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No discurso do Pai Nosso, o sujeito religioso coletivo "Nós" renuncia explicitamente a ter vontade própria, ao pedir ao deus "Pai" que "seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu". Ao mesmo tempo, reconhece que o deus do mal, o demônio, pode levá-lo a fazer coisas contra a sua vontade, ao pedir: "e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal"
Até o Concílio Vaticano II, no início da década de 60, a fórmula no Pai Nosso era: "Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores". Essa fórmula original está ligada ao costume da Antigüidade, segundo o qual aquele que não pagava sua dívida podia ser transformado em escravo pelo credor. Como esse costume não existe mais na maior parte das sociedades contemporâneas, passando a serem outras as condições de produção do discurso do Pai Nosso, a Igreja promoveu a mudança na fórmula para: "Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido." Entretanto, a mudança de sentido desse discurso já havia ocorrido desde o momento em que mudaram as relações sociais históricas do escravismo da Antiguidade. Embora houvesse permanecido o termo "dívidas", ele veio sofrendo deslizamentos de sentido até chegar ao significado atual de pecado e de ofensas morais. O que a Igreja fez foi apenas atualizar a expressão lingüística, adequando-a ao novo sentido, estabelecido pelas novas condições histórico-sociais de produção desse discurso.
Com isso, houve uma mudança no Sujeito Universal da formação discursiva do Pai Nosso. O Sujeito Universal equivale, em cada discurso, ao que é pressuposto como sendo conhecido e aceito por todos, estabelecendo a realidade do mundo das coisas e de suas relações, como algo evidente e do senso comum. Esses conhecimentos do Sujeito Universal estão presentes em qualquer discurso, apesar de não fazerem parte do enunciado. Eles aparecem como pré-construídos, por meio de discursos transversos, como sendo algo supostamente já dito e aceito antes, em outra enunciação. Assim, na primeira fórmula do discurso do Pai Nosso, supõe-se como sendo algo que todo mundo sabe e qualquer um pode ver: quem não paga suas dívidas pode ser transformado em escravo. Tanto isso é evidente que o locutor pede ao "Pai nosso" que lhe perdoe as dívidas. Se perdoar as dívidas fosse o costume, algo do senso comum, não seria preciso pedir perdão por isso ao "Pai nosso", como não se pede, por exemplo, que nos perdoe por termos contraído matrimônio e gerado filhos. Não se pede o perdão dos deuses para algo que é costume e senso comum de uma sociedade. Ao contrário, roga-se o perdão dos deuses exatamente para os comportamentos que contrariam os costumes e usos sociais. Perdoar dívidas, ainda hoje, não é prática social comum.
A mudança no discurso do Pai Nosso, introduzida pela Igreja, ratifica o Sujeito Universal que já integrava o funcionamento desse discurso, com o seguinte conhecimento evidente e óbvio: como todo mundo sabe e qualquer um pode ver, quem ofende moralmente a outro pode sofrer deste uma revanche. O enunciador, antes, pedia ao deus que perdoasse, contabilmente, suas dívidas, a fim de que não fosse transformado num escravo do demônio, na mesma medida com que ele próprio perdoava os seus devedores financeiros, não os transformando em escravos. Depois, com os históricos deslizamentos de sentido, passou a ser um enunciador que pede ao deus que perdoe suas ofensas, os pecados, na mesma medida com que ele próprio perdoa os que o têm ofendido. Em vez da dívida financeira, o que é referido agora são, principalmente, ofensas morais; em vez da não-escravidão, o que é referido agora é apenas uma atitude de benevolência e de não-ressentimento. Um sujeito histórico-social, que prometia não escravizar o devedor inadimplente, é substituído por outro, marcado pelas novas condições histórico-sociais de produção, que promete ser benevolente e não ter ressentimento para com aquele que o ofendeu moralmente. Vemos, assim, que as mudanças históricas nas relações sociais moldam novas relações entre os homens e seus deuses.
