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O movimento agroecológico como espaço de educação (página 2)

Antonio Inácio Andrioli

"Igualmente a qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, este serve para aperfeiçoar as mercadorias e diminuir uma parte da jornada de trabalho, a qual o trabalhador necessita para si mesmo, para que a outra parte da jornada de trabalho, que ele dá gratuitamente ao capitalismo, seja prolongada. Ela é a forma de produção da mais-valia" (MARX, 1983: 391).

O avanço da técnica possibilitou uma elevação na velocidade do processo produtivo através do uso crescente de capital constante, ou seja, investimentos em ferramentas, equipamentos e máquinas. As consequências desse processo são duplas: um aumento da produtividade e da exploração dos trabalhadores por um lado e, conforme Marx analisou, um crescimento relativamente maior e, por fim, predominante, do capital em equipamentos e maquinaria (crescimento da composição orgânica do capital).

Por isso, no que concerne à economia capitalista em geral, é improvável que o permanente avanço técnico estabilize as margens de lucros, muito menos que os eleve duradouramente. Mais máquinas são utilizadas e mais mercadorias produzidas, porém, o valor das mercadorias é reduzido devido à diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Mas, a partir do ponto de vista da empresa individual, isso se apresenta de outra maneira: por considerar a introdução de máquinas (capital constante) um investimento, que, no decorrer do tempo, é depreciado, o uso intensivo de uma máquina representa a possibilidade de minimizar os custos da depreciação.

Justamente em função da concorrência frente a outras empresas, o capitalista individual é tencionado a tirar vantagem dos benefícios dos avanços técnicos, mais rapidamente do que seus concorrentes e antes que os preços comecem a baixar. O aumento da produtividade do trabalho de um empreendimento permite ao capital elevar a mais-valia produzida localmente e se apropriar da mais-valia adicional, que é produzida nas outras empresas (transmissão de mais-valia). Desta maneira, é possível à empresa individual lucrar acima da média da taxa de lucros e se apropriar de lucros extras. Enquanto estas condições não se generalizam e os outros empreendimentos ainda não estiverem na mesma situação, uma empresa aproveita-se, individualmente, por conseguinte, da diminuição a curto prazo de seus custos de produção.

Por este motivo, é importante a uma empresa diminuir a proporção de trabalho necessário à produção de uma mercadoria em relação ao total do tempo de trabalho. A alternativa para isso é o avanço tecnológico. Não é, portanto, o avanço técnico que obriga uma empresa à acumulação e sim a necessidade de acumulação que estimula o investimento em tecnologia. "O capitalista que primeiro introduz uma máquina adquire um lucro extra, até que a introdução massiva de máquinas semelhantes venha a estabelecer um novo valor e preço para as mercadorias fabricadas. Na caça por lucros os capitalistas desenvolvem a técnica" (KUSIN, 1969: 82).

2. A tecnologia na agricultura

A queda de preços dos produtos agrícolas pode contribuir com a redução dos salários dos trabalhadores, pois gêneros alimentícios baratos contribuem para a queda dos custos de reprodução do trabalhador na indústria. Já por esta razão é significativo, para o conjunto da economia capitalista, que ocorram progressos técnicos na agricultura que, assim como na indústria, possam conduzir ao aumento da capacidade produtiva. Autores, como Carvailhés (1981), vêem, justamente nesta relação, a razão pela qual a inserção dos pequenos produtores rurais seria interessante ao capitalismo. A manutenção da agricultura familiar seria a melhor alternativa para diminuir os custos de reprodução da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, evitar o pagamento sobre a renda da terra.

