Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
A maternidade também pode ser compreendida como um ponto de partida para um novo e almejado ciclo, fazendo aflorar, de forma especial, nas mulheres, quase que instintivamente o desejo de terem filhos. Assim, tanto a esterilidade como a infertilidade, seja em mulheres seja em homens, atingindo o casal, heterossexual ou não, bem como as novas possibilidades de entidade familiar, fazem com que o interesse na área da reprodução assistida e os avanços dos métodos modernos de procriação humana gerem abalos em conceitos e estruturas seculares, dentre os quais ganham relevância a fecundação humana em laboratório, e a maternidade de substituição, que, hoje, por tratarem-se de uma realidade, devem, impreterivelmente, passarem a incorporar o novo conceito de família ou ao menos serem compreendidas como instrumentos para que elas sejam constituídas.
Discutiremos as transformações sociais e cientificas e até as do próprio Direito, na tentativa de compreender o que temos hoje em matéria de regulamentação da prática da gestação substitutiva no Brasil e quais são os impedimentos para que ela seja tratada com naturalidade pela sociedade e com imparcialidade pela lei. E como o contexto social, religioso, moral e temporal interfere diretamente no que possa ser considerado legal ou passível de legalização. Para isso no primeiro capítulo, explicitaremos um conteúdo mais técnico e teórico sobre os contratos, aprofundando-nos no seu significado para o Direito Civil e nas adaptações sofridas por eles impostas pelas mudanças da própria sociedade.
No segundo capítulo, traremos as possibilidades da área médica que culminaram com toda essa discussão e com a criação de novas disciplinas na tentativa de manter a ética e a ordem frente a frenética aquisição de novas tecnologias no campo da reprodução e da Medicina como um todo.
O terceiro capítulo, por sua vez, vem abordar de forma sucinta definições e termos mais científicos, além das técnicas empregadas, pertinentes à compreensão das causas e tratamentos da esterilidade e as indicações do tipo de intervenção que gerou a motivação desse estudo. Falaremos ainda, da evolução sofrida pelo concepto durante a gestação até seu nascimento, e da discussão acerca de quando ele pode ser considerado vivo e individualizado.
No quarto capítulo nos propusemos a unir essas duas visões, a das Ciências sociais aplicada ao Direito, e, das Ciências Médicas, mais especificamente no campo da reprodução assistida, demonstrando que é imperativo uma consonância entre ambas em muitos momentos, de maneira especial, no tocante a gestação substitutiva. Esse é o ponto central deste trabalho, em que veremos a aplicabilidade dos conceitos apresentados, exporemos a visão de autores diversos, tudo com a finalidade de demonstrar que as transformações sociais devem estar correlacionadas as transformações do Direito e o contrário também deve ser verdadeiro.
Por fim passaremos a apresentar nossas considerações finais, no quinto capítulo, para que a partir delas muitas outras sejam levantadas por outros estudiosos, com suas visões diversas, mas interessados nesse pitoresco tema.
CAPÍTULO I –
Passamos neste capítulo a discorrer de forma mais técnica sobre negócio jurídico, principalmente na espécie contrato e suas especificidades, para que ao final desse trabalho compreendamos se eles deverão ser aplicados como base do acordo de vontades que abrange a gestação substitutiva, e, por conseguinte, todos os envolvidos no cenário do projeto parental.
1.1- BREVE EVOLUÇAO HISTÓRICA DOS CONTRATOS
É inegável a relevância dos acordos entre pessoas ao longo de toda a história. Sendo o ser humano um ser essencialmente social, que busca com seus pares uma relação de reciprocidade e, por vezes, dependência, fez-se sempre necessário implementar a celebração de acordos ou pactos que permitissem harmonizar desejos, satisfazendo os envolvidos e evitando-se potenciais desacordos e conflitos.
Se por um tempo a verbalização desses acordos era o instrumento de estabelecimento do vínculo, o aumento da complexidade dessas relações suscitada pela própria evolução da sociedade como um todo, obrigou a um concomitante desenvolvimento dos institutos jurídicos com a finalidade de padronizar esses negócios, sempre com intuito de promover a ordem social. Segundo (STOLZE, pag. 24, 2012) a doutrina costuma iniciar a investigação histórica da relação contratual em Roma, ainda que o berço da civilização houvesse sido forjado na Grécia.
Os Contratos tomaram dimensões maiores e deixaram de ser apenas um ato de confiança entre as partes até constituírem-se em instrumentos formalizados e com vínculos obrigatórios. Foi a partir do século XVII, que o Código Civil Napoleônico pode ser entendido como o primeiro corpo de normas sistematizadas a formalizar obrigações entre credor e devedor. Nesse sentido, GONÇALVES (2012) elucida a importância desse supracitado código para a época:
O Código Napoleão foi a primeira grande codificação moderna. A exemplo do direito romano, considerava a convenção o gênero, do qual o contrato era uma espécie. Idealizado sob o calor da Revolução de 1789, o referido diploma disciplinou o contrato como mero instrumento para a aquisição da propriedade. O acordo de vontades representava, em realidade, uma garantia para os burgueses e para as classes proprietárias. A transferência de bens passava a ser dependente exclusivamente da vontade. (Gonçalves, 2012, p.22).
Como ressalta Gonçalves (2012) décadas mais tarde, o surgimento do Código Civil alemão, considerava o contrato uma espécie de negócio jurídico, que, por si só, não transferiria a propriedade, e que haviam outros fatores a serem ponderados e essa, é a mesma postura adotada, atualmente, no novo Código Civil brasileiro. Pudemos verificar profundas mudanças, no direito moderno, também no que concerne a esses temas, já que qualquer acordo entre duas ou mais pessoas, que tenha por objeto uma relação jurídica, pode ser indiferentemente chamado de contrato. E esse modelo de contrato como predominante autonomia da vontade, em que as partes discutem livremente as suas condições em situação de igualdade, deriva dos conceitos traçados para o contrato observados tanto no Código francês como no código alemão.
Atualmente o conceito de contrato nos diz que ele ainda constitui uma das mais comuns e a mais importante fonte de obrigação existente, devido as suas inúmeras formas e utilização globalizada. É ele, portanto, o diploma disciplinador dos efeitos contratuais, que obriga um devedor a cumprir o pacto e impõem a um infrator de ato ilícito a reparação de um dano em relação ao que foi outrora acordado.
1.2- A DEFINIÇÃO DE CONTRATO E SUAS APLICABILIDADES
Para melhor entendimento da discussão sugerida por esse estudo, acerca da importância de um olhar mais detalhado do direito frente aos desafios impostos pela ciência, junto à própria evolução do conceito de família, faz-se imperativo que nos arrisquemos em conceituar e classificar os contratos baseados, para isso, nas obras de Pablo Stolze (2014) e Carlos Roberto Gonçalves (2012). As ideias de ambos convergem quanto a convicção de que apresentar um conceito é sempre missão árdua, por não ser possível imaginar que uma definição criada é perfeita, e, nem tampouco, uma verdade jurídica absoluta. (STOLZE, 2014, pag. 51) define contrato:
Entendemos que o contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades.
Embora, modernamente, o contrato, a convenção e o pacto sejam usados como sinônimos devemos distingui-los. Pode-se considerar que contrato é o termo de sentido técnico. Convenção, o termo genérico, que se aplica a toda espécie de ato ou negócio bilateral. O termo pacto, por sua vez, no seu sentido mais atual, ficaria reservado as cláusulas acessórias que podem então estar aderidas a uma convenção. Hoje, portanto, pacto não possui exatamente a mesma noção de contrato, como outrora, considerando-se que é utilizado agora para denominar um acordo de vontades sem força cogente.
O contrato, de acordo com (GONÇALVES, 2012), invariavelmente, depende, para a sua formação, da participação de pelo menos duas partes. É negócio jurídico bilateral ou plurilateral. Ainda que, possam existir os negócios jurídicos unilaterais, aperfeiçoados pela manifestação de vontade de apenas uma das partes, são justamente os negócios jurídicos bilaterais, que resultam de uma composição de interesses, ou seja, decorrentes de mútuo consenso, que vem constituir os contratos. Contrato, portanto, nada mais é que uma espécie do gênero negócio jurídico, que tem por fundamento ético a vontade humana, desde que atue gerando direitos e obrigações na conformidade da ordem jurídica.
Passamos agora a avaliar brevemente alguns pré-requisitos existenciais do contrato os quais serão indispensáveis na análise da aplicabilidade e da validação dos contratos nos acordos envolvendo a gestação substitutiva.
1.3- REQUISITOS ESSENCIAS EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA
Um negócio jurídico deve se enquadrar em certos requisitos para que produza efeitos, como, possibilitar seja a aquisição, modificação ou extinção de direitos. Esses requisitos é que determinam sua validade. Se os apresenta, pode ser considerado válido e dele decorrerão os mencionados efeitos, almejados pelo contratante. Se falta-lhe, porém, algum desses requisitos, o negócio é dito inválido, não produzindo o efeito jurídico desejado torna-se nulo ou anulável.
