrumental e antropológica da técnica. Com outras palavras, tanto o instrumental, como o seu operador, se corresponder ao apelo da Gestell, serão, ambos instrumentum. Tal determinação é o que melhor define as técnicas modernas, como "algo de novo diante da técnica manual mais antiga". (HEIDEGGER, 2007, p. 376). A técnica como essência (Gestell), no entanto, não é um mero meio, mas é "um modo de desabrigar" (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Ou seja, o desabrigar de algo revela sua verdade, sua essência.

Conforme o § 12 das Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), intitulado Evento e História (Ereignis und Geschichte), a História, do mesmo modo que em Ser e Tempo, é entendida como o próprio evento apropriador, como Ereignis, exatamente porque historicidade e existencialidade guardam entre si um nexo originário:

Historia não tomada aquí como un ámbito del ente entre otros, sino sólo en vista al esenciarse del ser [Seyn] mismo. De este modo, ya en Ser y tiempo la historicidad del ser-ahí há de entenderse sólo desde la intención fundamental-ontológica y no como un aporte a al filosofia de la historia presente ante la mano. [.] El evento-apropriador es la historia originaria misma, con lo que podría insinuarse que aquí en general la essencia del ser [Seyn] es concebida "históricamente". (HEIDEGGER, 2006a, p. 43). [10]

História, entendida desse modo, na perspectiva de Heidegger é mais do que "feito e vontade", pois também um destino pertence à história. (HEIDEGGER, 2006a, p. 44).

A história (Geschichte) compreendida como equivalente ao evento-apropriador, é uma verdade. A verdade que, em Ser e Tempo, era entendida como desvelamento (alétheia), agora, com a questão da técnica, tem o sentido de evento apropriador (Ereignis). No que o des-velamento apresentava a coisa ela mesma como fenômeno, a técnica revela o des-abrigar de todo mistério[11]A Gestell como essência da técnica tem o estatuto de verdade num sentido abrangente e totalizante: é a verdade que se mostra não como o que se mostra por si, mas como o que se afirma por si: é um acontecimento. O que acontece essencialmente é o enquadramento de tudo em determinações maquínicas. O algoritmo garante a individuação da coisa tornada objeto para um sujeito: a representação. E assim fica claro o papel do homem no advento e manutenção da técnica: é da "natureza" ou destino do homem o corresponder a esse apelo técnico. Ele corresponde representando, sem se dar conta que ao representar ele não vive o mundo, mas apenas visões, imagens ou concepções de mundo: é o mundo objetivado, também tornado objeto para um sujeito. É no homem que o mundo se torna imagem de mundo.

O processo básico da época moderna é a conquista do mundo como imagem. A palavra "imagem" significa agora o produto [Gebild] do produzir representacional. O homem luta aí por uma posição em que possa ser o ente que dá a norma a todos os outros e estabelece parâmetros. Já que esta posição se estabelece, ramifica e declara como visão de mundo, a relação moderna com o ente no seu desdobramento decisivo transforma-se na disputa entre as visões de mundo, mas não entre quaisquer delas. A luta só ocorre entre aquelas que já decidiram com o mais alto grau de firmeza as posições fundamentais mais básicas do homem. Em prol da luta entre visões de mundo, o homem mobiliza a violência irrestrita do cálculo, do planejamento e do cultivo de todas as coisas, e o faz de acordo com o sentido desta luta. A ciência enquanto pesquisa é uma forma indispensável desta auto-instalação do mundo, um dos caminhos pelos quais a época moderna se lança à consumação de sua essência, com uma velocidade insuspeitada por aqueles que dela participam. Com a luta entre as visões de mundo, a época moderna entra pela primeira vez no trecho decisivo da sua história, e supostamente passível da mais longa duração (cf. apêndice 11).[12]

Representado, o ente é enquadrado nas determinações da técnica. A desertificação do ser técnico concebe, no isolamento ôntico, entes isolados. Não há liberdade possível no isolamento. O ser-aí, essencialmente livre – ao menos livre para a morte – dá lugar ao homem gestéltico: enquadrado, padronizado, acomodado, instalado e, nas fábricas de vidas[13]e mortes[14]estocado.

Os estoques, cada vez mais, permanecem por tempo mais longo e, muitas vezes, indeterminado. A indeterminação do que pode ser congelado (criogenia) confunde-se com a indistinção do que não tem mais distância. Não ter mais distância não significa ter proximidade, pelo contrário, a supressão de toda distância é a supressão de toda proximidade. Ao suprimirmos a distância não nos aproximamos dos seres. Essa é uma das questões (da técnica) mencionadas por Heidegger na conferência A Coisa. A questão da técnica, entre outras coisas, questiona a indistinção e a uniformidade das coisas tornadas objeto. A coisa representada é o objeto para um sujeito. Mas uma coisa subsiste sem a objetificação.

Tudo está sendo recolhido à monotonia e uniformidade do que não tem distância. Como assim? Será que tal recolhimento é ainda mais angustiante do que a explosão de tudo? O homem se estarrece com o que poderia ocorrer na explosão das bombas atômicas. O homem não percebe o que, de há muito, já está acontecendo, e está acontecendo, num processo, cujo dejeto mais recente é a bomba atômica e sua explosão, para não falar da bomba de hidrogênio. Pois levada às últimas possibilidades, bastaria apenas a sua espoleta para eliminar toda a vida na terra. O que esta angústia desesperada ainda está esperando, quando o terror se está dando e o horror já está acontecendo? (HEIDEGGER, 2010, p. 144).

Ora, a não-distância e a proximidade são mutuamente excludentes, no sentido de que ao me distanciar no objeto eu não me aproximo da coisa (o que subsiste no objeto). A coisa é o que há de mais próximo e o que se torna mais distante, quando tornada objeto. "A jarra continua receptáculo, quer a representemos ou não. Com ser receptáculo, a jarra subsiste em si por si mesma". (HEIDEGGER, 2010. p. 145).