Este ponto de vista, insinua, entretanto, que haveria uma espécie de decisão classista dos capitalistas, que estaria em conformidade com seus interesses gerais. Ou, em outras palavras, que haveria algo como uma instância superior, onde as melhores decisões seriam tomadas, também a longo prazo, do ponto de vista dos capitalistas em geral. No capitalismo realmente existente, porém, a situação apresenta-se de outra forma, pois a tendência é de concorrência por lucros e vantagens a curto prazo, sem maiores preocupações com o funcionamento racional e planejado do sistema como um todo a longo prazo. Por este motivo, Marx descreveu a sociedade capitalista como um "mundo anárquico", o que, certamente, se aproxima mais da realidade.

A indústria agrícola tenta estimular o uso de tecnologias aos agricultores para que o trabalho produtivo e a correspondente mais valia relativa no conjunto do sistema produtivo aumente. O trabalho de uma família de agricultores passa a ser adaptado à lógica da produção capitalista através da adoção de técnicas mais "modernas". Através da divisão do trabalho é possível, de maneira semelhante como na indústria, a separação do planejamento do trabalho de sua execução, de forma que os agricultores, assim como os trabalhadores da indústria, passam a ser subjugados ao poder da técnica. Partindo-se do pressuposto de que existe uma correspondência entre o paradigma da técnica e o sistema político vigente, os agricultores são levados, gradativamente, através das instituições políticas, a se adaptarem ao modelo técnico mais adequado às relações capitalistas.

"Com a crescente adesão dos agricultores ao sistema geral, a compulsoriedade à acumulação, à expansão das áreas cultivadas, à elevação da produtividade dos rebanhos e dos solos, imprimiu também ao produto da atividade do agricultor um caráter pleno de mercadoria. Nenhum agricultor tem mais condições de orientar sua produção por outro indicador que não seja o econômico" (POPPINGA, 1975: 134).

Todavia, a assim chamada industrialização da agricultura apresenta dificuldades que somente podem ser compreendidas a partir das especificidades da produção agrícola. Para aumentar a produtividade do trabalho na agricultura, dois fatores desempenham um papel substancial: o capital e a natureza. Para se reproduzir no setor agrícola, o capital é extraordinariamente dependente dos elementos da natureza – entre eles, principalmente, o solo – que, na indústria, não interferem de forma decisiva. A produção agrícola, portanto, é extremamente dependente de três elementos: dos processos biológicos, das influências da natureza e do solo.

Os processos biológicos impedem um alto desenvolvimento da divisão do trabalho na agricultura. Mesmo em monoculturas, somente uma cooperação simples dos trabalhadores é possível para intensificar o trabalho e diminuir prejuízos e perdas, como por exemplo, a colheita de forma coletiva. Uma complexa e integrada divisão do trabalho, como ocorre na indústria moderna, não pode funcionar na agricultura, porque nesta há os tempos de não-trabalho, que são determinados por fatores biológicos. Como os períodos de produção das plantas (fases de germinação, crescimento e amadurecimento) são dependentes da natureza, a circulação do capital na agricultura fica reduzida. O capital, estando "parado", conduz à desvalorização e a restrições na geração de valor. Quanto mais tempo uma máquina "fica parada" menor é a viabilidade em mantê-la. A alternativa encontrada por determinados agricultores para isso é a prestação de serviços a agricultores que não podem adquirir tais máquinas ou organizar círculos de máquinas, de forma que o potencial de uma máquina seja melhor aproveitado. Porém, o problema do tempo de não-trabalho não é solucionado dessa forma, o que restringe o progresso técnico. Apesar das atuais tentativas de reduzir a influência dos processos biológicos na agricultura com o uso de tecnologias, estas continuam limitadas, mesmo se tratando de plantas altamente desenvolvidas.

As forças da natureza podem ser vistas em associação a processos biológicos. A natureza influencia e determina consideravelmente os processos produtivos na agricultura (entre outros, as estações do ano, a temperatura, os índices pluviométricos, a umidade e a fotossíntese). Alterações artificiais nesses fatores (através de estufas, da irrigação, do isolamento e do aquecimento contra geadas, entre outros) apresentam limites econômicos e técnicos. Estas tecnologias são viáveis somente no caso de determinados produtos e grupos de produtos (como legumes, determinadas frutas, viveiros de mudas, flores e outros), mas os custos se elevam em áreas de cultivo intensivo e, a partir de um determinado momento, se tornam economicamente inviáveis.