Portanto, a formação discursiva do Pai Nosso, isto é, o que pode e deve ser dito nesse discurso, teve redefinidas suas fronteiras, excluindo a escravidão por dívidas financeiras e incluindo o pecado e as ofensas morais. Dessa forma, esse discurso é adaptado às suas novas condições histórico-sociais de produção, permanecendo o mesmo e sendo já outro. Este é um exemplo de como as formações discursivas têm suas fronteiras instáveis, que podem ir sendo modificadas, ao longo de sucessivas formações sociais, assegurando a permanência das instituições em uma sociedade, durante séculos.
Toda formação social, num momento dado, tem seu universo discursivo, isto é, "um conjunto de formulações discursivas de todos os tipos que coexistem, ou melhor, interagem numa conjuntura". (CARDOSO, 1999, p. 63). Formações discursivas que se encontram em relação de concorrência, em sentido amplo, e se delimitam por uma posição enunciativa, em uma dada região, formam um campo discursivo. Essa relação de concorrência inclui o confronto e a aliança. Cada formação discursiva estabelece relações de cooperação ou de oposição com outras. A formação discursiva do Pai Nosso mantém uma estreita cooperação com a formação discursiva do lugar de filho, na situação de enunciação filho-pai, na instituição familiar. A autoridade e o poder, característicos do lugar de pai na cultura do Ocidente, fazem parte do lugar de deus, na situação de enunciação crente-deus, nas religiões cristãs:
"Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome,"
"Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu"
Assim como o pai é responsável pela subsistência do filho, pelo menos até certa idade, também ao deus-pai é atribuído o papel de provedor da manutenção física do cristão:
"O pão nosso de cada dia nos daí hoje."
Na relação familiar filho-pai, a formação discursiva do lugar de filho apresenta a realização de acordos que envolvem certos comportamentos e atitudes por parte do filho, seguidos de recompensas por parte do pai. No discurso do Pai Nosso, o lugar de crente propõe acordo semelhante ao lugar de deus:
"Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido"
Ou seja, o crente propõe ter um comportamento de perdão em relação às pessoas que o ofenderem para, em troca, obter do deus-pai o mesmo comportamento, em relação ao próprio crente e seus pecados.
Finalmente, na situação familiar de enunciação filho-pai, a formação discursiva do lugar de filho inclui a confiança em que o pai o protegerá de todos os perigos. Essa mesma confiança aparece na formação discursiva do Pai Nosso, através da súplica:
"Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal."
Vemos, portanto, uma estreita cooperação entre a formação discursiva do lugar de crente cristão, em sua relação com o lugar de deus, e a formação discursiva familiar do lugar de filho, em sua relação com o lugar de pai. Como a relação filho-pai é anterior à relação crente-deus, tanto na história social, como na história de assujeitamento do indivíduo, podemos dizer que a formação discursiva do lugar de crente, no discurso do Pai Nosso, se filia, numa reativação de memória sócio-histórica de identificação, à formação discursiva do lugar de filho. (LIMA, 1999, p. 269).
Por outro lado, a relação filho-pai, apesar das mudanças sofridas, apresenta, ainda hoje, características que vêm da Antiguidade: poder, proteção, força, autoridade e legitimidade para punir, entre outras. Essa relativa estabilidade da formação discursiva do lugar de filho, em relação ao pai, tem fornecido idêntica estabilidade relativa à formação discursiva do lugar de crente cristão, em relação ao lugar de deus, no discurso do Pai Nosso. Esse é um dos motivos por que esse discurso vem sendo aceito pela maioria das religiões cristãs, durante séculos.
Portanto, a formação discursiva do Pai Nosso identifica-se, por uma reativação de memória, com a formação discursiva familiar do lugar de filho, em sua relação com o lugar de pai. Na hipótese de que os avanços científicos em reprodução humana levem ao estabelecimento de novas relações familiares, com alteração profunda ou eliminação da situação social de enunciação do lugar de filho com o lugar de pai, é provável que a formação discursiva do Pai Nosso sofra novos deslizamentos de sentido, exigindo novas alterações em sua fórmula ou perdendo sua estabilidade relativa e desaparecendo.