Constatado assim o estabelecimento de um contrato, parte-se então para a verificação de que se o mesmo pode ou não ser considerado válido. Os pressupostos de validade nada mais são do que os próprios elementos de existência adjetivados. Se houver alguma violação de requisitos considerados imprescindíveis para a validação do contrato, ou seja, algum impedimento, a consequência será a nulidade do negócio que se realizou, por violação a expressa disposição de lei.
Nesse aspecto podemos seguir a lição de GONÇALVES (2012, p. 35 a 39), ao explanar, que a validade do contrato está condicionada, portanto, a que a vontade do agente, seja emanada de maneira livre e de boa-fé, muito embora, a concreta manifestação de vontade seja por si só suficiente para reconhecer a existência de um contrato.
No mesmo sentido, em Gonçalves (2012) observa-se que o agente precisa ter capacidade para manifestar tal vontade. E, esta capacidade não é somente uma capacidade dita genérica, como medida da personalidade, mas também justamente a específica para protagonizar o contrato em questão, o que consiste na legitimidade. Assim, ainda que as partes gozem de plena capacidade, poderão estar impedidas, circunstancialmente, da prática de um ato específico, por relevantes razões sociais ou mesmo de ordem pública.
O contrato, por sua vez, deve possuir um objeto idôneo, assim considerado lícito, ou seja, não proibido pelo Direito e pela Moral. Possível jurídica e fisicamente. E determinado ou determinável, com os elementos mínimos de individualização que lhe permitam ser caracterizado. Todas as condições de validade dos contratos expostas anteriormente são pertinentes sob o ponto de vista do Direito, mas devemos nos ater a essa última relacionada ao objeto, pois é de singular importância, e será ainda amplamente explorada nesse trabalho, por ser imprescindível para a discussão da validade do contrato aplicado na gestação por outrem, cuja validade está atrelada ao objeto considerado por muitos, o filho gerado.
Por fim, remetemo-nos mais uma vez a STOLZE (2014, p. 64), quando afirma que a forma do contrato deve ser a adequada, entendida como a prescrita ou não defesa em lei. O que queremos ressaltar aqui é que a forma, entendida como o meio de exteriorização da vontade, é um elemento constitutivo ou pressuposto existencial do contrato, na medida em que a sua supressão impediria a formação do próprio negócio. Sem alguma forma de exteriorização (escrita, oral, mímica), o dito intento negocial ficaria limitado à mente do agente, e sendo assim não interessaria ao direito.
Os requisitos de validade demonstrados acima permanecem sendo a base do direito contratual ao nortear esses negócios, mas a aquisição do conceito que introduziremos a seguir, veio relativizar ou pelo menos modificar a maneira como muitos deles são abordados na atualidade e demonstra que ao Direito, como a outros campos do saber, não foi furtada essa tendência moderna de apreender que a liberdade individual deva estar condicionada a uma função maior dita social. E é justamente esta a que permite que os contratos tenham sua utilização ampliada para um âmbito que extrapola a questão patrimonial, sendo de relevância para muitos outros tipos de relações impostas pelas transformações da própria sociedade.
1.4- O CONCEITO DE FUNÇAO SOCIAL DOS CONTRATOS E SUAS IMPLICAÇÕES
A dita função social do contrato passou a ser mais evidente no momento em que o Estado adotou uma postura intervencionista e deixou de ser apenas expectador no ambiente econômico. E segundo Gonçalves (2012) essa concepção social apresenta-se como um dos pilares da teoria contratual ao considerar que o contrato também seja instrumento de uma justiça comutativa que possa aplainar desigualdades entre contraentes. Nesse contexto, podemos relacioná-la ao princípio da "função social da propriedade" previsto na Constituição Federal.
O que pretendemos demonstrar acima é que a liberdade contratual se encontra, atualmente, subordinada a sua função social em que prevaleça princípios condizentes com a ordem pública, assim como o direito da propriedade. Logo, a função social é mais um princípio moderno que deve ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos.
Ainda segundo GONÇALVES (2003 Apud SILVA PERREIRA, 2014, p.23)
A função social do contrato serve para limitar a autonomia da vontade quando esta estiver em confronto com o interesse social e este deva prevalecer. Mesmo sob penas de atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorrido nas hipóteses de contrato obrigatório. Tal princípio vem desafiar a concepção clássica de que contratantes tudo podem fazer, visto que no exercício da autonomia da vontade.
A consequência direta dessa abordagem é a de, por exemplo, possibilitar a terceiros que não são propriamente partes desse contrato influir nele, caso possam, direta ou indiretamente, por ele serem atingidos. Essa função visa proteger a parte mais vulnerável e impedir a legitimação de certas arbitrariedades.
Acrescida ao conceito apresentado de função social do contrato, podemos mencionar a separação aventada por SANDRI (2011 Apud NALIN p.11) que divide a função social do contrato em dois ramos. Intrínseco, relativo à observância dos princípios da igualdade material, equidade e boa-fé objetiva pelos contratantes, decorrentes da cláusula constitucional, ou extrínseco, destinada a observar as consequências do contrato nas relações sociais, considerando os seus reflexos a outros titulares que não somente os contratantes.
Podemos perceber que se todos os mecanismos de proteção contratual são observados existem grandes possibilidades de que a relação entre as partes seja harmônica. Esse conceito relativamente jovem de função social veio flexibilizar alguns dos princípios do direito contratual.
1.5-A PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL DO CONTRATO
Como já explanado todo contrato deve observar a uma função social. A dimensão de sua socialização, entretanto, não pode ser resumida à ideia de harmonizador de interesses divergentes. Esse não é o único aspecto em que concerne a sua dita função social. A constitucionalização do Direito Civil suscitou-nos a mudança na ideologia assentada acerca do contrato, levando-se em consideração também o respeito à dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, o contrato na ótica civil-constitucional é assim caracterizado por Stolze:
Em uma perspectiva civil-constitucional, devemos ter em conta que o contrato, espécie mais importante de negócio jurídico, apenas se afirma socialmente se entendido como um instrumento de conciliação de interesses contrapostos, manejado com vistas à pacificação social e ao desenvolvimento econômico. (STOLZE, 2012, p.51).
Dentro dessa perspectiva o contrato é percebido como instrumento de realização. Muito embora, por vezes, pode-se perceber a intenção de um ou mais contraentes de utilizá-lo para oprimir ou subjugar uma parte mais frágil, logo, desrespeitando a sua função social, o que deixou de ser considerado legítimo.
Ainda sobre a transformação sofrida pelo Direito Civil, que conduzindo a um repensar da função social da propriedade, suscitou, consequentemente, a revisão da ideologia assentada acerca do contrato. Ora, um Estado verdadeiramente democrático de direito entenderá que o contrato somente estará atendendo à sua função social quando, sem prejudicar o livre exercício da autonomia privada, respeita os direitos e garantias fundamentais, ou seja, a já citada dignidade da pessoa humana; admite a relativização do princípio da igualdade das partes contratantes no caso dos contratos paritários; consagra uma cláusula implícita de boa-fé objetiva, respeita o meio ambiente e o valor social do trabalho.
Não se pode esquecer que o que observamos no caso de gestação de substituição, objeto de estudo desse trabalho, é uma tentativa de se adaptar um acordo de vontades que tem por objeto genuíno comumente um bem, para uma aplicação atípica ao Direito Brasileiro, em especial à Constituição da República, a qual veda ser inalienável e intransmissível a vida humana. E nessa modalidade, o contrato estabelecido tendo por objeto um ser humano, o filho tão almejado, uma vida.
Esse tipo de relação extrapola o sentido meramente patrimonial e as teorias, definições e classificações atuais dos contratos e suscita sua aplicação em outros tipos de relações, agora de caráter existencial. Ou seja, de como a teoria dos contratos poderia migrar-se das questões meramente patrimoniais para as ditas existenciais, ou de como o tal objeto desse acordo pudesse ser encarado como um produto, ainda que se tratando de um ser humano, não deixa de ser o objetivo do acordo e, sob essa perspectiva, tornando o contrato em questão válido. È esse paradoxo que, sem dúvida, torna o tema tão fascinante.
1.6-PRINCIPIOS NORTEADORES DO DIREITO CONTRATUAL
Embora, paulatinamente, venha sido observada uma transformação tanto na forma de contratar como na própria responsabilização de uma das partes no caso de inadimplemento do acordo, em dadas circunstâncias que explanamos. À compreensão integral do contrato que deverá reger também as partes do projeto parental desse trabalho, faz-se necessária a análise dos princípios que o animam para uma melhor orientação de toda a disciplina contratual. Afinal esses princípios ainda que hoje, muito menos rígidos, flexibilizados muito em parte, em virtude do advento de conceitos como o, já mencionado, de dignidade da pessoa humana, e da própria função social do contrato, são a sua própria essência.