Um dos perigos da técnica é o de transformar também o homem em objeto para um "sujeito". Objeto de seu próprio consumo o homem já é há muito tempo[15]no entanto, também é sujeito desse consumo. O perigo é o de nos tornarmos objetos manipulados pela maquinação (Gestell). Reduzidos a meros meios para fins, seremos, então, equiparados a hidroelétrica em relação ao rio Reno. Aliás, pelo contrário, ao rio Reno (objeto) em relação à hidroelétrica ("sujeito" da energia). É esse sentido instrumental de técnica como meio, que Heidegger ilustra com o exemplo da hidroelétrica. "A central hidroelétrica não está construída no rio [...], é o rio que está construído na central elétrica." (HEIDEGGER, 2007, p. 382) O que isso significa? Que o rio Reno existe agora e é operado em função de uma finalidade. O rio se tornou mero meio para um fim. Assim, o Reno foi "encomendado" (bestellt) para gerar e armazenar energia. Com vistas à produção, os meios são encomendados pelo desabrigar desafiante da técnica moderna. Assim desafiado, o rio Reno se transforma em fonte ou mero meio de produção de energia.

Ainda que se "revitalize" o Reno e suas imediações, tudo o que está sendo revitalizado o está em nome de uma encomenda. O Reno, em primeiro lugar é encomendado para a produção e armazenamento de energia e, secundariamente, é encomendado para o turista e o cosmopolita. É típico da época moderna das imagens e concepções de mundo, a preservação com vistas a um proveito. Não se pensa na preservação da natureza, mas dos recursos naturais. A natureza é transformada em reserva de recursos.

As supostas alternativas à exploração frequentemente se movem dentro do mesmo modo desafiante de agir e pensar. Uma boa ilustração é o movimento ecológico. Ainda que se entenda como o oposto de uma provocação, o movimento ecológico pode ser uma forma dela. Consumir não quer dizer necessariamente absorver e destruir. Pode-se consumir algo apenas por levantar expectativas prévias, apenas por orientar previamente o florescimento dos processos naturais para algum tipo de rendimento. A natureza é tomada como fundo para uma exploração menos rápida e agressiva, mas igualmente disponibilizante. O uso planejado e massivo da natureza por si mesmo já é uma forma da exploração, pelo simples fato de ser uma negação do selvagem e do nativo. Até aqueles que se apresentam como os adversários da exploração propõem medidas destinadas apenas a tornar o inevitável mais ameno. Ao fazê-lo, no entanto, adotam a crença no inevitável. (DRUCKER, 2004, p. 80).

Se os recursos tendem a se extinguir, então, sabidos dessa inevitabilidade, devemos tornar o desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade do desenvolvimento é apenas mais uma concepção de mundo. O que se visa com o desenvolvimento sustentável não é a sustentabilidade, mas pura e simplesmente o desenvolvimento. Sustenta-se a coisa não por ela mesma, mas com vistas a um fim: o desenvolvimento.

Para se atingir a potência máxima da produção, deve-se, de antemão, conhecer as leis que regem o movimento do universo. Deve haver uma lei e uma lógica que corresponda a esse desejo de representação. Essa produção é comandada por uma lógica. O nome dela é cibernética:

O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado, do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente distribuído e do distribuído novamente ser comutado. Explorar, transformar, armazenar e distribuir são modos de desabrigar. Este, contudo, não decorre de modo simples. Também não desemboca em algo indeterminado. O desabrigar desabriga para si mesmo os seus próprios e múltiplos caminhos engrenados, porque os dirige. A direção[16]mesma, por seu turno, é conquistada em todos os lugares. A direção e a segurança tornam-se inclusive os traços fundamentais do desabrigar desafiante. (HEIDEGGER, 2007, p. 382).

É nesse mesmo sentido que Loparic cita as inquietações de Heidegger quanto à produção de seres humanos. O ser humano quer se dirigir a si. Em nome desse governo manipula-se a vida e a morte. Mas é exatamente nisto que consiste o grande equívoco do homem: ele não se dá conta de que, ao governar, não governa de fato, mas é mais um instrumentum a serviço da Gestell. A instrumentalidade do ser humano consiste não apenas no operar os instrumentos da técnica, mas em se converter ele mesmo num instrumento. "Às vezes parece que a humanidade da época moderna tem pressa em atingir o seguinte objetivo: que o homem se produza tecnicamente a si mesmo". [...] "Visto que o ser humano é a matéria-prima mais importante, pode-se contar que, um dia, com base em pesquisa química contemporânea, serão erigidas fábricas para a criação artificial do material humano". (LOPARIC, 2007, p. 1).

Com a virada do pensamento do sentido do ser (Ser e Tempo) para a verdade do ser (A Questão da Técnica e Beiträge zur Philosophie- Vom Ereignis), o que Heidegger indica é que a "autonomia" do Dasein em relação ao seu destino é substituída por um determinismo ser-historial. Ou seja, "o sentido do ser configurado como técnica moderna não resulta de um projeto executado pelo Dasein, mas da acontecência (Ereignis) do ser[17]ele mesmo [...]" (LOPARIC, 2008, p. 670). O que em Ser e Tempo é considerado temporalidade (existencialidade), com a virada, transforma-se em acontecência (evento). Nesse sentido, seinsgechichtlich pode ser traduzido como ser-acontecencial. Pois o que no âmbito do ser-aí significava história ou ser-historial, no bojo[18]da técnica pode ser entendido como evento: é o ser como acontecimento. O acontecimento gestéltico é provocativo. Provocação a que o homem, atendendo ao apelo, corresponde, uniformizando e sendo uniformizado:

A regularidade e homogeneidade são resultado da provocação. Toda regra a priori impõe condições universais aos fenômenos, e assim os torna um tanto parecidos entre si, um tanto regulares, como Kant já sabia. Uma vez que não se vê nenhum impedimento visível ao florescimento livre, imaginamos que não existe nenhuma restrição operando aí. Este aspecto é perturbador, na visão de Heidegger. Para ele, a diversidade e a espontaneidade têm valor intrínseco. Algo sempre se perde, mesmo quando ganhamos em troca espécimes mais "perfeitos". A imposição de condições já é uma forma de interferir com todo brotar espontâneo. Carneiro Leão prefere traduzir Bestand por "dis-ponibilidade". Sob o desafio, todos os entes estão definidos de antemão como disponíveis. A expressão é feia, sem dúvida, mas reflete o que se passa: o ente está constantemente oferecido, de forma uniforme e constante, ou seja, de tal modo que qualquer outra lei é excluída. (DRUCKER, 2004. p. 72).