A ideologia pode ser vista como a concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações de vida individuais e coletivas. (SANTOS, 2000, p. 20). Nessa perspectiva, podemos dizer que a ideologia religiosa, isto é, a concepção de mundo que aparece implicitamente no discurso do Pai Nosso é a de uma grande extensão de espaço físico, cujo proprietário, único e absoluto, é um deus, pai de todos os cristãos. O núcleo central dessa ideologia é transplantar a relação familiar filho-pai, incluindo o direito aos bens do pai pelo filho, para a relação crente-deus. O mundo das coisas é uma grande propriedade paterna a ser compartilhada pelo filho, conforme seu comportamento.
Quanto mais consolidada, unitária e coerente a concepção ideológica de mundo, maior sua capacidade de difundir-se e tornar-se referência para a ação e para a organização da vontade coletiva. A ideologia religiosa, no discurso do Pai Nosso, está identificada com uma relação vivida por quase todos os indivíduos, a de filho-pai, uma das primeiras vivências da criança, em sua fase inicial de assujeitamento, quando é extremamente vulnerável, indefesa e dependente. A identificação da formação discursiva crente-deus, por uma retomada de memória, com a formação discursiva filho-pai, torna a ideologia religiosa, no discurso do Pai Nosso, consolidada, unitária e coerente.
A ideologia da relação filho-pai, retomada na relação crente-deus, no discurso do Pai Nosso, tem sido apropriada pelas classes superiores, nas formações sociais com modo de produção capitalista dominante. Uma massa de assalariados, dispondo apenas da força de trabalho, como mercadoria de venda para garantir a própria subsistência, e um grupo de capitalistas, que compra essa força de trabalho e é dono dos meios de produção, apresentam-se como duas classes em luta aberta ou velada. Uma formação discursiva do lugar de crente que enfatize o poder, a autoridade legítima, a proteção e o provimento da subsistência física, como algo atribuído ao lugar de deus, é conveniente às classes dominantes, porque dissimula a exploração que fazem dos trabalhadores. No discurso do Pai Nosso, o pedido:
"O pão nosso de cada dia nos dai hoje"
coloca o acesso aos meios de subsistência física dos homens como resultado da vontade do "Pai Nosso", e não como resultado da relação de produção assalariada, entre capitalista e trabalhador. Colocar o "pão nosso de cada dia" como uma dádiva, que se pede ao "Pai", dissimula o baixo salário e o desemprego, que diminuem ou retiram esse "pão", e que são contradições inerentes ao sistema capitalista. Tal dissimulação facilita a realização do projeto político das classes dominantes.
Além disso, para exercer sua influência, a ideologia necessita consolidar ampla base social e precisa apresentar-se como representante de interesses universais. (SANTOS, 2000, p. 20). Ora, pedir o acesso aos meios de subsistência, como o "pão nosso de cada dia", à vontade do deus "Pai" significa apresentar-se como um sujeito representante e líder deles, isto é, de todos os homens, como porta-voz de um interesse universal, a sobrevivência física. O pronome "Nós" estabelece um sujeito que fala por si e por "eles", assumindo um papel de liderança universal. (PAYER, 1995, p. 26). A ampla base social dessa ideologia já está consolidada, nos países do Ocidente, pela tradição cultural cristã. Assim, o discurso do Pai Nosso exerce uma forte influência ideológica.
Entretanto, as ideologias não estão prontas e acabadas para, só depois, entrarem em luta pelo controle dos Aparelhos Ideológicos. Ao contrário, elas se constituem, são constituídas e se tornam dominantes, ou não, na própria maneira como são instalados esses Aparelhos. Isso significa que cada instituição, longe de ser um domínio pacífico desta ou daquela ideologia, é palco de uma luta interna incessante, pela hegemonia. Portanto, o discurso do Pai Nosso pode ser também um campo de batalha ideológica, dividindo-se em diferentes posições de sujeito ou redefinindo sua formação discursiva. Uma apropriação ideológica desse discurso religioso pelas classes trabalhadoras pode, por exemplo, enfatizar o fato de os homens serem iguais, uma vez que todos são irmãos, pois filhos do mesmo "Pai Nosso". Isso desqualifica os capitalistas, que retêm o capital e os meios de produção, contra a miséria dos trabalhadores, o que leva à explicitação e ao favorecimento da luta de classes e do projeto político das classes populares.