1.6.1- PRINCIPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
Ainda que, como exposto, o nosso sistema considere por ser o marco téorico, a dita função social do contrato, a livre-iniciativa das partes, entretanto, não poderá ser anulada. A função social está consagrada na lei, mas não poderá ser entendida como destrutiva do contrato em si. Segundo STOLZE (2014) para que isso não ocorra, a autonomia da vontade, no plano da bilateralidade do contrato, está expressa pelo consensualismo, ou seja, pela confluência de consentimentos que leve os contratantes a celebrar o negócio jurídico.
Nesse princípio, em síntese deparamo-nos com o poder de decisão que têm as partes do acordo em contratar ou não. Nele se garante a liberdade não só de contratar, mas de como fazê-lo, de com quem fazê-lo, de qual conteúdo será inserido no contrato, liberdade que engloba a escolha do objeto do mencionado contrato, desde que, essa liberdade, como vimos, modernamente, apenas esteja consonante com a função social do contrato e que seja observada sua licitude, sendo desta feita, mantida a ordem pública. O que nos faz concluir que a rigidez emprestada a esse princípio foi relativizada.
1.6.2-PRINCÍPIO DA FORÇA OBRIGATÓRIA DO CONTRATO
Deve insurgir do contrato, o princípio da força obrigatória, historicamente denominada pacta sunt servanda. Esse traduz a natural força imperativa da lei que dele deve ser apreendida, a fim de que possa ser reconhecida a sua utilidade econômica e social, e sem a qual ele seria apenas protocolo de intenções sem validade jurídica.
Segundo Orlando Gomes (2008 apud Stolze, 2014, p. 83) "Essa força obrigatória, atribuída pela lei aos contratos, é a pedra angular da segurança do comércio jurídico". Não podemos esquecer, entretanto, que a tal princípio não deve ser emprestado caráter absoluto. Esse precisou ser ponderado para evitar-se, por exemplo, que ele tivesse se tornado, em alguns contextos históricos, um mero instrumento de opressão econômica. A ausência de caráter absoluto pode ser correlacionada a teoria da imprevisão, invocada quando algum acontecimento superveniente e imprevisível torna excessivamente onerosa a prestação imposta pelo contrato a uma das partes, em face de outra que, se enriqueceria a custa dessa ilicitamente. É por esse motivo que o princípio da força obrigatória atualmente tornou-se visivelmente menos rígido, tal como o próprio princípio da autonomia da vontade.
1.6.3-PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE SUBJETIVA DOS EFEITOS DO CONTRATO
As disposições dos contratos são de interesse somente das partes, e não dizem respeito a terceiros estranhos à relação jurídica obrigacional, ou, como regra geral, os contratos só geram efeitos as partes contratantes. Não podemos deixar de citar, todavia, que existem algumas figuras jurídicas que podem ser exceção a esta regra como, por exemplo, o contrato com pessoa a declarar.
Em GONÇALVES (2012) destaca-se que, assim como nos outros princípios tradicionais, verifica-se, na modernidade, a "relativização do princípio da relatividade subjetiva", em casos de violação a regras de ordem pública e interesse social, como, para exemplificar, nos casos de defesa dos consumidores, em atuação judicial do Ministério Público, pode ocorrer declaração de nulidade de cláusula contratual abusiva (CDC, art. 51, § 4.º). Mais uma vez observamos a função social dos contratos interferindo nos seus princípios.
Muito daquilo que era tido como princípio do Direito Privado, no que concerne a contratos, tem se flexibilizado em função de outros interesses, não necessariamente limitados às partes contratantes, como citado para os três princípios anteriormente descritos, o que está diretamente relacionado ao assim denominado macro princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, princípio esse que serve como base para a orientação da Bioética, disciplina da qual trataremos em um capítulo posteriormente.
1.6.4-INTERPRETANDO E CLASSIFICANDO OS CONTRATOS
Sem uma interpretação coerente uma manifestação de vontade como é o contrato não poderia atingir seu objetivo. Há situações em que ele nem possibilita que seja traduzida a vontade das partes de forma exata. Existem contratos cuja redação é confusa, por vezes, ambígua, ou por ser o negócio que representa muito complexo ou em virtude das próprias limitações da linguagem. Interpretar, portanto, é algo necessário tanto para a lei quanto para os negócios jurídicos em si. Compreender corretamente a intenção das partes é condição impreterível para que a mesma se cumpra. Ou seja, para a própria execução do contrato. E não causa admiração que tais regras de interpretação, previstas no Código Civil, dirijam-se antes às partes, as principais interessadas no cumprimento do mesmo.
Já no que concerne a sua classificação, apresentaremos novamente alguma nomenclatura por poder nos ser útil na categorização dos potenciais contratos de gestação substitutiva e para um melhor posicionamento desse tipo de negócio. Lembramos que essa classificação é baseada na doutrina e retirada de GONÇALVES (2012), segundo a qual, os contratos podem ser estratificados como descrito a seguir. Em unilaterais ou bilaterais, e essa separação baseia-se em se uma das partes, nos primeiros, ou ambas, nos últimos, assumem obrigações. No caso dos contratos ditos bilaterais há obrigações para todas as partes e uma não pode antes do cumprimento da sua, exigir o cumprimento da outra.
Há ainda a distinção entre contratos gratuitos e onerosos, sendo que nesses últimos ambas as partes contraem obrigações econômicas. Essa questão da onerosidade, por sua vez, é muito discutida no âmbito da gestação por outrem. Nos contratos ditos comutativos cada parte recebe uma contraprestação quase equivalente enquanto nos aleatórios esta pode ser inexistente ou mesmo desproporcional. Eles podem ser ainda considerados típicos, ou seja, previstos por lei, ou não previstos ou atípicos. São denominados contratos consensuais aqueles que se formam desde a proposta e reais os que se formam mediante entrega efetiva do objeto contratado.
Existem outras subdivisões dos contratos, menos relevantes para este estudo, a saber são eles, solenes ou não; principais ou acessórios; de execução imediata, cumpridos no ato, ou sucessivos, cumpridos em etapas; personalíssimos ou impessoais, nesses últimos, a prestação pode se dar tanto pelo obrigado quanto por terceiros; preliminares ou definitivos; individuais ou coletivos, neste caso o acordo de vontades se firma entre pessoas jurídicas, que podem ser representativas de categorias profissionais, por exemplo; derivados que são os que tem por objeto os direitos estabelecidos em outro contrato denominado então principal. E por último, há os contratos paritários, cujas partes estão em condição de igualdade para debater livremente as cláusulas, consistindo essa característica em um sintoma de paridade econômica e psíquica, e que se traduz em termos jurídicos, contrapondo-se aos contratos de adesão em que uma parte é impositiva de todas as cláusulas por deter um monopólio, cabendo a outra parte apenas a decisão de aderir ao mesmo ou não.
Entender requisitos essências dos contratos faz-se necessário para compreensão de sua aplicação nos acordos envolvendo a gestação por substituição solucionaria muitos problemas suscitados durante o processo. Tendo em vista a natureza normativa dos contratos, e que este trabalho visa justamente mostrar que os acordos entre os idealizadores do projeto parental e a hospedeira devem ser observados pela ordem jurídica brasileira.
A seguir discorreremos sobre a evolução de um novíssimo campo do Direito que tem exatamente a função de normatizar algumas das, igualmente novas, práticas no campo da ciência e da medicina e acompanha a formatação de uma nova disciplina voltada a garantia de que a ética coexista ao desenvolvimento médico e científico.
CAPITULO II-
2.1- INTRODUÇAO
Para que possamos chegar a problematização sobre a validade dos contratos no que concerne a gravidez por substituição, necessitamos, além de entender a sua própria definição, descrita anteriormente, discorrer brevemente sobre os mecanismos da medicina moderna que têm possibilitado e viabilizado sua concretização.
O que outrora era impensado, um embrião com material genético de um casal se desenvolver no útero de outra mulher que não a doadora desse material, traz à tona também o debate sobre a regulamentação do empréstimo de útero e suas implicações, sob a luz de disciplinas também recém desenvolvidas como, as assim denominadas, bioética e biodireito, que, por sua vez, visam nortear tais práticas em consonância com a dignidade da pessoa humana.
Passamos a discorrer sobre alguns conceitos científicos básicos fundamentais à compreensão desse trabalho.
2.2- BIOÉTICA – BREVE HISTÓRICO E DEFINIÇAO
Podemos apontar a evolução científico-tecnológica da medicina como a grande responsável pelo desenvolvimento da denominada bioética. Esta parece ter surgido como uma tentativa de moralizar as práticas médicas, evitando que se ferisse ou se delegasse a um segundo plano a dignidade da pessoa humana. À medida em que a medicina evolui, suscita uma nova visão e atuação da ciência jurídica.
Grande polêmica é naturalmente gerada, considerando-se as influências de diversos campos de estudo filosóficos, religiosos, políticos, dentre outros, criando uma demanda urgente no campo da dita bioética. O debate sobre até que ponto o ser humano é capaz, e mais, está habilitado para manipular, alterar e dispor do curso natural da vida.