O que sempre se perde, quando representamos as coisas como objeto são as coisas mesmas. A subsistência é transferida da coisa para o eu que objetifica. O Dasein se torna homem, correspondente ao apelo uniformizador da técnica e, ao se tornar homem, naturalizado, se afirma como subjectum substituto da coisa subsistente no objeto, mas, em contrapartida, se transforma em objeto da técnica. Essa, como essência (Gestell), subjaz ao homem como modo de pensar maquinador. Nesse sentido a substância do pensamento é retirada do humano e transferida ao tecno-logos, como modo de pensar algorítmico.

O que ocorre é que o sentido do ser pensado a partir do âmbito ontológico-existencial, dá lugar ao pensamento da verdade do ser, no horizonte ontológico-acontecencial (seinsgechichtlich) [19]Comparativamente ao conceito hegeliano de espírito, o acontecimento [Ereignis] diz respeito a um descontrole do Dasein frente ao seu destino. As possibilidades antes existenciais (ou "vivenciais") agora, segundo Heidegger, são técnicas, e não são determinadas pelo Dasein (existencial), mas pelo próprio evento apropriador (ser-historial). O Dasein, agora homem[20]apenas corresponde a essa determinação apeladora.

As técnicas manipuladas pelo homem são modos técnicos ou técnicas instrumentais, a técnica como essência não é manipulada pelo homem, pelo contrário, é ela que, segundo Heidegger, determina as ações humanas, pois representa o sentido do ser na totalidade de nossa época (Neuzeit). Se esse sentido de ser é a verdade do ser na nossa época, então à época das imagens de mundo corresponde não propriamente o sentido do ser, mas o esquecimento do ser. Esquecido de seu próprio ser, o ser-aí, agora homem, se representa a si mesmo como subjectum, transformando tudo o mais em objeto de seu consumo[21]Sem se dar conta que, ambiguamente, ao se fazer sujeito em relação aos entes, ele se converte em obejto em relação ao evento apropriador (Ereignis). Tal evento é o que, ao se apropriar também do humano, transformando o existencial em maquínico, reflete o espírito abrangente da apropriação gestéltica. O homem, niilisticamente, corresponde à forma vazia do algoritmo, do cálculo, da Gestell. Esta correspondência é uma resposta humana ao apelo da Gestell.

Diante dessa correspondência ao apelo, o gigantesco alcança um novo significado, não mais referente à quantidade, mas assume um caráter qualitativo. A qualidade do gigantesco é a magnitude do subjectum que se expressa pelo cálculo da produção e da representação. (HEIDEGGER, 2006a, p. 351).

Também o ser humano é produzido e reproduzido "quimicamente". A disponibilidade de material humano o transforma em sujeito e objeto de seu próprio consumo. E nesse sentido, o humano se afasta, se esquece do ser, e tanto mais se afasta quanto mais se aproxima das determinações técnicas[22]Loparic faz a seguinte leitura a partir das idéias de Heidegger acerca de inseminação artificial, e sobre homens artificialmente ou quimicamente produzidos:

O ponto central, entretanto, não é a variedade de produtos humanos possibilitados, mas o fato de a técnica invadir o próprio processo de nascimento. A questão que se coloca em decorrência disso é se um ser humano criado quimicamente de fato nasceu ou se, pelo contrário, a fabricação torna o nascimento impossível, ou seja, os seres humanos fabricados sendo entes que não nasceram. (LOPARIC, 2008, p. 677).

Mas Heidegger vai além, e, não só pensa a relação entre a fabricação e o nascimento, como também a noção de uma morte fabricada. Em Ser e Tempo, quando se fala em morte como existencial, claramente se está falando da morte como experiência existencial, ainda que impossível, pois não experimentamos a morte de fato. Apenas pressentimos a morte pelo fenômeno da angústia.

No texto Die Gefahr (O Perigo), conforme Loparic, Heidegger explica o que é a morte como produto técnico, ou produto da técnica:

Centenas de milhares morrem em massa. Eles morrem? Não, eles perecem. Eles são abatidos. Eles morrem? Não, eles se tornam componentes do estado de fabricação dos cadáveres. Eles morrem? Não, eles são liquidados, sem dar na vista, em campos de extermínio. E nem precisa de tanto – milhões findam miseravelmente agora na China pela fome. (LOPARIC (apud Heidegger), 2008, p. 677).

Importante lembrar que em Ser e Tempo, os que perecem são os animais, não as pessoas. O animal finda e somente o homem morre. Com o estado de exceção, especialmente em relação à Auschwitz, Heidegger parece ter se dado conta de que também as pessoas são exterminadas artificialmente. Também a morte pode ser fabricada para o homem. Ou seja, o que Heidegger questiona é que não somente a vida, mas também a própria morte é fabricada pela técnica moderna.

1.2 A Essência da Técnica

Para Heidegger, a essência da técnica não é nada de técnico. Porque aquilo que chamamos de técnica já é uma representação. A crítica fundamental ao que denominamos de "a questão da técnica" é fundamentalmente uma crítica à representação. Ou seja, a instalação da técnica como modo de agir, atuar e pensar. A era das imagens de mundo, ou das representações reflete o profundo esquecimento do ser.

Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentamos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfazermo-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem liberdade, atados a ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos apaixonadamente. Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro; pois essa representação, a qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica. (HEIDEGGER, 2007, p. 376).

A partir da interpretação do tratado Ser e Tempo (Sein und Zeit), tomado como pressuposto e pano de fundo, sobre a questão da técnica, ou mais propriamente sobre o fim da questão da técnica, na reflexão a seguir indico a relação entre essa obra e textos aparentemente distantes, como o Die Frage nach der Technik e Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), a partir dos quais tracei um paralelo entre o ser do ser-aí (Cura) e a questão da Técnica. A relação entre o ser do ser-aí e a técnica diz respeito à relação entre o esquecimento do ser e a superação de qualquer questionamento. O niilismo revelado pela questão da técnica se manifesta de vários modos: como negação do questionamento, e como negação do esquecimento. Reina um não-reconhecimento. É esta ambiguidade que se mostra na figura do "funcionário da técnica", mobilizado no não-questionamento. Cláudia Drucker explica do seguinte modo o papel do servidor, senão alimentador, do niilismo[23]técnico:

O funcionário da técnica não se admite como tal. Ele não consegue se dar conta da sua atitude francamente usurária, em virtude do seu esquecimento constitutivo daquilo que o move. Frequentemente, se considera até mesmo um adversário da técnica. De fato, o niilismo mais completo frequentemente ocorre até mesmo quando é expressamente nomeado como adversário: Aqueles que se supõem imunes ao niilismo são talvez aqueles que se encarregam de forma mais competente da sua difusão. (DRUCKER, 2004, p. 79).