A tecnologia agrícola, portanto, carece, fundamentalmente, da adaptação ao meio ambiente, e não inversamente, como no caso da indústria, onde o ambiente pode ser adaptado às máquinas e há condições de separar o processo produtivo da natureza.

A dependência da produção agrária do solo é determinada pela sua fertilidade e sua localização. A fertilidade de um solo está associada às suas propriedades (físicas, estruturais e nutricionais), sendo mais propícia a determinadas espécies de plantas, apresentando, a partir deste fator, um diferencial em relação a outros tipos de solo. O solo não é somente um substrato, mas um complexo sistema vivo (bactérias, fungos, insetos e uma ampla diversidade de pequenos seres vivos). Por isso, este fator também depende da relação entre os processos biológicos e a natureza. "O "princípio" fundamental da agricultura, é que ela se relaciona com vida, ou seja, com substâncias vivas. Seus produtos são o resultado de processos vivos, e seu meio de produção é o solo vivo" (SCHUMACHER, 1981: 100).

Porém, o solo é um fator de produção qualitativamente e quantitativamente limitado. O objetivo do progresso técnico é adaptar o solo às condições de produção capitalistas, como através da adubação química, pela qual foi encontrada uma alternativa aos limites quantitativos do solo. A localização de solos economicamente viáveis representa uma vantagem importante em comparação a outros solos, que acarretam, para a produção agrícola, um aumento nos custos de transporte. Problemas de localização, por sua vez, podem ser superados através do desenvolvimento de meios de transporte e da criação de mercados mais próximos.

Além disso, as relações sociais ocupam um espaço central no que se refere ao solo. Por se tratar de um fator de produção limitado, que não pode ser ampliado, o solo possibilita

o pagamento da renda aos seus proprietários, um obstáculo à mobilidade do capital. Quando em um país não há nenhuma terra "sem dono" ou ociosa para a utilização, eleva-se o índice de conflitos entre proprietários e capitalistas pela mais-valia gerada na atividade agrícola. Também nesse sentido o progresso técnico é visto como uma alternativa, para superar o pagamento da renda da terra: através da adubação química e da melhoria dos meios de transporte é possível a "reprodução" (ampliação da capacidade produtiva) dos solos mais produtivos e férteis.

3. A construção de tecnologias como processo de educação na agricultura familiar

Apesar da hegemonia das assim chamadas tecnologias modernas na agricultura, métodos agrícolas tradicionais ainda podem ser encontrados. A combinação entre tecnologias tradicionais e "modernas", que foi desenvolvida em decorrência do reduzido poder de investimento dos agricultores, pode ser uma explicação para o fato da agricultura familiar ter um menor custo de produção e para a existência de muitas pequenas propriedades agrícolas.

No entanto, a grande novidade em termos de resistência a tecnologias geradoras de dependência, exclusão social e destruição ambiental é o movimento agroecológico. A agroecologia pode ser entendida com uma reação às conseqüências negativas da aplicação das assim chamadas teorias modernizadoras, especialmente nos países mais pobres. Ela tem, por isso, um forte componente social, pois, pela sua capacidade de redução de insumos externos e de preservação das condições naturais de produção, ela pode atuar de uma forma economicamente estabilizadora para pequenos agricultores, objetivando a redução da dependência tecnológica (WOLFF, 1992). Porém, ela somente pode adquirir uma maior importância social como inovação técnica na medida em que não se limita à correção de erros da tecnologia agrícola tradicional. Potencialmente, portanto, ela pode almejar, através de uma ação interdisciplinar, a ruptura com o desenvolvimento tecnológico dominante no meio rural, contribuindo para a construção de possibilidades de organização alternativa dos pequenos agricultores, que venham a fortalecer sua autonomia de ação.

