1) Tudo é invenção, mas também é verdade.
Que fique bem claro que esta história/estória nasceu da leitura de Ficciones, que data de 1944 e em particular de "Pierre Menard, autor do Quixote" – não sendo, porém, modelar, nem um bis. Isto é, alguma coisa, como o excesso de notas de rodapé, é também paródia do poeta argentino, no sentido que Borges alimentava as ficções como quem dá alpiste a passarinho, de miudinho em miudinho, ele buscava dar veracidade ao inverídico e vice-versa. Assim – de mito em mito – se foi juntando, descolando, achegando ao estilo plástico da collage, criando pé, corpo e cabeça. A montagem amontoou cuentos e estórias, paisagens portenhas, as lembranças vividas (e imaginadas), as tragédias assistidas (e imaginadas), até mesmo uma ou outra lágrima. Borges sempre foi assim: prolífico e breve, literatura curta e grossa, de onde fugiam as alegorias, as histórias policialescas, as fantasias.
Gullar entrou de gaiato, porque ambos – Borges e Gullar – tiveram colóquios felinos: ambos possuíram um gato de estimação e literato. E também ocorreu que, em um tempo histórico, os dois poetas estavam sob o mesmo céu, pisando as mesmas ruas, frequentando o mesmo café e o provável encontro – que poderia ser confirmado com um mero e-mail ao sobrevivente Gullar – se deu na imaginação do escriba: se perguntasse perderia a graça mística das invenções. Imagino que me perguntei: em que ruas, quais bairros, tantos bares, em que livrarias, em qual quarto deserto, onde nasceu o Poema Sujo? Assim, fotografados os dois em pleno exílio, flagrados em dimensões imaginadas, a veracidade fica mais inverídica... e vice-versa.
Collage por que? Estamos na era virtual, mas a semente nasceu mesmo no velho livro impresso, com folhas brancas e letras pretas, com capa dura. Por aquela estranha coincidência (que escritores adoram deitar em suas entrevistas aos leitores boquiabertos), andei com os volumes de Ficções e do Poema Sujo, os dois acomodados sob a mesma axila, volta e meia eram lidos simultaneamente, as páginas saltando aleatórias para a seara da imaginação. Daí, meu amigo, nascida a ideia é difícil contê-la, ela vai crescendo, aumentando e se a gente não colhe o fruto nem arranca a erva daninha, é tiro e queda: pode se deitar no divã de um psiquiatra imaginário...
Mais: a curiosidade me levou aos buscadores e neles fui acumulando gordura para o que seria um artiguinho, um citaçãozinha aqui e ali, o bicho foi ficando apetitoso, criando vida, acredite, respirando! Não é
sabido, mas imaginado, que Borges gostava de se intrometer na obra alheia e enchê-la de pitacos. Talvez porque gostasse de escrever em coletivo (não! Não falo dentro de um ônibus ou trem), mas de parceria com outros escritores, como o fez com o inseparável Adolfo Bioy-Casares e com o fantasma Bustos Domec. Essa tendência é inata, não tem como controlar, então por que não? Mas reescrever como quem "escreve" o que já estava escrito, da mesmíssima forma com que Pierre Menard é co-autor do Dom Quixote, talqualmente da forma como que Mário de Andrade "escreveu" Alguma poesia, de Drummond, assim mesmo como que Manuel Bandeira é co-autor do Macunaíma e mais poderia ajuntar, mais de uma centena de etceteras, etceteras! Então deu no que deu.
Vigilei Ferreira Gullar em muitas de suas aparições, palestras, programas de TV. Até esbarramos não mais que duas ou três vezes. Nas palestras e depoimentos guardei que ele gostava de contar a importância da "influência" do (seu) Gatinho nas colagens e desenhos que Gullar inventa nos minutos de artista plástico. Gatinho co-atuava no desmonte do que Gullar projetava como colagem – resulta que o poeta aproveitava a desmontagem feita pelas caminhadas de Gatinho sobre o projeto... Aquela velha história de amarrar um pincel no rabo do burro e assinar o resultado como obra de arte de autoria própria, sabe como é? Essas colagens são advindas de um leit-motiv que não o abandona, de temática constante, um tum-tum de bate-estacas seco, som repetido à exaustão, como o 1º movimento da 5ª Sinfonia de Beethoven. Nas reuniões o poeta liberava os segredos da criação, de como um poema "dormia" algum tempo para deixar as folhas tenras brotarem. Nessas ocasiões eram apresentadas transparências de textos, poemas escritos e reescritos e tanto fui aonde Gullar ia que sabia todas as artimanhas e molecagens.
Numa dessas vezes calei de espanto: na exibição de uma das transparências o texto reescrito no poema rabiscado surgia com uma letra arrevesada e a linha tão finíssima como nenhuma caneta terrestre possui. Sei que Gullar é ateu, por isso descartei de imediato a possibilidade de ser um poema psicografado. Não deu outra: todos os caminhos mostravam que também na poesia o (seu) Gatinho metia o bedelho – aquelas linhas finíssimas eram sem dúvida letra de gato, manuscrito de gato, feitas com unha de gato. Espantei, mas calei. Por fim, confesso que jamais estive mais que algumas horas em Buenos Aires. Em Santiago do Chile, sim,fui algumas quatro vezes e também confesso que não tenho o mínimo conhecimento se Borges e Gullar se encontraram alguma vez na vida.
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