O ser, primeiramente tomado como ente, depois tornado ente, e, com o evento apropriador reduzido a mero objeto, corresponde à totalidade do ente como meio e produto da técnica.

É correto dizer: também a técnica moderna é um meio para fins. Por isso todo esforço para conduzir o homem a uma correta relação com a técnica é determinado pela concepção instrumental da técnica. Tudo se reduz ao lidar de modo adequado com a técnica enquanto meio. [.]. Pretende-se dominá-la. O querer-dominar se torna tão mais iminente quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos homens. (HEIDEGGER, 2007, p. 376).

A técnica, tomada como meio e como fim, põe tudo à mostra: não há mais mistério, há apenas o ainda-não descoberto ou explicado pela ciência. Ao se descobrir algo na representação, se encobre seu sentido originário (alétheia). Mas como fugir a esse apelo pela exatidão da técnica? Pelo questionamento. Questionando, mantêm-se abertas as possibilidades. Possibilidades significam liberdade. É por isso que, para Heidegger, as ciências do espírito para se manterem rigorosas enquanto tais devem permanecer essencialmente inexatas. A exatidão fecha as possibilidades.

[.] O rigor da ciência natural matematizada é a exatidão. Aqui, todos os processos devem ser determinados de antemão como grandezas espaço-temporais de movimento, para que possam ser sequer representados como processos naturais. Tal determinação se consuma na medida através de números e contas. Contudo, não é por isso que a ciência natural é exata, isto é, porque calcula corretamente. Ao contrário, ela precisa calcular deste modo porque o jugo com que sua esfera de objetos está comprometido tem o caráter da exatidão. Por sua vez, todas as ciências do espírito, e de fato todas as ciências da vida, têm de ser inexatas, se quiserem, precisamente, permanecer rigorosas. De fato, é possível açambarcar [auffassen] o vivente como uma grandeza de movimento espaço-temporal, mas aí já não se o abarca [fassen]. O elemento de inexatidão nas ciências do espírito não é nenhuma lacuna, mas a satisfação de uma exigência essencial deste modo de pesquisar. Sem dúvida, se comparadas com o rigor das ciências exatas, a projeção e certificação da esfera de objetos das ciências históricas não são apenas executadas de forma diferente. Os resultados são alcançados de modo muito mais árduo do que os alcançados pelo rigor.[24]

Ora, para se satisfazer as exigências da essência da técnica, basta ouvir e responder ao seu apelo. Para tanto, se retornarmos ao princípio, a gestação da técnica pela ciência exata, reconhecer-se-á nessa preparação o elemento antropológico fundamental. Já naquele momento o ser humano co-respondia ao apelo e, pré-conscientemente, preparava o caminho para o advento da técnica moderna como lógos e fundamento de uma era: a época do esquecimento do ser, representado como ser simplesmente dado.

Na ontologia fundamental de Ser e Tempo, Heidegger indica o caráter incontornável do ser simplesmente dado: o caráter de incontornabilidade do ser simplesmente dado (no manual) posto em Ser e Tempo e sua possível relação com a questão da técnica representa o núcleo central dessa investigação filosófica e me toma o pensamento doravante.

O ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante.[25] [...] O martelar não somente não sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. [...] [26]

Se compreendermos bem o que Heidegger diz na citação acima, entenderemos, finalmente, o que o filósofo denomina apropriação. A aparente ingenuidade da citação acima revela o mais profundo sentido filosófico do que seja apropriação. Do mesmo modo que pre-tematicamente, o martelar se apropria do martelo (ente intramundano), como o próprio sentido do martelo, também a técnica, como evento apropriador se apropria pre-tematicamente, pre-conscientemente, da nossa época. Assim, adequadamente, a era das representações, das concepções de mundo, da maquinação, é, numa palavra, técnica. Subjaz a toda essa determinação um destino técnico. Se o destino é gestéltico, então o sentido é gestéltico. Sendo técnico ou gestéltico esse sentido, ambiguamente, ele se revela como verdade do ser da Neuzeit.

Mas voltemos ao princípio, em Ser e Tempo.

O mundo se dá (es gibt). O dar-se (geben) do mundo é refletido como experiência existencial. O mundo se dá originariamente – ontologicamente – como mundo aberto, como existência, temporalidade. Mas o mundo também se dá como presença[27]através do ser simplesmente dado (Vorhandenheit). É porque há o mundo que é possível o ser simplesmente dado. O ente intramundano, no modo da descoberta (descobre ser), somente se mostra porque "a priori" o mundo já se dá como condição ontológica de possibilidade de todo ente intramundano.

A temporalidade originária é deslocada ou entificada no tempo cronológico, segundo o qual podemos dizer que tal ou tal ente está presente[28]O mundo do presente é o mundo do ser simplesmente dado. Mas são dois mundos então? De forma alguma. Heidegger deixa claro, desde o início de Ser e Tempo, a ambiguidade dos existenciais: o mundo como ontológico-existencial tem um correspondente ôntico-existenciário. Tal correspondência designa a dupla via da existência: ora existimos autenticamente, ora inautenticamente. Mas inautenticidade ou impropriedade não deve remeter a algo negativo, pelo contrário, o inautêntico se revela como mais um modo de ser do ser-aí. Ao decair da existencialidade plena das tonalidades afetivas (Stimmung), o ser-aí descansa do peso da existência nos modos de ser inautênticos. A fuga constante da angústia e a permanência nesse descanso representam o mundo do impessoal. A inquietude na angústia é abertura, mas a inquietação no medo e no impessoal é fechamento: mesmo na distinção entre o ôntico e o ontológico permanece o caráter de impermanência típico dos seres singulares e finitos. Estendendo essa noção de intranquilidade podemos dizer que o mundo não é tranquilo e, também, não é tranquilo existir. Ser é ser intranquilo. E, além de qualquer determinação ética, ser intranquilo pode ser bom, pois nos mantém abertos às possibilidades de ser, possibilidades que permanecem impensadas, irrefletidas na tranquilidade. A tranquilidade e a "felicidade" fecham, transformando o mundo em ser simplesmente dado (Vorhandenheit), porém de modo impróprio, pois é difícil imaginarmos o mundo como um instrumento à mão (Zuhandenheit)[29] e em seguida desinstrumentalizado ou desmundanizado como objeto simplesmente dado; mas o mundo pode ser pensado como mundo presente, e nesse sentido ele pode ser entendido como Vorhandenheit (presentidade)[30]. Novamente, é porque há o mundo[31]que pode haver o mundo [32]