O objetivo da agroecologia, segundo Gliessmann (2001), é o desenvolvimento de uma agricultura que seja, ao mesmo tempo, ambientalmente sustentável, produtiva e rentável. Através de pesquisas interdisciplinares, em direta interação com os conhecimentos locais e empíricos dos agricultores, podem ser desenvolvidos e aplicados métodos que reduzam a dependência de insumos externos à propriedade e seus efeitos sobre o meio ambiente, permitindo a manutenção sustentável dos agricultores e de suas comunidades. A particularidade social da agroecologia reside no fato de estar baseada na ação coletiva de determinados grupos na sociedade civil com referência na sua relação com a natureza[1]Em primeiro lugar, ela não ignora o conhecimento dos agricultores e valoriza, especialmente, a preservação dos recursos naturais, a geração de crescimento econômico sem destruição da natureza, fatores estes que, juntamente com o trabalho, constituem a base histórica da produção agrícola. Além disso, com a agroecologia, o controle sobre o uso de tecnologias e a determinação da intensidade de trabalho a elas associadas permanece com os agricultores.

Decisivo para os agricultores, entretanto, são os possíveis benefícios à qualidade de vida, especialmente no que se refere à saúde e à maior facilidade no trabalho. Ambos elementos, envolvidos no uso de tecnologias ecológicas, estão no centro do debate sobre inovações tecnológicas na agricultura, pois estão diretamente associados a necessidades dos seres humanos que trabalham na agricultura e, portanto, podem servir de ponto de partida para a formação da consciência política dos agricultores. A possibilidade de reduzir e facilitar o trabalho, assim como torná-lo mais saudável, através de uma melhor relação com a natureza, é especialmente importante nas decisões dos agricultores sobre inovações tecnológicas (ANDRIOLI, 2007). Mas, se trata também de um processo de aprendizagem, na medida em que os agricultores são capacitados a refletir organizadamente sobre seus problemas concretos e, acompanhados de conhecimentos científicos, a desenvolver soluções que, tendo em vista a sua complexidade, exigem uma ampla organização social e política, de forma que o capital cultural (conhecimento) possa se converter em capital social (BOURDIEU, 1983).

A utilização de adubos orgânicos e a adoção da rotação de culturas são exemplos de atividades agrícolas baseadas na elevação da matéria orgânica, reciclagem de nutrientes, eliminação de substâncias químicas solúveis e controle biológico de pragas e doenças. Pesquisas de Altieri, comparando tecnologias convencionas com métodos de produção ecológica, demonstram que, pela não utilização de insumos externos como adubos químicos e agrotóxicos, os custos de produção na agricultura ecológica são 22,4% menores aos da agricultura convencional (ALTIERI, 2001: 69, 72, 73). Os efeitos da tecnologia ecológica sobre o meio ambiente também podem ser considerados mais sustentáveis, tendo em vista que foi constatada uma menor perda de solo e água, uma melhor estrutura, um maior equilíbrio de nutrientes e uma maior atividade de microorganismos no solo. Todos estes fatores também assumem uma dimensão econômica, considerando a relação existente entre a produtividade e a conservação da qualidade dos recursos naturais existentes.

A agricultura ecológica é mais intensiva em trabalho que a agricultura convencional no período de transição, o que também varia de cultura para cultura. Na agricultura ecológica o agricultor pode ser melhor remunerado se a proporção dos custos de produção com insumos externos for agregada em proveito do trabalho humano. Na economia capitalista, onde, tendencialmente, aumenta a introdução de instrumentos de produção que poupam trabalho e reduz a parcela de valor destinada ao trabalho, a perspectiva anteriormente descrita pode ser uma alternativa de resistência, se ao invés de mais capital constante é investido capital variável (trabalho especializado) e conhecimento na atividade agrícola.

