Jean-pierre vernant - do mito à razão
O cosmo dos jônios organiza-se segundo uma divisão das províncias, uma partilha das estações entre forças opostas que se equilibram reciprocamente.
Não se trata de uma vaga analogia. Entre a filosofia de um Anaximandro e a Teogonia de um poeta inspirado como Hesíodo, Cornford mostra que as estruturas se correspondem até no pormenor6. Mais ainda, o processo de elaboração conceituai que tende à construção naturalista do filósofo está já em gestação no hino religioso de glória a Zeus que o poema de Hesíodo celebra. O mesmo tema mítico de ordenamento do mundo repete-se aí, com efeito, sob duas formas que traduzem níveis diferentes de abstração.
Em uma primeira versão, a narrativa descreve as aventuras de personagens divinas7: Zeus luta pela soberania contra Tifão, dragão de mil vozes, força de confusão e de desordem. Zeus mata o monstro, cujo cadáver dá nascimento aos ventos que sopram no espaço separando o céu e a terra. Depois, incitado pelos deuses a tomar o poder e o trono dos imortais, Zeus reparte entre eles as "honras". Sob esta forma, o mito está ainda muito próximo do drama ritual de que ele é a ilustração, e de que se acharia o modelo na festa real da criação do Ano Novo, no mês Nisan, em Babilônia8. No fim de um ciclo temporal — um Grande Ano — o rei deve reafirmar o seu poder de soberania, posto em causa nesta viragem do tempo em que o mundo retorna