O modo de lidar no mundo na ocupação é sempre um modo de lidar com o ente intramundano. Quando há de fato o fenômeno da lida ou manuseio, diz-se que o ente é um instrumento, um manual. Seu ser é a própria manualidade (Zuhandenheit). Assim, o sentido de ser do manual é o manuseio. O martelo como ente determinado espaço-temporalmente é simplesmente dado (Vorhandenheit), mas o martelar guarda o sentido de ser do martelo, sentido de ocupação e uso e, por isso mesmo, não tematizado. O que Heidegger tematiza é o que é o mais importante do ponto de vista existencial-fenomenológico e que as ciências não tematizam. Até porque, ao ser tematizado pela ciência, a experiência se transforma em ser simplesmente dado. Assim, a ciência pode medir, calcular e produzir o martelo, mas não o martelar: tal sentido somente pode ser dado pelo uso cotidiano do martelo, no manuseio.

Desse modo, o ser do ente intramundano[33]"vem ao encontro no mundo circundante". O ser do ente é a Stimme[34]dos entes no mundo, escutada pelo ser-aí, situado e afinado numa Stimmung[35]Nesse sentido e nesse contexto explicativo, o termo Stimmung é perfeitamente traduzível por atmosfera: a "escuta" ao chamado (apelo) dos entes intramundanos refere-se ao sentido da manualidade ou instrumentalidade do martelo, ou seja, o próprio martelar. "Escutar" o martelar do martelo não o coloca fora do ouvido, nem dentro, audição aqui tem um sentido quiasmático, ou "atmosfericamente" [36]situado.

O que se tematiza nas ciências são os mesmos entes intramundanos, mas com a diferença fenomenológica fundamental: "[...] o ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante." (HEIDEGGER, 2006b, p. 115). Podemos dizer que o ente pré-temático é a coisa mesma como subsistente, antes de se tornar objeto para um sujeito. Ou seja, o ente da ocupação manual é o intramundano pré-temático, e, quando tematizamos o ente intramundano o transformamos em ser simplesmente dado. Assim, quando teorizo sobre o martelo eu o entifico e o torno simplesmente dado. Mas o que há de incontornável no ser simplesmente dado no manual é que é o mesmo martelo, o mesmo ente. Na manualidade o martelo não é e nem pode ser tematizado, pois, repito a citação: "o ente pré-temático[37]é o que se mostra na ocupação do mundo circundante". Com outras palavras, enquanto estou martelando eu não tematizo o martelo.

Até aqui podemos concluir parcialmente que há um duplo sentido de ente intramundano: num primeiro sentido, o ente intramundano como tal, pré-temático na manualidade que, num segundo sentido, ao ser tematizado, se transforma em ser simplesmente dado. Quando o martelo quebra, eu o tematizo e somente nesse momento de tematização é que me dou conta do caráter incontornável do ser simplesmente dado no manual. Ou seja, nos momentos de surpresa, importunidade e impertinência há uma indisponibilidade, quebra ou perda repentina da manualidade do instrumento manual. (HEIDEGGER, 2006b, p. 121-125).

A surpresa é simplesmente o estranhamento por nos darmos conta de que o manual está indisponível em sua manualidade. Tal instrumentalidade que um dia pertenceu ao manual o mantém como um ente mais que simplesmente dado, pois, o que um dia foi manual pode voltar a sê-lo, e nisso consiste seu sentido. O martelo não se torna simples coisa, mas guarda um sentido íntimo na expectativa que desperta no ser-aí ao indicar o seu sentido manual. É preciso me desembaraçar daquele "troço" que está ali e retomar a "martelidade" ou o martelar do martelo, restituindo-lhe o sentido:

Os modos de surpresa, importunidade e impertinência possuem a função de mostrar o caráter de algo simplesmente dado do manual. Com isso, porém, não se considera ou encara meramente o manual como algo simplesmente dado. O ser simplesmente dado aqui anunciado ainda está ligado à manualidade do instrumento. Ele ainda não está entranhado como simples coisa. O instrumento torna-se instrumento no sentido de um "troço" do qual gostaríamos de nos desembaraçar; nessa tendência de desembaraço, contudo, o manual se mostra como o que é sempre manual no incontornável de seu ser simplesmente dado. [grifo meu]. (HEIDEGGER, 2006b, p.123).

O manual, ainda que indisponível, é sempre manual, e essa revelação não se dá por sua manualidade – indisponível no momento de quebra do manual, por exemplo –, mas por aquilo que há de incontornável em si mesmo[38]o ser simplesmente dado. O que revela, ambiguamente, que o manual possui um modo de ser simplesmente dado. E esse modo de ser se torna visível, repito, nos fenômenos da surpresa, importunidade e impertinência. Novamente, "o ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante". Ou seja, na surpresa ou indisponibilidade o ente temático se mostra e, somente aí, ele é tematizado: a surpresa, a importunidade e a impertinência revelam o ente intramundano como simplesmente dado (tematizado).

Quando há indisponibilidade da manualidade não a questionamos, pois ela, assim como a ocupação, é também pré-temática, e está ausente, em seu lugar responde o que resta: o ser simplesmente dado que, não tematizado na instrumentalidade, se mostra presente. Sua presença é questionada: não queremos sua presença embaraçada, mas sim, sua ausência, preenchida de sentido na ocupação cotidiana. Em outras palavras: queremos o martelar do martelo. O conhecimento acerca do martelar do martelo diz respeito a uma fenomenologia: interpelado em seu ser, o ente martelo, dá uma resposta pré-temática: o próprio uso ou manuseio do martelo. No manusear do martelo o ente permanece velado: "Nesse ser, porém, o ente que vem ao encontro na ocupação, permanece, logo de saída, velado pré-ontologicamente."[39] (HEIDEGGER, 2006b, p. 116).