Considerando a existência de uma dualidade da agricultura familiar, ou seja, a interação entre produção e consumo, pode ser constatada uma crescente atenção dos agricultores com relação à qualidade dos alimentos e suas conseqüências à saúde da família (ANDRIOLI, 2007). Essa relação entre produção de valor e necessidades humanas, contraditória com o modo de produção capitalista, constitui uma particularidade importante da agricultura familiar com relação ao uso de tecnologias.

O debate sobre inovações tecnológicas na agricultura pode adquirir uma dimensão política, ao unificar agricultores atingidos por tecnologias de caráter destrutivo, servindo como ponto de partida para a construção de um processo gerador de consciência crítica. A possibilidade de desmascarar o caráter explorador e destruidor da agricultura capitalista através da experiência com a agroecologia e de associar a necessidade da sua organização política com outras forças anticapitalistas na sociedade, pode conferir uma dimensão revolucionária a um movimento ecológico e cooperativo dos agricultores familiares. Isso, entretanto, depende da possibilidade de desvelamento das contradições da economia capitalista, partindo de uma experiência de produção socializadora do seu interior, de maneira que as estruturas de dependência tecnológica, econômica e social deixem de ser ocultas e passem a ser conscientes, conduzindo à formação de movimentos sociais mais amplos. Considerando a relação potencial da agroecologia com as necessidades concretas dos seres humanos atingidos pela tecnologia agrícola, essa possibilidade parece existir, confirmando as experiências progressistas de agricultores com as "tecnologias socialmente apropriadas"[2].

A existência de um amplo movimento político e cultural de resistência pode ser reforçada pela auto-organização de seres humanos situados à margem da sociedade capitalista. Nesse sentido, a maior importância da experiência coletiva de produtores e consumidores em uma organização cooperativa reside no processo de aprendizagem proporcionado pela gestão de um empreendimento produtivo de acordo com critérios igualitários, solidários e democráticos, na perspectiva de uma utopia processualmente concreta[3]Nesse sentido, em nosso entendimento, podem ser incluídos o princípio da sustentabilidade através do uso da agroecologia, como ponto de partida para a auto-organização de seres humanos atingidos pela modernização capitalista da agricultura, e o processo de aprendizagem com vistas ao fortalecimento da autonomia de ação e formação da consciência dos agricultores.

De acordo com Freire (1987) é a problemática comum que representa o momento essencial para a emancipação do indivíduo num processo coletivo gerador de consciência. A formação de consciência, por sua vez, pode ser entendido, ao mesmo tempo, como um processo de pesquisa "no qual o ambiente, as relações de trabalho e de vida constituem o ponto de partida e de determinação" (SZÉLL, 1984: 28). A tarefa de, com o auxílio da ciência, refletir criticamente o processo de cientificização de tecnologias agrícolas orientada pelos interesses de grandes proprietários rurais e corporações e a sua conseqüente ocultação de interesses de dominação é, em nosso entendimento, uma das principais contribuições da agroecologia em relação à agricultura familiar e à auto-organização cooperativa de agricultores.

Na medida em que, através de uma ação interdisciplinar, o conhecimento implícito passa a ser tornado explícito em forma de decodificação[4]há a possibilidade de desvelar interesses de dominação dispersos no interior da sociedade que fundamentam tecnologias, como a coisificação da natureza e dos seres humanos e a resultante subsunção e controle do processo produtivo e do trabalho em benefício de grandes corporações e latifundiários.

"Por ser dotado da razão, o ser humano é, ao contrário de outros seres vivos, capaz de refletir sobre as causas e conseqüências de suas ações e, desta forma, sobre sua identidade, sua posição e responsabilidade no mundo e sobre o sentido da vida. Essa capacidade de reflexão e auto-reflexão define a existência humana. A reflexão é o conflito com a natureza interna e externa, com opiniões e experiências próprias e de outros (...) Por isso, o resultado da reflexão é também emancipação, ou seja, libertação do indivíduo da dependência social, política e espiritual e a conquista da autonomia livre de preconceito" (TISCHLER, 1998: 232).