A apropriação do discurso do Pai Nosso, pelas classes dominantes ou pelos trabalhadores, vai determinar diferentes formações discursivas, a serviço de diferentes projetos políticos. Essa apropriação está relacionada com a Formação Ideológica católica, isto é, a luta interna existente hoje no Aparelho Ideológico da Igreja católica no Brasil, dividida entre a Teologia da Libertação, de um lado, e movimentos carismáticos, ligados à Teologia Oficial, de outro.
Segundo alguns teóricos da psicanálise, o discurso religioso realiza o simbólico do imaginário. (FINK, 1998, p. 176). Ou seja, o discurso religioso simboliza, em textos, imagens dos deuses. No discurso do Pai Nosso, o deus é construído à imagem e semelhança do lugar de pai de família e simbolizado por: "Pai". O traço de poder da imagem do pai de família é simbolizado discursivamente por "Santificado seja o vosso o nome" e por "Seja feita a vossa vontade, assim na terra, como no céu". O traço de provedor de alimento físico para os filhos, da imagem de pai de família, é simbolizado discursivamente por "O pão nosso de cada dia nos daí hoje". O traço de juiz punidor legítimo, com quem se pode barganhar comportamentos por benefícios, da imagem do pai de família, é simbolizado discursivamente por: "Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido". Finalmente, o traço de protetor dos filhos, da imagem de pai de família, é simbolizado discursivamente por: "Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal". Vemos assim que todo o discurso do Pai Nosso não passa da simbolização de uma imagem do deus, feita à semelhança da imagem de um pai de família, na tradição cultural do Ocidente.
Observa-se, inclusive, que características marcantes do lugar de mãe de família, como o carinho, o amor sem exigir nada em troca, a intimidade, não fazem parte da imagem do deus, no discurso do Pai Nosso. Não há nenhuma expressão de carinho na interação crente-deus, como querido, amado, nós te amamos, etc. A relação crente-deus é nitidamente contratual: "perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", sem qualquer pedido de concessão fora dessa cláusula, como o de dar um jeitinho ou o de quebrar o galho. O tratamento do lugar de crente em relação ao lugar de deus é estritamente formal, sem qualquer marca de intimidade ou mesmo de coloquialidade. A saudação inicial é solene, muito além da formalidade de um Ilmo. Sr. Ministro:
Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu".
Esse tratamento cerimonioso estabelece uma grande distância entre os lugares de crente e de deus, sem nenhuma marca de intimidade entre ambos. Assim, na imagem do deus, simbolizada discursivamente no Pai Nosso, estão ausentes os traços da imagem da mãe de família.
Os discursos não coincidem com o Real, mas deste contêm elementos. (FINK, 1998, p. 176). Até aqui, pudemos observar, na oração em foco, que a relação social entre o lugar de crente e a do lugar de deus faz parte da realidade, do mundo das coisas. Essa realidade é percebida, é vista, conforme a imagem da relação filho-pai, simbolizada discursivamente na oração do Pai Nosso. Dizendo de outra forma, o discurso simboliza em palavras uma imagem, uma formação imaginária, estabelecendo, no Sujeito Universal, uma realidade evidente, que todos conhecem e qualquer um pode ver. O discurso do Pai Nosso simboliza a imagem da relação filho-pai como sendo a relação crente-deus, na realidade do mundo das coisas. O acesso do homem à realidade empírica se dá através de imagens ou representações e estas são simbolizadas em discursos. Temos, assim, o percurso: Real (inacessível) > Imagem (do pai de família como sendo a imagem do deus) > Símbolo (discurso do Pai Nosso) Em resumo: Real > Imaginário > Simbólico.