Pré-ontologicamente significa que, antes de se dar ao mundo como ente, o martelo é ele mesmo mundo, no sentido de ser constitutivo da experiência originária da manualidade. Ou seja, o sentido do ser do martelo é o que permanece velado: é o pré-temático. Tal testemunho pré-ontológico corresponde ao sentido de ser do instrumento, revelado na instrumentalidade. A instrumentalidade está sempre para a manualidade, no seguinte sentido:

Rigorosamente, um instrumento nunca "é". O instrumento só pode ser o que é num todo intrumental que sempre pertence a seu ser. Em sua essência, todo instrumento é "algo para..." Os diversos modos de "ser para" (Um-zu) (N17)[40] como serventia, contribuição, aplicabilidade, manuseio constituem uma totalidade instrumental. Na estrutura "ser para" (Um-zu), acha-se uma referência[41]de algo para algo. (HEIDEGGER, 2006b, p.116).

Por um lado, na remissão referencial (Verweisungsbezug), os utensílios e instrumentos se remetem uns aos outros, numa conjuntura. Por outro lado, a totalidade conjuntural de remissões das ocupações com instrumentos e seres simplesmente dados é articulada sempre no horizonte da totalidade estrutural do ser-aí: a Cura. O antecipar-se a si mesmo do ser-aí na Cura possibilita a conjuntura das remissões. As remissões de uma ocupação a outra e de um ente a outro tem seu correlato nas articulações entre uma tonalidade afetiva (Stimmung) e outra, de modo que o ser-aí está sempre afinado em um "humor", sintonizado nessa ou naquela tonalidade. Há uma situação (Befintlichkeit) no mundo: o ser-aí se situa no mundo, como Cura.

Mas onde há perigo, cresce também a salvação.[42]

Qual a relação entre Cura e Técnica? O que há em comum entre elas é que ambas correspondem a uma essência. É essencial ao homem o preocupar-se (Cura), e é essencial ao espírito de nosso tempo, a Técnica. Cura e Técnica não dizem respeito a modos de ser, mas ao ser mesmo do ser-aí e de nossa era, respectivamente. O salto, ou viragem (khere), da perspectiva da singularidade do ser-aí (de Ser e Tempo) para o ponto de vista ser-historial da Questão da Técnica e das Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), corresponde à mudança de foco a partir da qual Heidegger pensa a essência de um evento apropriador (Ereignis) a que o filósofo chamou Gestell. O termo Gestell pode ser traduzido por maquinação, para que fique claro seu duplo sentido: calculabilidade e maquinização. Esse pensamento calculador diz respeito ao ser da Técnica.

Aqui chegamos a um momento crítico da questão da técnica: a técnica não se refere apenas a um modus operandi, mas, também, e mais essencialmente, a um modo de pensar: tecno-logos. A tecnologia ao se estabelecer como logos, corresponde a uma força de dimensão totalizante e teológica[43]a partir da qual tudo é pensado e feito, mas ela mesma permanece impensada. A questão da técnica é, no fundo, o questionamento sobre o porquê de a técnica, ao dominar o modo de pensar, permanecer ela mesma impensada. O pensamento calculador, totalizante, na modernidade, suplanta o filosófico e pretende responder questões dessa natureza (filosófica), reduzindo, assim o pensamento filosófico – morada da liberdade – às determinações algorítmicas do cálculo.

Heidegger lançou filosoficamente o questionamento da técnica, mas, ao ser absorvido e naturalizado culturalmente, esse questionamento se tornou objeto de curiosidades e, banalizado, se converteu em mais uma imagem ou concepção de mundo. Há uma concepção de mundo geral de que há problemas ou questionamentos a se fazer sobre as "tecno" e outras "logias", mas este questionamento não chega ao nível de um aprofundamento reflexivo a partir do qual se poderia indicar uma saída ou alternativa.

O gigantesco é muito antes aquilo em virtude de que o quantitativo se transforma em uma certa qualidade, e deste modo em uma forma peculiar do grande. Não apenas cada época histórica é grandiosa frente às outras do seu modo distinto, mas também tem o seu próprio conceito de grandeza. Tão logo o gigantesco do planejamento, cálculo, instalação e asseguramento se transmudam, a partir do quantitativo, em uma qualidade legítima, o gigantesco e o aparentemente calculável de forma irrestrita e total se transforma no incalculável. O incalculável permanece a sombra invisível lançada sobre todas as coisas, quando o homem se transforma em sujeito e o mundo em imagem (cf. Apêndice 13).[44]

Sem saída, no caminho linear mostrado pela técnica, o homem se vê, por um lado refém da ditadura tecnológica que é calculada, mas também calcula: o homem calcula a técnica e a técnica calcula o homem. Quem domina quem, no fim? Não se sabe. Mas é certo que a Técnica dita ritmos de vida e de trabalho. Seu ritmo certamente diz respeito ao tempo que se esgota como cronologia e, assim, impede ao homem a experiência da temporalidade como tal. Ao se tomar a tecnologia como dada, como axioma fundamental de nosso tempo, ela, também naturalizada, permanece com suas bases impensadas, do mesmo modo que a Ciência não se pergunta pelo seu fundamento ontológico, pelo ser ou pelo porquê de seus objetos, mas essencialmente pelo como, ou seja, importa à ciência o caráter funcional. A aceitação geral da tecnologia como dada e, portanto, necessária, é a "resposta" ao como das coisas, mas não ao como as coisas se mostram – fenomenologia – e sim ao como as coisas funcionam. O que é a tecnologia e o que ela significa, ou seja, qual seu sentido e abrangência ficam sem questionamento. O inquestionado, ao se transformar em inquestionável faz surgir um novo deus: a técnica como fundamento.

Já em Ser e Tempo há a indicação da questão da técnica, não apenas na noção de instrumento (Zeug), como também no conceito de impessoal. O público revela a massa na qual não somos ninguém. Não nos distinguimos dos demais no nivelamento massificado. No horizonte de Ser e Tempo, esta massa homogênea diz respeito ao modo padronizado e, portanto, inautêntico de existência. A inautenticidade ou impropriedade, no entanto, se refere a um modo de ser do ser-aí, do mesmo modo que a autenticidade; não se trata, aqui, de juízos éticos acerca do que seja melhor: autenticidade ou inautenticidade. O que há de fato na existência é esse jogo entre próprio e impróprio. Na impropriedade o ser-aí descansa da existência, e o preço a pagar é a inautenticidade existencial. Mas, logo a angústia nos lembra de nossa condição de mortais, e recobramos nossa "atenção" e "cuidado" para com nós mesmos. Ao recobramos a atenção e o cuidado para com nós mesmos, saímos do cotidiano – público e falador – e retomamos o contato com nosso ser, ou seja, com a Cura. Nossa relação com os outros está ambiguamente estabelecida através do conceito de Cura: Sorge se refere ao modo como experimentamos a temporalidade, através de tonalidades afetivas, a partir das quais co-existimos num mundo "compartilhado". Mas é o mundo onticamente vivido que é compartilhado e não as tonalidades afetivas: é por isso que nesse sentido o mundo é meu mundo, porque ninguém sente ou pressente por mim. Ou seja, o mundo do ser-aí é o meu mundo, mas também é um mundo com os outros. Ambiguamente, o mundo-com-os-outros é ôntico-ontológico, ou seja, é também um existencial.