De acordo com essa compreensão, uma transformação tecnológica, através do uso da agroecologia como ponto de partida para uma mudança social, precisa estar associada à transformação das relações de dominação no meio rural. E isso, de tal maneira que as experiências concretas dos agricultores com a tecnologia e a sua organização cooperativa possam conduzir, em sua capacidade de desvelamento de contradições, à tomada de consciência da opressão existente, à identificação de responsáveis e possíveis aliados, ao fim do isolamento e à solidariedade. "O processo de reflexão crítica, que por meio da apropriação da esfera objetiva das relações socialmente determinantes constitui o sujeito, é a condição para que da "classe em si" possa surgir a "classe para si"" (SZÉLL, 1984: 37-38).

A tarefa de possibilitar tamanho processo de reflexão social através da construção de tecnologias agrícolas, obviamente, não pode ser limitada ou reduzida aos pesquisadores das ciências naturais, como os defensores da modernização capitalista parecem estar convencidos, com base numa suposta "objetividade dos fatos". "É evidente que a "objetividade dos fatos" existe em áreas das ciências naturais como a física e a química, mas jamais nas ciências sociais. O essencial de fenômenos e estruturas sociais é precisamente o fato de serem históricos e, com isso, modificáveis" (Idem, 1989: 8). Mudanças no desenvolvimento tecnológico dominante carecem, portanto, do acompanhamento de assistentes e animadores no processo de reflexão, atuando junto ao desenvolvimento de tecnologias[5]pois os agricultores, por um lado, carecem de conhecimento científico e, por outro, estão perdendo gradativamente seu conhecimento tradicional.

É decisivo, entretanto, que, em primeira linha, os seres humanos subsumidos pelo processo produtivo dominante estejam interessados e participantes do processo de reflexão crítica, de forma que não sejam constituídas e reproduzidas novas estruturas de dependência[6]em função da ainda existente divisão do trabalho entre extensionistas rurais e agricultores.

"Quem melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor do que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão por acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela" (FREIRE, 1987: 31).

Nesse sentido, o conhecimento especializado somente pode ser assimilado pelos agricultores através de uma ação dialógica e combinado ao seu conhecimento tradicional, de maneira que, através de experiências comuns de atingidos em grupos, possam ser desenvolvidas, endogenamente, tecnologias novas, progressistas, socialmente e ecologicamente apropriadas. Esse processo de desenvolvimento participativo pode ser compreendido também como uma conquista de espaço social pelos oprimidos, através do qual eles passam a ter condições de compreender sua opressão internalizada e superá-la.

"O grande problema está em como poderão os "oprimidos", que "hospedam" o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram "hospedeiros" do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora" (Idem: 32).

A tecnologia não é neutra. A sua forma e difusão são conseqüências de um processo social fundamentado em relações de poder associadas a interesses econômicos e sócio-culturais. Por isso, entendemos que a questão da tecnologia agrícola não pode, de forma alguma, ser vista como solução isolada e sim como um problema sócio-político, imbricado com as relações de produção dominantes. Uma tecnologia abrange métodos de produção e organização determinados ao modo de produção dominante. Assim, no capitalismo, também na agricultura, a opção por determinadas tecnologias está determinada pelas relações de produção dominantes e ela não pode ser simplesmente separada dos objetivos para a qual foi desenvolvida, precisamente o aumento da produtividade e o controle social como objetivações cotidianas da divisão do trabalho (BAHR, 1970).

A adoção de tecnologias, em seu processo de desenvolvimento histórico, portanto, está determinada pelas relações sociais e pelas estruturas de poder da sociedade. Esses fatores determinam também a quem a tecnologia, em última instância, serve.