Como ressalta PESSINI (2005, p.15) o entrecruzamento da ética com as ciências da vida acabou por provocar uma mudança no modo de agir dos profissionais da saúde e originou para suprir essa carência um novo ramo do saber. Estudiosos da área da Medicina foram levados a criar o movimento da bioética que se estabelece na década de 70 nos Estados Unidos, na Europa na década de 80, no início dos anos 90 na Ásia e a partir de meados da década de 90 nos países em desenvolvimento, manifestando-se principalmente por meio de congressos e eventos afins quer de âmbito continental, quer nacional com diversas publicações na área.
A bioética, (DINIZ, 2014 p. 33) definida pelo oncologista Potter Van Rensselaer, ao qual foi creditada a intuição pioneira e o neologismo "Bioethics", é "a ciência da sobrevivência humana", numa perspectiva de promover e defender a dignidade humana e a qualidade de vida, ultrapassando o âmbito humano para abarcar inclusive a realidade cósmico-ecológica. Potter pensa a bioética justamente como uma ponte entre a ciência biológica e a ética. Apesar de não ter nascido na Igreja, embora tivesse contado com a participação de alguns teólogos, tem como um dos desafios a ser trabalhado nesse limiar de um novo tempo, o diálogo com as religiões. Leo Pessini (1971 apud Potter 2005 p.35), nesse sentido, enfatiza a definição da bioética como:
Esta nova ciência combina o trabalho dos humanistas e cientistas, cujos objetivos são sabedoria e conhecimento. A sabedoria é definida como o conhecimento de como usar o conhecimento para o bem social. A busca de sabedoria tem uma nova orientação porque a sobrevivência do homem também está em jogo. Os valores éticos devem ser testados em termos de futuro e não podem ser divorciados dos fatos biológicos. Ações que diminuem as chances de sobrevivência humana são imorais e devem ser julgadas em termos do conhecimento disponível e no monitoramento de parâmetros de sobrevivência que são escolhidos pelos cientistas e humanistas.
Dentro da bioética, como observa PESSINI (2005, p. 295 a 296), uma área específica se destina a denominada TRA – Técnicas de Reprodução Assistida, que nada mais é, do que o conjunto de técnicas científicas que auxiliam o processo natural de reprodução humana. Essas técnicas, por sua vez, suscitam questões muito controversas, que mexem com preconceitos e afetam de forma especial as mulheres. Além, claro, de pôr em xeque algumas certezas com relação a gênero e família. Derrubando paradigmas como a necessidade de existir uma relação sexual entre um casal heterossexual para se gerar um filho.
É nesse contexto que se desponta a gestação substitutiva, avanço que também não pode ser negligenciado pela lei, pois tem, cada vez mais, acompanhando a evolução das Técnicas de Reprodução Assistida, e, se apresentado como opção viável, por vezes a única opção, tanto para casais heterossexuais inférteis como para casais homoafetivos que tenderão de forma cultural a almejarem a geração de filhos. Os aspectos legais envolvidos nesse projeto permanecem em estudo nesse trabalho.
2.3- BIODIREITO
É absolutamente compreensível que o direito civil clássico tenha dificuldade de regular as relações sociais oriundas dos avanços científicos, até porque seus institutos datam de épocas em que se observava uma mistificação das questões relacionadas a infertilidade e sua própria resolução era tida até então como algo impossível.
Na visão de PINEIRO (2006, p. 35), sendo impossível negar que a sociedade evoluiu no que concerne aos conhecimentos biotecnológicos e que esse progresso modificou a visão do homem sobre a vida, por isso, o Direito veio adaptar-se para que esses conhecimentos e novas técnicas fossem revistos e ao mesmo tempo limitados por ele.
Em SANTOS (2006, p.55) observamos a descrição que revela que o conceito de "biodireito" seria o de positivação das normas bioéticas. Ou seja, o biodireito nada mais seria do que a positivação jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos e de consequentes sanções pelo descumprimento de tais normas. Logo ele faz-se indispensável nos nossos dias. O progresso científico jamais poderá posicionar-se acima da ética nem tampouco do próprio direito, muito menos justificar crimes contra a dignidade humana. Cabe ao direito, mais especificamente a essa sua ramificação, o biodireito as sanções necessárias a preservação da vida.
O direito deve sempre acompanhar a evolução da ciência e, quando possível, normatizá-la, evitando que casos sejam julgados e decididos tendo por base unicamente os desideratos dos magistrados. Nesse campo, observamos certa insegurança no ordenamento jurídico pátrio por falta de leis específicas. É o que explana PINEIRO (1949 Apud RIPERT, 2012, p.69) "A insegurança jurídica nasce quando a lei é mal elaborada. Pode parecer menos perigosa que a insegurança derivada de fatos, mas, em realidade, ela é mais grave, visto que é destruidora da autoridade e insidiosamente conduz um país a anarquia."
E muito embora, por vezes, faça-se necessária uma "biologização" da lei, já que é impossível desvincular as "ciências da vida" do direito, a bioética e o biodireito, caminham na difícil tarefa de diferenciar o que é útil do que é nocivo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genética, pela embriologia e pela biologia molecular, determinando, com objetiva prudência, até onde as "ciências da vida" poderão chegar, pois é função do direito evitar que o mundo deságue em caos, sem contudo, impedir o progresso tecnológico útil a preservação da vida ( DINIZ, 2014, p.33).
CAPÍTULO III –
3.1- REPRODUÇAO NATURAL
A fecundação, nada mais é, do que a criação de um novo ser, ou um novo indivíduo, e quando o novo ser é da espécie humana ela passa então a ser sinônimo de procriação. A fecundação é, portanto, algo essencial a preservação de qualquer espécie e a procriação é igualmente essencial para a manutenção da espécie humana. O homem, por unir o biológico ao social, é composto por bilhões de células que ao se multiplicarem e especializarem, formam um indivíduo complexo, capaz de pensar e também sentir, constituindo um dos seres mais complexos conhecido no universo.
Nesse sentido Maria Helena Machado (2012) esclarece:
Por não se constituir num ato meramente biológico do homem, mas em um ato pessoal, a procriação humana exige um envolvimento livre e responsável de cada uma das pessoas na sua totalidade, ou seja, o corpo, o coração e o espírito. Transmitir a vida se constitui num dos maiores bens da humanidade, visto não se tratar de uma obra exclusivamente técnica, mas de uma obra de humanidade.
Para simplificar e entender superficialmente a reprodução humana natural consideraremos a divisão proposta em (MACHADO, 2012), no seu livro Reprodução Humana Assistida, de células do organismo humano em duas classes principais: as somáticas e as germinativas. As primeiras são as que compõem o organismo humano e o fazem trazendo em seu núcleo informações genéticas mantenedoras das funções vitais de cada tecido, sendo quarenta e seis pares de cromossomos, já as outras, relacionam-se com a formação de gametas, possuem em seu núcleo a metade dos cromossomos, 23, e são responsáveis pela reprodução. Tratam-se das células germinativas femininas, os óvulos, e masculinas, os espermatozoides.
Nessa ótica, (MACHADO, 2012, p.18) assevera que a reprodução humana natural se dá pela fusão de células germinativas resultando em um ovo ou zigoto. A esse processo chamamos fecundação ou fertilização, que constitui a união do óvulo com o espermatozoide, e cujo produto sofrerá as divisões celulares, as mitoses, e que traz toda a programação genética necessária para a formação do novo indivíduo. É no momento da fertilização, ou seja, da penetração do espermatozoide no óvulo, que será formada uma nova entidade biológica, que carrega em si um novo projeto, uma nova vida em potencial.
Logicamente, esse zigoto, não cumprirá esse papel se não encontrar a partir de então circunstâncias e um ambiente favorável ao seu desenvolvimento. Para desenvolver-se, por sua vez, deverá passar pela próxima etapa, a nidação, que consiste na implantação do zigoto no endométrio, ou seja, no útero da geradora, encontrando nele o tal meio adequado para desenvolver-se. Formado por material proveniente do pai e da mãe, o zigoto passa a constituir uma diferente combinação de cromossomos que já o diferencia dos dois.
Assim exposto parece simples, mas as circunstâncias favoráveis para que a reprodução humana possa ocorrer naturalmente, são complexas, conforme a explanação de MACHADO (2012) a seguir:
A mulher deverá produzir um óvulo maduro dentre os 200000 existentes em seus ovários e o homem terá que produzir em seus testículos, sêmen, com propriedades específicas favoráveis, e para o coito, dos 300000000 de gametas masculinos, 65% deverão se locomover normalmente ativamente para encontrar-se com o óvulo, tendo que ascender pelo interior do colo do útero e da trompa de Falópio.