O fenômeno totalizante da Cura, que reúne em articulação as tonalidades afetivas, é solipsista no sentido de que eu não posso transferir minha preocupação para outrem, nem posso desistir da existência: sou "responsável" pelo meu ser, no sentido de que estou comprometido[45]comigo mesmo, simplesmente porque existo. Mas, porque se preocupa com os outros, o ser-aí decai no público e impessoal, e se torna novamente ninguém, e, se ocupa, cuida do outro. Não sou eu de fato quem cuida do outro, mas é ninguém que cuida do outro. O eu que cuida do outro é ninguém porque eu não posso ter as experiêncas do outro. A Cura preocupa e faz ocupar – é condição de possibilidade ontológica do cuidado – mas, ao cuidar, ajo como se soubesse o que se passa com o outro, sem de fato sabê-lo. Ou seja, o mundo público pode ser compartilhado, mas o peso da existência cabe a cada ser-aí singular. É por isso que não se pode transferir experiências existenciais: ninguém pode sofrer por ninguém, porque a angústia é sempre solitária, do mesmo modo que é essencialmente solitário o ser-aí. O ser-aí nasce e morre sem jamais comunicar suas experiências existenciais.

Sorge, termo alemão que designa cuidado ou preocupação, em latim, Cura, significa cuidado ou cura. Cuidar, para Heidegger, ontologicamente, significa se preocupar e onticamente, cuidar (ocupar). Cura (Sorge) se refere a uma essência cujos desdobramentos são: Fürsorge (preocupação propriamente); Besorgen (ocupação) e Besorgnis (cuidado). Se levarmos em conta que Cura é a essência do próprio ser-aí, não fica difícil relacionar este conceito com a questão da técnica. Besorgen diz respeito a uma ocupação. É parte e é típico do ser-aí o ocupar-se o tempo todo: cotidianamente, estamos sempre lidando com instrumentos. O uso instrumental pode ser estendido até a noção de enunciado, ou seja, ao falar usamos um tipo de instrumento: a fala. A ocupação cotidiana e a fala corriqueira se referem a um modo de ser do ser-aí, mas não o único e não o essencial. A questão ou questionamento da técnica surge quando esse modo de ser se torna irrefletido, sobressai ou suplanta a existência autêntica. Neste sentido, retornamos a questão da técnica, que Heidegger considera ser-historial, para uma questão tipicamente humana, contrariando Heidegger: o ser-aí não pode se eximir da responsabilidade (existencial) de ter ele mesmo, agora ser humano, transformado a maquinação em fenômeno essencial da nossa era. Essa "responsabilidade" é também um destino, porque do mesmo modo que somos culpados por existirmos, somos também culpados por co-respondermos ao apelo da técnica. Ao soltar as rédeas do destino nas mãos da técnica, o ser-aí se esquece de que o destino agora está nas mãos de ninguém.

Não precisamos ir tão longe, fiquemos no cotidiano mesmo: Quem é responsável por isso? Perguntamos a alguém. Geralmente, e nisso o telemarketing é campeão, os responsáveis são quase sempre setores ("Gestell"), compartimentos, departamentos, e nunca pessoas. As responsabilidades são categorialmente distribuídas para que as respostas também sejam formatadas impessoalmente, segundo um padrão. Ou seja, os setores (ninguém), sem que as pessoas se dêem conta, dominam as próprias pessoas. Essa dominação diz respeito ao âmbito do impensado. O irrefletido (impessoal) técnico é tomado como natural e é organicamente incorporado ao ser humano que, inconsciente (esquecido) de sua condição, faz girar a máquina a favor de seu próprio opressor. É nesse sentido que a técnica calcula e é calculada, e o ser humano calcula e é calculado pela técnica.

O perigo que tomou conta do nosso tempo, e que Heidegger talvez não tenha se dado conta, é o de que o impessoal domina toda a pessoalidade ou autenticidade possível. O que antes – em Ser e Tempo – era o descanso de existir, com o evento, passa a ser o próprio fundamento do ser historial: a técnica é impessoal. O impessoal foi alçado à categoria de fundamento de uma era. A técnica como pensamento calculador funda, assim, a modernidade, no sentido de que, não só ela domina os modos de produção material e intelectual, como também domina o ser do ser-aí (Cura), impedindo a experiência autêntica do tempo. Uma das interpretações da Ereignis é a de que esse evento se apropriou exatamente da temporalidade, transformando a História (Geschichte) em historiografia. A temporalidade, ao ser suprimida da experiência, dá lugar ao mero passar do tempo, o tempo calculado é o marcador do relógio, que dita o ritmo de vida do homem moderno, o trabalho e o lazer se confundem, não apenas há um tempo marcado e calculado para o trabalho e para o lazer, como também, o mono-ritmo de nossa vida identifica trabalho e entretenimento: toda determinação, inclusive a diversão, deve ser maquínica.

Do mesmo modo que há a indistinção entre entretenimento e trabalho, indiferencia-se também, no âmbito da indiferença ontológica, o engajamento e o não-engajamento. Tanto aquele que critica absolutamente, no sentido de negar, como também aquele que é um defensor ferrenho da técnica, são ambos funcionários da técnica. O filósofo não deve se prestar a esse papel, sob pena de transformar também a filosofia em mais uma concepção de mundo.

O filósofo não tem como tarefa principal apurar as responsabilidades sobre malfeitos cometidos neste mundo – pelo menos não enquanto filósofo, embora como cidadão continue a ter os mesmos deveres de todos. Quem não pensa a imposição acaba, sem perceber, trabalhando a seu favor através de meias medidas que confirmam o universo técnico ainda mais e, para o futuro. Basta minimizar a questão da técnica e negar que o desafio exerce uma pressão sobre todos nós para endossá-lo. (DRUCKER, 2004, p. 80).