Especialmente importante é que, no capitalismo avançado, a ciência e a tecnologia, já desde a pesquisa básica, não podem ser tratadas de forma neutra ou com base em princípios transcendentais. Ao contrário, a ciência e a tecnologia refletem um determinado momento do desenvolvimento das forças produtivas, de tal maneira que são influenciadas pelas relações de produção vigentes na sociedade. Assim, é evidente que "qualquer tentativa de modificar as relações de produção é frustrada se a natureza das forças produtivas (e não somente sua utilização) deixar de ser modificada" (GORZ, 1973: 94-95).

A tecnologia, portanto, é um resultado e não a propulsora do desenvolvimento das forças produtivas e a relação dos seres humanos com a natureza reflete as relações dos seres humanos entre si. A destruição ambiental, o prejuízo à saúde, bem como a exploração e a exclusão social de seres humanos são sinais da contradição central da sociedade capitalista, na qual o desenvolvimento das forças produtivas permite que a produção seja realizada socialmente, enquanto os meios de produção e seus resultados são apropriados de forma privada. Nesse sentido, um progresso técnico para além das determinações institucionais da economia de mercado capitalista parece inimaginável, pois na luta pela concorrência o poder é mais forte que a racionalidade, embora ambos os aspectos estejam permanentemente associados.

Como Marx (1983) demonstrou com base no caso da industrialização, novas relações sociais somente surgem se as condições para a sua existência estiverem favoráveis. Mas, por outro lado, o desenvolvimento tecnológico, como resultado do desenvolvimento das forças produtivas, depende das novas relações de produção. Um pequeno agricultor, que em função do desenvolvimento das forças produtivas passa a ser forçado a seguir o mais "moderno estágio da tecnologia", com grande probabilidade será excluído, passando a ser um empregado rural, da mesma forma que os artesãos, historicamente, deixaram de exercer sua posição ativa no processo produtivo para atuar passivamente como assalariados, abrindo o caminho para a continuidade do desenvolvimento das forças produtivas. Contudo: embora os agricultores, com a ajuda da tecnologia, sejam subsumidos pelas relações de dominação na sociedade capitalista, por outro lado, ainda lhes resta uma margem de manobra, a qual permite que eles possam se movimentar, refletir como sujeitos políticos ativos e reagir. "Nesse contexto, os pequenos produtores não são vistos apenas como atores sociais passivos e dominados; eles possuem ainda um específico espaço de reflexão e ação que, potencialmente, lhes permite a consciência sobre a mutabilidade das relações de dominação existentes" (WOLFF, 1992: 82-83).

No modo de produção capitalista, o conhecimento não está apenas associado à produção; ele representa, ao mesmo tempo, um elemento das relações de poder na sociedade. Assim, a tecnologia é também uma relação social e não se reduz a instrumentos materiais. A tecnologia é constituída especialmente de conhecimento, métodos e processos de organização da produção. Tendo em vista que a transferência tecnológica necessariamente representa uma relação de dominação e a construção de conhecimento autônomo somente é possível através da sua apropriação, a questão do poder está intrinsecamente presente no debate acerca da inovação tecnológica[7]A tecnologia é um produto social da sociedade e seu uso pode contribuir não somente para a manutenção, mas também para a mudança das relações de produção. Portanto, no capitalismo, não são apenas os meios de produção que se encontram em processo de mudança contínua e muitas vezes revolucionária. Também as relações dos seres humanos entre si e com os meios de produção podem ser modificadas, constituindo um potencial processo de educação e de aprendizagem.

Referências:

ALTIERI, M. (2001): Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre, UFRGS.

ANDRIOLI, A. I. (2007). Biosoja versus Gensoja: Eine Studie über Technik und Landwirtschaft im nordwestlichen Grenzgebiet des Bundeslandes Rio Grande do Sul/Brasilien. Frankfurt: Peter Lang.

BAHR, H.-D. (1970): Kritik der "politischen Technologie". Eine Auseinandersetzung mit Herbert Marcuse und Jürgen Habermas. Frankfurt am Main: Europäische Verlagsanstalt.