A fertilização é dita bem-sucedida quando esse espermatozoide alcança a trompa e penetra no óvulo, formando o ovo que no útero encontra condições, instala-se, no endométrio, e se multiplica. Um casal considerado fértil tem a cada mês, 20% de chances, vencidas todas essas etapas, de ter êxito e engravidar (PESSINI,2005,p.302). Isso sem levarmos em consideração todas as possíveis complicações durante o período gestacional.
Quando há falha ou impossibilidade, em caráter permanente ou transitório, de alguma dessas etapas, acima descritas, cumprirem-se é que se faz necessária à procriação uma intervenção médica que poderá, inclusive, culminar com o uso de um método mais complexo, e com o envolvimento de terceiros na tentativa de superar a esterilidade e a infertilidade conjugais, conceitos expostos a seguir.
3.2- INFERTILIDADE, ESTERILIDADE DO CASAL E SUAS CONSEQUENCIAS
Temos discutido sobre as repercussões negativas da infertilidade e esterilidade na vida de casais que objetivam a procriação. Vamos aqui discutir sobre conceitos básicos da reprodução natural e artificial humana. Tanto o termo esterilidade quanto infertilidade são indistintamente usados para designar a incapacidade de reprodução.
A Secretaria Saúde do Estado (2008), entretanto, esclarece que a esterilidade é a incapacidade definitiva de conceber e infertilidade pode ser apenas a diminuição da capacidade de ter filhos vivos, sendo possível a fecundação e o desenvolvimento do embrião ou feto, ou seja, pode ser reversível. Um casal deve considerado infértil quando, mantendo relações sexuais frequentes, não consegue conceber após dois anos, sem uso de nenhum método anticoncepcional.
Essa definição é a adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e tanto a esterilidade quanto a infertilidade foram caracterizadas por ela, sendo igualmente temidas, pois culturalmente como vimos, foram e ainda podem ser, de certa forma, consideradas como algo negativo. Discutimos sobre como o casamento já foi outrora tido como obrigatório e com o objetivo único de nascimento de filhos. Como já dissemos a mulher estéril já foi considerada um ser maldito que merecia ser banida da sociedade. Esse passado deixou marcas que são fundamentais para a repercussão da infertilidade e esterilidade no nosso meio.
Por esse motivo, ainda nos dias de hoje, a impossibilidade de procriar atinge psicologicamente não só indivíduos, mas diretamente os casais, convencionais ou não, que atualmente tem a escolha de procriar, frisando-se que, sim, atualmente, ter filhos transformou-se em uma escolha, tal mudança, porém, não fez com que deixe de ser frustrante o insucesso daqueles que ao assim o desejarem, encontrem algum impedimento para tal. Mesmo na atualidade, via de regra, a angústia do fracasso de procriar, não fica restrita ao ambiente íntimo do casal. A nossa sociedade é ainda bastante centrada nas noções de virilidade e do papel reprodutor. E, nesse contexto, a esterilidade repercute no meio social e nas relações do casal.
3.3 CONDIÇÕES MÉDICAS QUE GERAM INFERTILIDADE E ESTERILIDADE CONJUGAIS
As causas para esses impedimentos podem ser femininas, masculinas ou mistas. Segundo a SOCIEDADE BRASILEIRA DE REPRODUÇAO HUMANA (2014) (SBRH), podem ser problemas de ordem física ou psicológica detectados na mulher ou no homem. Sabe-se que um em cada seis casais, apresenta o problema da infertilidade.
Alguns fatores têm contribuído para o aumento das taxas de infertilidade. É que as chances de fecundação natural diminuem com o passar dos anos, e, as mulheres, cada vez mais, estão adiando a gravidez em prol do desenvolvimento profissional como prioridade em sua vida. Para os homens o mesmo raciocínio pode ser aplicado. Outras causas desse aumento podem ser apontadas como uso prolongado de contraceptivos, abortos clandestinos, promiscuidade e doenças sexualmente transmissíveis, má qualidade de vida, consumo de drogas, álcool e medicamentos, carência de vitaminas e o stress. Há ainda que se considerar, as mulheres com alterações anatômicas que impeçam a fecundação ou a gestação e a possibilidade, por exemplo, de após uma esterilização artificial uma mulher voltar a desejar ser mãe.
Em MACHADO (2012, p.26 a 27) são destacadas entre as causas da infertilidade feminina, causas ováricas, alterações das gônadas femininas congênitas ou adquiridas (tumores, cirúrgicas, inflamatórias), anomalias da ovulação, da fase lútea ou endometrioses e a tendência letal do óvulo. Causas tubárias como obstrução da tuba. Causas uterinas como lesões de endométrio ou fator mecânico. Causas cervicais como alterações morfológicas, traumáticas ou funcionais. Causas vaginais, psíquicas e outras como a obesidade e os problemas endócrinos (diabetes, hipotireoidismo).
Já a infertilidade masculina pode ter sua gênese tanto nas anomalias testiculares gerando poucos ou nenhum espermatozoide, oligoospermia ou azoospernia, respectivamente, quanto nas anomalias da ejaculação ou em defeitos estruturais dos espermatozoides.
Como fatores mistos de infertilidade destacam-se o fator imunológico e incompatibilidade do casal e a esterilidade idiopática (sem causa aparente).
É de especial interesse para nossa discussão as causas femininas que levam a pretensa mãe a uma absoluta impossibilidade de levar a termo uma gravidez por qualquer anomalia grave ou ablação do útero, ou ainda, quando uma gravidez apresentar risco elevado para a saúde dessa mulher.
Todos esses fatores contribuem para um crescente aumento na procura por vias alternativas de procriação as quais podem ser incluídas a gestação por substituição, aqui também podemos considerar o aumento de casais homoafetivos e as diversas novas modalidades de estrutura familiar que uma vez reconhecidas enquanto família passam, evidentemente, a almejar a tanto gerar quanto educar filhos.
3.4- REPRODUÇAO ASSISTIDA CONCEITO E TÉCNICAS
O vocábulo reprodução, até não muito tempo, poderia referir-se unicamente a capacidade natural descrita de procriação por meio da conjunção carnal. Hoje, nomes como fertilização ou fecundação artificial, inseminação artificial são usados para caracterizar o que mais adequadamente denominaremos Técnicas de Reprodução Assistida (TRA), de acordo com o CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.
Essas, nada mais são do que, segundo DINIZ (2014), o conjunto de operações para unir artificialmente os gametas masculinos e femininos dando origem a um ser humano. Não se pode esquecer nesse ponto, que a reprodução humana migra, com as técnicas de fertilização artificial, do âmbito íntimo do casal, para um ambiente de ampla participação, em que, até mesmo os óvulos e espermatozoides podem ser tratados e manipulados fora do corpo.
Na atualidade, existem diversas opções disponíveis, e é de acordo com o problema apresentado que será escolhida uma técnica mais apropriada ao caso. As técnicas de reprodução assistida podem ser classificadas quanto à complexidade, se estivermos diante de uma anomalia complexa, complexa igualmente deverá ser a técnica a que o casal será submetido.
São consideradas técnicas de baixa complexidade, por exemplo, o coito programado, e entre as de alta complexidade, a fertilização in vitro (FIV). Como ressalta DINIZ (2014, p.679 a 681), existem as técnicas ditas in vivo, que ocorrem no próprio organismo feminino, e as in vitro, citadas a pouco, em que ambos os gametas, femininos e masculinos são manipulados e a fecundação se dá em laboratório.
As técnicas também podem ser distinguidas em homólogas, que utilizam exclusivamente as células reprodutivas do casal que se submeterá ao procedimento, ou heterólogas, em que o material genético tanto feminino quanto masculino pode ser doado por terceiros. Essa técnica pode ser necessária quando um dos cônjuges, ou os dois, não possuírem sua respectiva célula reprodutiva, ou que as mesmas não favoreçam a fecundação. A doação de material genético torna possível inclusive a escolha do doador de gametas segundo o biótipo almejado para o filho. E deve ser regida por uma série de regras, ainda assim, sendo alvos de muita discussão. Podemos considerar que são justamente a fertilização in vitro e a inseminação heteróloga, ou seja, as mais complexas, que podem suscitar grandes alterações e repercussões no seio familiar, e, consequentemente, em toda a dimensão do conceito e estrutura da família e na sua função social.
A inseminação artificial intraconjugal (IAC), consiste no depósito de material genético do próprio cônjuge, na vagina (Intravaginal), no colo (Intracervical), no útero (Intrauterina) ou até no peritônio (Intraperitoneal), e, é indicada especialmente nos casos de anomalias masculinas que impedem a ejaculação no lugar adequado ou femininas como má formação do aparelho genital ou em caso de tratamentos esterilizantes prévios. A inseminação artificial com Esperma de doadores (IAD) é que justamente vem desvincular o momento da doação com o instante de sua utilização, o que só foi possível com os métodos de conservação do sêmen e a criação dos bancos de esperma MACHADO (2012, p.35 a 38).