Questionar a técnica não é confirmá-la, como afirmação, nem negá-la. Questionar consiste em abrir nossa existência para a essência da técnica. Em consonância com Drucker, tanto a recusa da técnica como sua aceitação irrefletidas são endossamentos da técnica. Esse endossamento corresponde ao niilista esquecimento do ser. No esquecimento não reconheço a pressão que desafia. A técnica desafia a coisa e a transforma em objeto. Esse desafio é necessariamente mediado pelo homem, pois somente um sujeito pode conceber um objeto.

Com o questionamento da técnica, o caráter de ser simplesmente dado ainda é vislumbrado; sem o questionamento esse caráter, esquecido, se torna inquestionado e reina absoluto sobre o ente em sua totalidade. O nome desse reinado é a técnica.

A técnica representa o fundamento metafísico de uma era, mas também, a meu ver, o fundamento físico. O fundamento metafísico da técnica como Gestell funda não apenas o pensamento como tal – modo de pensar técnico – como também funda o mundo físico, estabelecendo os limites matemáticos e matematizáveis do objeto. Assim a técnica é fundamento metafísico e físico.

O caráter incontornável ou a incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual é reduzida ao ente enquanto objeto. Nessa redução (não-fenomenológica), diga-se reducionismo, o que "sobra" é o próprio ser simplesmente dado e somente ele: o objeto "natural" ou naturalizado.

Objetificado como ser simplesmente dado, o ente intramundano perde sua manualidade e sua instrumentalidade, que fica reduzida às delimitações do modo de pensar calculador. Assim, a técnica se afirma como o fundamento físico e metafísico incondicionado e infundado que a tudo funda, condiciona e acomoda: o fundamento físico e metafísico da era cibernética.

O ente intramundano "recua" um passo atrás, se encobre ao ser tomado como simplesmente dado. Na separação entre sujeito e objeto, nesse recuo, o que delimita a sua forma (eidos) é o modo de pensar calculador. Essa forma de pensar subjetiva é fôrma e forma do objeto, representando a relação demiúrgica entre o pensamento considerado modernamente como produtivo (calculador) e o eidos[46]do objeto.

O objeto tomado como representação levada às últimas conseqüências é símbolo do niilismo da técnica que nega a intimidade, transformando tudo em imagem pública, acessível a todo mundo: não há mais mistério. Esse mesmo niilismo, se há salvação, seria o solo propício para o trânsito a um novo começo do pensamento. Se no perigo extremo da técnica planetária há uma última possibilidade, esta não pode ser técnica. A técnica dá soluções técnicas a problemas técnicos, mas a questão da técnica mesma não é algo técnico. O questionamento da técnica visa buscar uma saída não-técnica, como alternativa a esse modo de ser e de pensar. No estágio de esquecimento do ser, ele (o ser) se encontra presente (como ente). O que está presente não está oculto. O ente presente é tomado como o oculto, o ausente: o ser. Ao se tomar o ente pelo ser, a maquinação oculta absolutamente o ser. O ser esquecido não é pensado nem como mistério. Não havendo mais o mistério, portanto, não há por que haver questionamento.

O texto Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), ao questionar a técnica como evento do Seyn, mantém ainda aberto o caminho ao novo começo do pensamento ocidental, mas esse recomeço é somente vislumbrado pelo pensamento, uma vez que já está ser-historialmente, diga-se destinalmente, decidido. Em sintonia com o pensamento de Heidegger, posso dizer: o fim do questionamento da técnica, bem como o recomeço são, ambos, um destino:

Los Aportes preguntan en una vía que recién se abre a través del tránsito al otro comienzo, en el que ahora ingresa en pensar occidental. Esta vía lleva el tránsito a lo abierto de la historia y lo fundamenta como una tal vez mui larga estancia, en cuyo cumplimiento el otro comienzo del pensar permanece siempre sólo lo vislumbrado pero sin embargo ya decidido. (HEIDEGGER, 2006a. p. 22). [47]

O que foi vislumbrado já está para sempre decidido como um destino, porque é uma possibilidade. Esta possibilidade de recomeço da tarefa do pensar não pode ser, contudo, técnica. É necessária uma nova potência para o recomeço, talvez poética, como sugere Heidegger.

O homem moderno plasma seu mundo a partir de uma potência interna (subjetiva). Essa intencionalidade se realiza então, transcendentalmente, na repetição (iteração e reiteração maquínicas) e padronização do modo de pensar dominante (e dominador): esse pensamento será dominante e dominador se ele não se pensar a si mesmo. A filosofia é o pensamento que se pensa a si mesmo, em seu fundamento. A questão da técnica, lançada por Heidegger, ainda representa um questionamento, pois busca capturar o sentido do técnico em sua essência. A questão que é levantada nas ciências não é reflexiva, não se volta sobre si mesma em seu fundamento, mas, pelo contrário, mantém os fundamentos inquestionados. Impensada, a técnica se instala, não apenas como modus operandi, repito, mas, mais essencialmente, como o fundamento desse modo de operar com os objetos no mundo: a técnica é questionada por Heidegger, então, como um modo de pensar – calculador – que funda o ente (coisa) e determina o objeto, a partir de um sujeito pensante cartesiano.

O próprio pensamento, matemática e ciberneticamente estabelecido – fundado – não se pensa a si, mas se lança no mundo através do cálculo. O objeto calculado é condicionado, estruturado, armazenado e estocado. E esse processo ocorre desde o início do processo calculatório, ou seja, ainda no âmbito da matéria-prima. Essa matéria como natureza tem, de antemão, seu ritmo natural alterado e burlado pelo cálculo (já que a natureza é, agora, entendida como recurso natural, como reserva), que se impõe como nova condição ontológica, uma ontologia da disritmia. A natureza é forçada, coagida, constrangida a se adequar ao ritmo imposto pelo cálculo. Essa nova natureza, agora submetida às leis do pensamento calculador, é exigida de forma coercitiva e constrangedora: ela é forçada a produzir mais e em menos tempo, não porque precisamos de mais, mas simplesmente para ser estocado com vistas ao futuro.

Partes: 1, 2, 3


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