BLOCH, E. (1985): Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt am Main: Suhrkamp. BOURDIEU, P. (1983): Ökonomisches Kapital, Soziales Kapital, Kulturelles Kapital. In: Kreckel, R. (Hrsg.). "Soziale Ungleichheiten". Soziale Welt, Sonderband II. Göttingen: Otto Schwarz.

CARVALHO, H. M. (1982): Tecnologia socialmente apropriada: muito além da questão semântica.

Curitiba: IAPAR. CAVAILHES, J. Les reponses marxistes à la question agraire. Histoire des idées et des faits. Paris: INRA/ENSSAA, 1981.

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KUSIN, A. (1969): Karl Marx und Probleme der Technik. Leipzig: VEB Fachbuchverlag.

MARCUSE, H. (1979): Kultur und Gesellschaft 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

MARX, K. (1983): Das Kapital. Band I. MEW 23. Berlin: Dietz Verlag.

POPPINGA, O. (1975): Bauern und Politik. Frankfurt am Main: Europäische Verlsgsanstalt.

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SZÉLL, G. (1982): Technologie und Selbstverwaltung. In: Gikas, M./Hartmann, M./Schmieder, A./Széll, G. (Hrsg). Technologie, Arbeitsorganisation und gesellschaftliches Bewußtsein. Osnabrück: Universität Osnabrück.

SZÉLL, G. (1984): Bildungsarbeit als Forschungsprozeß. Anmerkungen zur Übertragbarkeit der Freireschen Pädagogik. München: Hueber.

SZÉLL, G. (1989): Neue Technologien und alte Technokratiedebatte. Anmerkungen zum Verhältnis von Technisierung, Sachzwang, Ermessensspielraum und Bürgerprotest. Osnabrück: Universität Osnabrück.

TISCHLER, K. (1998): Betriebliches Umwelmanegement als Lernprozess. Theorie und Praxis organisationsorientierter Umweltbildung als Beitrag zur Steigerung der Fortschrittsfähigkeit der Unternehmung. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, New York, Paris, Wien: Peter Lang (Dissertation an der Universität Osnabrück, 1998).

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WOLFF, L. A. (1992): Ecofarming im Spannungsfeld zwischen Technologie und Politik. Saarbrücken: Breitenbach (Dissertation an der Universität Giessen, 1991).

 

 

Autor:

Antônio Inácio Andrioli

andrioli[arroba]espacoacademico.com.br

Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück (Alemanha). Professor do Mestrado em Educação nas Ciências da Unijuí (Rio Grande do Sul) e do Instituto de Sociologia da Universidade Johannes Kepler de Linz (Áustria). Autor, entre outros, do livro Transgênicos: as sementes do mal. A silenciosa contaminação de solos e alimentos, editado em 2008 pela Editora Expressão Popular. Maiores informações sobre o autor estão disponíveis no site www.andrioli.com.br


[1] Conforme GUZMÁN, 2001.

[2] Conforme CARVALHO, 1982.

[3] No sentido de antecipação concreta de uma realidade possível. Conforme BLOCH, 1985.

[4] Conforme FREIRE, 1987.

[5] Conforme FREIRE, 1992.

[6] "Decisivo para tal processo de mudança é que as mudanças não venham propostas de cima, de maneira autoritária - mesmo que sejam introduzidas com vistas ao bem-estar de todos os atores sociais. A humanização, se iniciada e colocada em curso por outros que não sejam os próprios atingidos - mesmo que se trate dos mais bem intencionados cientistas! - em última instância, somente estabiliza relações de dominação. Pois, exatamente os cientistas, os quais não são eles mesmos atingidos por determinadas relações de trabalho, passam a representar os seus próprios interesses ou os interesses daqueles que os financiaram e colocaram o projeto em execução" (SZÉLL, 1981: 8).

[7] Conforme FREIRE, 1987.



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