3.5- A FERTILIZAÇAO IN VITRO (FIV ou FIVETE)
É a técnica que permite o encontro entre o óvulo e o espermatozoide fora do corpo da mulher, para que posteriormente, o embrião obtido seja colocado em um útero da mulher doadora do gameta ou de outra para então se desenvolver. Ou seja, é a técnica que possibilitou a gestação por substituição.
Deve ser utilizada, mediante avaliação criteriosa da fertilidade do casal, com uma série de exames a serem feitos por ele e compreende o desenvolvimento de várias etapas como indução da ovulação, punção folicular (para adquirir os óvulos), coleta e preparação do esperma, com a inseminação propriamente dita e a cultura dos embriões. Tanto podem depender exclusivamente da participação do casal e da equipe médica, quanto pode haver a participação de terceiros na doação dos óvulos, dos espermatozoides ou mesmo o empréstimo do útero que gerará a criança. (MACHADO, 2012, p.39 a 43).
Durante a gestação existem denominações que visam didaticamente diferenciar o produto da concepção de acordo com o período, medido em semanas, em que a gestação se encontra. Essa subdivisão do ser em sua vida intrauterina de acordo com a idade gestacional e, as características inerentes a cada estágio também são úteis ao direito na hora de delimitar e estabelecer direitos e obrigações tanto de quem gera, quanto do novo indivíduo que se desenvolve. Passemos a estudar essas etapas, que tem por ápice o nascimento de um novo ser.
3.6- EMBRIAO, FETO E NASCITURO
Outra questão tão controversa quanto importante na análise de validade dos contratos de gestação substitutiva, como discutiremos adiante, seria a caracterização de quando e em que momento um embrião humano deve ser considerado vida, ou então de quando pode ser tido como indivíduo possuidor de direitos. Esses conceitos são cruciais em algumas abordagens e para tomadas de decisão nos casos de gestação por outrem.
Nesse campo, os pontos de vista divergem, muitas vezes influenciados sobremaneira por questões filosóficas e religiosas. O limite entre embrião e pessoa só pode ser estabelecido arbitrariamente, talvez justamente por fazer parte daqueles enigmas pertencentes aos mistérios da vida.
Assim, BERTI ( 2008, p.46 a p.54) convenciona que antes do 15º dia após a fecundação, o embrião não pode ser qualificado de indivíduo (individuum: que não é divisível), baseado em um ponto pertinente, a que se apegam os defensores de experiências utilizando o embrião e suas células totipotentes (capazes de se modificarem em qualquer tecido), muito cobiçadas, que é a existência da possibilidade de o embrião, nesse período, ainda se dividir para formar o que a ciência denomina gêmeos monozigóticos.
Ainda em BERTI (2008, p. 37), a denominação zigoto é empregada ao óvulo fertilizado antes de ser implantado. O estágio de 14 dias marca a data limite até a qual são consideradas lícitas certas experimentações utilizando-o, de modo que antes de completar 15 dias não se considera que o zigoto tem o status nem a natureza do embrião.
Houve uma a tentativa de denominar o embrião nesse estágio de pré-embrião, tendo o termo suscitado muita polêmica, fora banido. Considerado inapropriado, entre outras, pela relação a um cunho de "coisa". Segundo a SBRH, nos casos de FIV o embrião é implantado em 2 a 5 dias após a fertilização, isso quando sua finalidade não é o armazenamento. Há cientistas defensores de que, pelo fato de o embrião necessitar de condições adequadas em útero saudável para o seu pleno desenvolvimento, condições sem as quais ele perece, não deva ser tratado isoladamente como um organismo.
No zigoto, não se pode negar, encontra-se, constituída a identidade biológica de um novo indivíduo pois ele já possui uma carga genética própria, diferenciada da do doador do sêmen e também da da doadora do óvulo. Alguns cientistas, entretanto, apegam-se a pequenos detalhes do desenvolvimento humano para justificar procedimentos científicos que utilizam embriões.
Nesse sentido, BERT (2008, p. 36) esclarece que o embrião é considerado, na área médica moderna, como um organismo individual envolvido em um processo contínuo de diferenciação submetido à ação dos grupos dos genes. Sendo assim denominado até a oitava semana após a fecundação, o que corresponde ao primeiro trimestre da gestação. No primeiro trimestre, o ovo fecundado desenvolve-se, torna-se embrião e as células diferenciam-se para formar a morfologia e os órgãos do corpo da criança. Junto com o fim desse trimestre inicial que ocorre o fim da organogênese (formação dos órgãos), portanto ao fim do estágio de embrião a criança estará "pronta", e irá agora apenas crescer e amadurecer. No segundo trimestre da gestação, o embrião passa a ser denominado feto, e já apresenta uma morfologia reconhecível, e, órgãos formados, que como dissemos só deverão crescer.
Até aqui apresentamos a descrição técnica dos termos científicos usados para classificar o produto da concepção durante a gestação. Agora traremos o termo nascituro, que é empregado pela linguagem jurídica brasileira, para indicar o ser concebido, durante o tempo que se encontra no seio materno, que o acolhe e protege. O nascituro é, pela lei, considerado, pessoa no sentido da dignidade humana, mas ainda em formação; logo não sendo pessoa madura.
Segundo alguns entendimentos, o nascituro ainda não alcançou a personalidade civil, característica que lhe confere a lei e que, nos dizeres do artigo 2º do Código Civil brasileiro, começa do nascimento com vida. A lei, porém, deixa sim a salvo os direitos do nascituro. Essas definições não são precisas por se tratar a gestação de um período de contínua evolução, e esse ser que durante nove meses vai se fazer no corpo e pelo corpo da mulher, constitui sempre temas de vasta reflexão por todo o mundo, nos mais diversos meios. BERT (2008, p. 40).
CAPITULO IV-
4.1- GESTAÇAO DE SUBSTITUIÇAO – A BUSCA POR DEFINIÇÕES E REGULAMENTAÇAO
Já deixamos claro, o quão a maternidade é algo natural a mulher e tão pertinente em sua saúde. Apresenta, repercussões impactantes, por abranger várias áreas de sua vida. Traz uma dimensão simbólica, emocional, religiosa, e também econômica. A mulher experimenta profundamente cada etapa desse processo, que para ela inicia-se antes do que para o resto da sociedade. Toda uma expectativa é gerada em torno desse bebê que é a própria realização de um sonho para a maioria das mulheres. Nesse trabalho preferimos o termo gestação substitutiva ao termo maternidade substitutiva, por acreditarmos que conceitualmente é mais adequado, já que a maternidade será exercida pela autora do projeto parental, e nesse quesito não será substitutiva. Veja como MACHADO (2012, p.23) descreve a repercussão da esterilidade na vida do casal:
A impossibilidade de procriar não atinge somente psicologicamente o indivíduo como atinge diretamente o casal. Na mulher, priva-a da insubstituível sensação do estado de mãe. Enquanto no homem o atinge no que ele tem mais de profundo, causando-lhes graves desordens psicológicas e transtornos emocionais.
À gestação substitutiva não difere da gestação convencional quanto ao sentimento e a expectativa, sendo esses semelhantes ou maiores. Envolve, obviamente, uma preparação emocional mais cuidadosa dos envolvidos e ocorre em um contexto em que os futuros pais da criança, muito provavelmente, chegaram ao último recurso para procriar. Se nos voltarmos ao passado, podemos nos surpreender ao percebermos que a ideia implícita nessa prática não é tão inédita quanto imaginamos, talvez essa seja uma das formas mais antigas de procriação não convencional, que anteriormente utilizava-se de meios naturais, sendo o gameta da mãe de aluguel fecundado pelo gameta do pai biológico e posteriormente a criança entregue a ele para ser criada junto a outra "mãe".
Hoje, a gestação substitutiva de que tratamos é a forma realizada utilizando-se da reprodução assistida para problemas irreversíveis do ponto de vista de fertilidade, os quais foram explanados no capítulo III, item 3.3. A gestação por substituição não é, por si só, uma técnica, mas pode se utilizar da junção de técnicas variadas, no caso de impossibilidade definitiva da pessoa a qual a criança se destina de gerá-la com segurança e, só se fez possível, nesse molde atual, devido a magnífica evolução da ciência nessa área.
No Brasil, como já foi frisado, não há qualquer direito a proibir ou regular esse tipo de reprodução. A Resolução 2013/2013, do Conselho Federal de Medicina pode ser considerada o único ato normativo para a atuação dos profissionais das técnicas de fertilização assistida que não prevê nenhum dispositivo sobre a maternidade de substituição e muito menos sobre a questão da parentalidade do fruto dessa técnica. O parâmetro para estabelecimento da maternidade nas gestações que utilizam uma terceira pessoa, continua sendo o parto, conforme previsto na legislação civil. A colaboração de duas mulheres ou mais, no nascimento de uma criança, por si só, interfere nessa determinação da maternidade e no estabelecimento da própria filiação se considerada a legislação atual vigente no país.
4.2 – O EMPRÉSTIMO DE ÚTERO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
O empréstimo de útero constitui nada mais que uma forma de garantir um desenvolvimento completo da criança, encerrando-se com sua devolução aos donos do projeto parental, constituindo uma via alternativa para se alcançar a maternidade, ao mesmo tempo em que faz com que a sua determinação deixe de ser algo óbvio ou simples. Está intimamente ligado a gestação substitutiva por constituir o instrumento para sua realização.
Observamos uma definição bastante realista. Encarado sobre essa ótica, o empréstimo do útero é um meio para que o objetivo final, a procriação, seja alcançada. Segundo a definição de MACHADO:
A técnica de empréstimo de útero, ou mãe de substituição, ou ainda vulgarmente conhecida "barriga de aluguel", ou ainda "mães de aluguel" ("surrogacy motter"), implica na intervenção de uma terceira pessoa na gestação para garantir o seu desenvolvimento completo e que devolverá a criança aos pais depois do nascimento, criando uma nova espécie de maternidade.
Conforme explanamos anteriormente no capítulo III, item 3.5, se pensarmos nas possibilidades geradas através da FIV, uma criança poderia ter até três mães, e isso em mais de um caso. Tanto quando o material genético é proveniente de duas mães (fecundação apenas por gametas femininos) e gerados em uma terceira mulher, quanto quando uma mulher doa o material genético, uma segunda doa o útero e uma terceira criará a criança. Todas, possibilidades geradas pela fertilização in vitro associada ao empréstimo de útero.
Por último voltamos a tratar brevemente da principal repercussão do empréstimo do útero, a determinação legal da maternidade quando nasce a criança, pois pode-se considerar as seguintes hipóteses: a mãe gestacional, que gestou a criança; a mãe biológica, a doadora do óvulo; a mãe socioafetiva, a que recorreu aos centros de procriação artificial e que será a educadora da criança. (MACHADO, 2012, p. 57)
No Brasil, para aspectos legais, é considerada mãe aquela que deu à luz a criança. A certidão emitida, pela maternidade, de "nascido vivo", será fornecida em nome de quem sofreu o parto. Muito embora, atualmente, os tribunais têm pacificado e reconhecido a figura da mãe social ou socioafetiva, como veremos adiante ao falar do novo modelo de entidade familiar, o que é bastante positivo se pudermos estender ao universo da gestação por outrem.
4.3.- REQUISITOS ESSENCIAIS DO CONTRATO DE EMPRÉSTIMO DE ÚTERO
Ato jurídico que é, o contrato de gestação por terceiro também se encontra vinculado à determinados requisitos de validade, como os demais negócios jurídicos, e, que foram expostos no capítulo I. A diferença substancial deste contrato gestacional para a imensa maioria dos contratos é o fato de ele não estar atrelado a uma questão patrimonial e sim a uma questão existencial, a qual lhe empresta uma feição absolutamente particular.
Para iniciar nossa discussão postulamos que, quanto à forma, a lei nada dispõe a esse respeito, não sendo exigido como requisito de validade uma forma específica, sendo admitida, até mesmo, a contratação verbal. A forma escrita é aconselhável, contudo, pois ela facilita tanto a prova da contratação quanto de seus termos, comprovando-se assim a presença dos outros requisitos essenciais de validade.
Passemos então aos requisitos essenciais de validade para o contrato de gestação por outrem. Ele exige, como os demais contratos, capacidade das partes, consentimento qualificado e interesse legítimo na contratação. A capacidade das partes, pois, embora a vontade do incapaz deva ser considerada para a concretização de situações existenciais, não há espaço para incapazes disporem a respeito da gestação por substituição. Nem mesmo uma autorização judicial poderá suprir o consentimento que, desta feita, é personalíssimo e qualificado, e, por isso, requer plena capacidade dos contratantes.
Assim, MEIRELES (2009, p. 71) assevera que o consentimento das partes, por sua vez, excede a simples declaração de vontade. Ao contrário do que ocorre em questões patrimoniais, em que a declaração é suficiente para vincular validamente o seu emitente, nas questões existenciais, o consentimento deve ser "pleno, efetivo, nunca presumido, atual, espontâneo, consciente e informado..." Não sendo essas características tão exploradas no caso dos contratos em que se registra uma impostação prevalentemente objetiva.
Nos contratos de gestação substitutiva, interessa a vontade interna da gestante no momento da execução do método e que esta tenha sido exteriorizada de forma expressa, espontânea e consciente, após terem sido fornecidas a ela todas as informações sobre as consequências éticas, médicas e jurídicas envolvendo o procedimento, sendo possível a desistência, sem maiores consequências, até o momento do implante do óvulo no útero da gestante. Após a realização do implante, e, ocorrida a nidação, não são mais cabíveis arrependimento ou tampouco conflitos sobre a maternidade, afinal, já se consumara o ato em si, e segundo a essência do acordo, figuram como pais os titulares do projeto parental.
Quanto ao interesse legítimo, último requisito essencial de validade do contrato de gestação substitutiva há quem a considere uma afronta as leis naturais e à dignidade da criança e da gestante, que estariam reduzidas a objetos. Já os que defendem a presença do interesse legítimo nesses casos, compreendem esse ato como um exercício da autodeterminação pessoal dos titulares do projeto parental, pelo direito de procriar e de escolher a forma de fazê-lo e da gestante, por altruísmo ou qualquer outro interesse. Há ainda que se considerar uma visão mais pragmática do acordo, que leve em consideração o processo em si, e sua finalidade, sem, contudo, ater-se a questão do objeto ser pessoa, por considerar o meio, a gestação, o próprio objeto da contratação.
4.4- GRATUIDADE E ONEROSIDADE
No primeiro capítulo, item 1.6.4, apresentamos uma classificação cujo parâmetro para diferenciação dos contratos em subtipos, baseava-se entre outras, na questão de sua onerosidade ou gratuidade, ocasião em que mencionamos o quanto esse tema era discutível se remetido ao universo da gestação substitutiva. Pois nesse momento, exploraremos unicamente algumas interpretações acerca deste tema.
Entre muitos argumentos válidos e importantes, notamos que a gratuidade do empréstimo de útero, soa mais harmonicamente a natureza dos atos existenciais. Altruísmo e solidariedade, por sua vez, são consonantes com a diretriz solidarista e dignificante traçada pela própria Constituição Federal, sistema que rejeita veementemente a concepção da utilização do corpo como um recurso que possibilite instrumentalização do ser humano. Assim, ressalta Truzzi Otero (2011, p. 30):
A corrente defensora da contratação apenas na modalidade gratuita concentra seus argumentos na defesa da dignidade da criança, na preservação do consentimento livre e consciente dos contratantes e na proibição de transações onerosas a respeito do corpo humano, e, por conseguinte, do material genético.
São as peculiaridades do contrato de gestação substitutiva e a falta de uma denominador comum integrando uma questão que pode justamente encontrar-se na intercessão entre uma prática meramente patrimonial, com seus aspectos legais e práticos e, um universo existencial e romântico que traz em si o processo envolvido na geração de uma nova vida. Ao acordo entre as partes na gestação por outrem parece não se poder aplicar puramente a lógica dos contratos patrimoniais.
Discutindo-se, ainda, sobre as peculiaridades do contrato de gestação substitutiva, permeando a seara de sua onerosidade, o questionamento se essa seria suficiente para instrumentalizar a criança é ponto nefrálgico, cerne de grande debate no quesito validação desse tipo de contrato. Na contramão do que foi dito até o momento Luiza (apud PERREIRA, 2012, p. 19):
Nessa perspectiva, a utilização temporária do útero continuará a ter, em essência, um cunho solidário, já que com o valor previamente determinado a gestante saberá quanto irá auferir antes mesmo de aceitar o contrato, podendo planejar, desde logo, em favor de que benefícios reverterá o valor avençado. Importante salientar que é lícito à mulher receber esse valor, já que passará por desconfortos, preocupações e até mesmo riscos.
Nessa perspectiva, a onerosidade não interferiria no caráter nobre do gesto da mulher que empresta seu útero, não sendo, outrossim, o envolvimento financeiro condenável, mas sim encarado de forma mais pragmática. Toda essa discussão acerca de onerosidade, só será válida, segundo nossa visão, se tiver por finalidade impedir que a gestação substitutiva seja banalizada enquanto um mero ato comercial, ou para que mulheres desprovidas de condições sociais, econômicas e culturais sofram exploração em sua capacidade de gerar.
A resposta para toda essa discussão pode estar no próprio ordenamento jurídico pátrio, mais especificamente na aplicação do princípio constitucional a proteção integral da criança. Assim, válido ou inválido o contrato de gestação, oneroso ou gratuito, são os interesses da criança que irão delinear uma decisão do magistrado na atribuição da parentalidade e o Direito nunca coadunará com a má-fé ou com a deslealdade.
Lembrando que a onerosidade não é a única questão de impedimento à licitude do contrato nesses casos, independentemente de ser ou não oneroso, o contrato empregado na gestação substitutiva, até o momento, permanece inaceitável dentro do ordenamento jurídico, posto que a possibilidade de o ser humano ser tratado como objeto contratual, por si só, caracterizaria uma obrigação ilícita.
4.5- O CONTRATO DE EMPRÉSTIMO DE ÚTERO
É sabido que o contrato do Direito Civil está inserido na parte que se refere aos Direitos das Obrigações, é necessário, contudo, pensar-se sempre em qual seria a validade e a eficácia deste contrato. Mais uma vez, nesse caso específico, depararmo-nos com a ausência de legislação específica, salvo pela já mencionada, Resolução2013/2013 do Conselho Federal de Medicina a proibir qualquer comercialização ou caráter lucrativo da doação temporária de útero.
Destacando-se que se o pagamento pelo feto é proibido, o contrato em si não é. Sabendo-se que o contrato nessas circunstâncias pode sim ser estabelecido o que não significa que o mesmo terá aplicabilidade normativa ou jurídica, ou seja o contrato mesmo vigente, não solucionará o problema entre as partes.
Miguel Reale (1990, p. 89) disserta sobre este assunto:
Dois requisitos são, portanto, necessário para que haja uma relação jurídica. Em primeiro lugar, uma relação intersubjetiva, ou seja, um vínculo entre duas ou mais pessoas. Em segundo lugar, que esse vínculo corresponda a uma hipótese normativa, de tal maneira que derivem conseqüências obrigatórias no plano da experiência. O trabalho do jurista ou do juiz consiste propriamente em qualificar juridicamente as relações sociais de conformidade com o modelo normativo que lhes é próprio.
Uma vez que haja o estabelecimento de uma relação jurídica o próximo passo é a análise de sua espécie. No caso da cessão de útero a problemática consiste, como dito anteriormente, em decidir sobre a possibilidade de que esta relação seja de fato um negócio jurídico contratual.
Ainda sobre essa decisão LEITE (1995, p. 31) apresenta o seguinte:
Surgiu a locação do útero, mas até hoje se questiona a lei do contrato pode ou não ser aplicada diferentemente quando a transação envolve engravidar, dar à luz e entregar um bebê, daquelas situações que envolvem negócios por trocas de serviços comerciais ou bens imóveis.
Quanto à classificação, o contrato estabelecido na gestação substituta, possivelmente, enquadrar-se-ia em quatro tipos, quais sejam eles do tipo: bilateral, gratuito, oneroso e atípico. Relembrando o conteúdo descrito no primeiro capítulo, item 1.6.4, bilateral por tratar-se de uma obrigação para ambas as partes. Gratuito por beneficiar apenas umas das partes, cabendo a outra apenas a obrigação. Sendo essa classificação a atualmente aceita no nosso meio para esses negócios.
Falamos de classificação do contrato em oneroso apenas supondo-se que fosse aceito ambas as partes obtendo proveitos, como, se por exemplo, fosse permitido ao casal oferecer algum pagamento a mulher que se dispusesse a gerar o embrião. Desta feita as duas partes se beneficiariam, no Brasil, entretanto, como prevalece a resolução que regula o método sob o ponto de vista da prática médica, essa opção é ainda inaplicável.
E, por último, a classificação desses contratos em atípicos por serem, até o momento, não previstos em lei, e logo a maternidade substituta podendo ser enquadrada nesse subtipo, tendo em vista que ainda não existe previsão legal para utilização deste método.
Em Lima (2004, p. 258-259) são apontados os seguintes requisitos específicos doutrinários para validação do contrato de gestação de substituição: consentimento e informação; interesse legítimo; gratuidade, e anonimato. O consentimento informado, por sua vez, consiste em uma das orientações da Resolução nº 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina. O interesse legítimo baseia-se no direito de procriação previsto no art.226, §7º da carta política que garante o direito a ter filhos e de utilização de novos métodos reprodutivos. Já a terceira condição, a gratuidade foi discutida em item anterior, 4.4. E quanto ao anonimato, no caso da gestação substitutiva, muitas vezes, ele não se faz possível em razão do empréstimo de útero, ser praticados e permitido em alguns estados somente entre mulheres da mesma família ou próximas.
4.6- A QUESTAO DA VALIDADE OU INVALIDADE DOS CONTRATOS DE GESTAÇAO SUBSTITUTIVA
A discussão sobre a validade jurídica ou não do referido contrato não torna nula a utilidade da técnica de reprodução assistida, nem tampouco a da gestação substitutiva, ainda que não haja um meio que garanta o seu funcionamento ou forneça subsídios para decisões judiciais até o momento. A gestação por outrem tem se apresentado como opção que não deve ser menosprezada já que, a evolução das técnicas de reprodução assistida ao possibilitarem sua realização fez brotar a carência de leis específicas a normatizem tal fato social.
Analisando a licitude ou não do objeto do pacto estabelecido entre as partes do projeto parental, deparamo-nos com o que foi explanado no capítulo I, item 1.3, que diz que o objeto é considerado lícito, quando se coaduna com a lei, a ordem pública e os bons costumes e que essa licitude é requisito para que um negócio jurídico seja tido como válido. Atualmente, podemos dizer que no Brasil, embora seja admitida e utilizada a expressão "contrato de locação de útero", não há, de impositivo, as condições necessárias para afirmação da viabilidade do objeto em questão. Temos postulado claramente que um contrato não pode ter por objeto a vida humana, pois essa é inalienável, indisponível e inviolável. Excetuando o fato de tratar-se de uma vida humana, o objeto do negócio jurídico possibilitaria então a realização desses pactos de empréstimo de útero. Mas também é considerada condenável em nosso meio, a coisificação do ser humano. Quais argumentos poderiam então serem empregados para que o mencionado contrato tivesse sua aplicabilidade estendida a esse tipo de relação, validando, pois, esse tipo de negócio jurídico?
Já foi realizada, ainda nesse capítulo, no item 4.4, uma análise da validade do contrato de acordo com a onerosidade, oportunidade em que dissemos que essa solução era insuficiente para tal, visto que o fator primordial para essa validação consistiria justamente na licitude do seu objeto.
E aqui chegamos a um ponto crucial desse trabalho, e suas implicações para o âmbito jurídico. Quando desejamos nos aprofundar na questão da legalidade do dito contrato de gestação substitutiva, como demonstramos acima, encontramos inúmeras opiniões divergentes no que concerne a sua validade ou invalidade. Alguns autores defendem que o objeto em negócio nesses acordos, no caso o próprio embrião, por ser considerado vida ou pessoa, tornaria o contrato nulo. Nesse sentido podemos citar a explanação de STOLZE (2014, p. 131) sobre o objeto da contratação:
O objeto do contrato, por sua vez, deve ser idôneo, assim considerado aquele lícito (ou seja, não proibido pelo Direito e pela Moral), possível (jurídica e fisicamente) e determinado ou determinável (com os elementos mínimos de individualização que lhe permitam caracterizá-lo).
O código civil em seu artigo 4° prevê que a personalidade civil começa do nascimento com vida, mas a lei põem a salvo os direitos do nascituro. O que necessita ser esclarecido e pactuado é, portanto, a partir de que momento temos um nascituro, um indivíduo. Além de Stolze, outros autores acreditam que isso ocorra desde o momento da fecundação, como também defende MACHADO (2012, p. 39) em:
Biologicamente, a partir do momento que se encontram ovulo e espermatozoide e se fundem seus núcleos, começa uma nova entidade (vida) que se diferencia do corpo materno, possuindo qualidades genéticas próprias e únicas. Desde a fecundação, sabe-se que este novo ser da espécie humana, diferencia-se do corpo materno, vez que possui características próprias, únicas irrepetíveis e insubstituíveis
Há, claro, os que consideram ser o contrato válido, baseando-se no fato de o concepto, ainda não se encontrando no ventre materno, antes da nidação, tratar-se de um zigoto, não podendo ser igualado a tecido humano no momento em que o contrato em questão é celebrado.
Há também os que se apegam ao fato de o embrião não poder ser considerado individuo até o décimo quarto dia de vida por poder nesse período ocorrer a separação gemelar, mesmo na reprodução natural. GIOVANNI RUSSO (1997, p. 64), por exemplo, defende uma lógica coerente com esse tipo de pensamento, em que esse início da vida e da individualidade se daria somente partir do décimo quinto dia de vida. Veja o que ele diz sobre essa questão da possibilidade de um embrião tornar-se gêmeos monozigóticos:
esta eventualidade não implica nem significa que o conjunto de células dos estágios primitivos do desenvolvimento seja um mero agregado de múltiplas unidades não organicamente correlatas num todo. Logicamente, pode-se somente afirmar que do primeiro sistema "teve origem" um outro sistema semelhante. Não que o primeiro sistema "se tenha tornado" um outro sistema, ou que "incluía" um outro sistema. Somente a potencialidade de "tornar-se" um outro sistema, e não a potencialidade de dar origem a um outro sistema ou a um maior número de sistemas, suprimiria a determinação e, portanto, a individualidade do primeiro sistema.
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|