O estabelecimento do deus, no discurso do Pai Nosso, possibilita e fixa o que é permitido ao homem:
a) Adorar e submeter-se ao deus: "Pai nosso", "santificado seja o vosso nome" e "seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu".
b) Pedir favores a esse deus: "O pão nosso de cada dia nos daí hoje", "não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal"
c) Prometer determinados comportamentos sociais em troca de recompensas do deus: "Perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
Um discurso que estabelece a não-existência de deuses não possibilita nem fixa que tudo é permitido ao homem. Isso, pelo simples motivo de que não existe quem proíba ou quem permita qualquer coisa. A "natureza" ou "matéria", conforme seu sentido no discurso científico, impõe restrições à ação humana, mas não proibições ou permissões, no sentido moral do livre arbítrio. A natureza restringe, por exemplo, o tempo que o homem pode ficar submerso na água, sem aparelhos, mas não o proíbe de fazê-lo, no sentido de que ele possa fazer uma escolha sobre quanto tempo deseja ficar submerso. Por sua vez, os comportamentos sociais, como matar/não matar e roubar/não roubar, sempre se apresentam como possibilidades de escolha moral do sujeito, apesar dos aparelhos ideológicos e dos aparelhos de repressão existentes. O estabelecimento dos deuses, nos discursos religiosos, funciona, portanto, como suporte para os sistemas ideológicos de proibições e permissões para o comportamento social dos sujeitos. Sem um deus, nada pode ser permitido nem proibido aos homens. (LACAN, 1985, p. 165). Nessa perspectiva, o discurso do Pai Nosso estabelece um deus à imagem e semelhança do lugar social de pai, exatamente aquele que proíbe/permite comportamentos sociais, marcando definitivamente a fase inicial de assujeitamento dos indivíduos.
O pensamento simbólico manifesta-se também nos discursos religiosos e é um tipo de conhecimento, em oposição a outros, como o científico e o do senso comum: "As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser." (ELIADE, 1996, p. 9) As imagens e os símbolos veiculam, prolongam e substituem os conceitos. Traduzir o lugar de deus, no discurso do Pai Nosso, nos termos concretos da imagem do pai de família, não esgota a realidade que esse discurso expressa. Da mesma forma que estabelecer as origens da geometria na medição das terras, após as enchentes do Nilo, não esgota a realidade da própria geometria. O discurso do Pai Nosso fornece uma explicação simbólica da origem do Universo, como criação de um deus: "Pai nosso que estais no céu". Fornece também um lugar privilegiado ao homem nesse universo, como filho desse "Pai nosso" criador. Diante das tempestades, vulcões e doenças, o discurso do Pai Nosso traz o conforto do poder do deus, acima da força dos elementos: "Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu". Também inspira confiança na providência divina, para a subsistência física: "O pão nosso de cada dia nos daí hoje". Contra todos os riscos da frágil vida humana, confia-se na segurança da proteção divina: "livrai-nos do mal". E finalmente, através de um pacto, "perdoai nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", alcança-se a vitória sobre a morte: "venha a nós o vosso reino". Portanto, a formação discursiva do Pai Nosso, através de uma retomada histórica de identidade com a formação discursiva do lugar de filho, em relação com o de pai, estabelece, no Sujeito Universal, toda uma cosmologia, uma visão simbólica do mundo e do homem, em que este aparece protegido contra as forças da natureza e vencedor da morte.
No Sujeito Universal da formação discursiva do Pai Nosso, é considerado evidente, isto é, que todos sabem e qualquer um pode ver: deus criou o Universo, esse deus é "Pai nosso", garante nossa subsistência, nos protege e com ele podemos fazer um pacto que nos garantirá a vitória sobre a morte. Portanto, o discurso do Pai Nosso simboliza discursivamente a relação crente-deus por meio da imagem da relação filho-pai, para, assim, funcionar como um conhecimento simbólico do universo e do próprio homem. O caráter de pensamento simbólico do discurso do Pai Nosso está marcado pela sua filiação religiosa e institucional. Esse texto é compartilhado pelas religiões cristãs e os discursos religiosos caracterizam-se exatamente por funcionarem como um conhecimento simbólico, estabelecendo uma unidade primordial entre o homem e o cosmos, abolindo oposições e polaridades:
As imagens são por suas próprias estruturas, multivalentes. Se o espírito utiliza as Imagens para captar a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta de maneira contraditória, e conseqüentemente não poderia ser expressada por conceitos. (ELIADE, 1996, p. 11)
A imagem da relação filho-pai, num processo de multivalência, é simbolizada discursivamente como a imagem da relação crente-deus. O processo, no entanto, não pára aí. Ao estabelecer essa multivalência de uma imagem, o discurso do Pai Nosso atinge seu objetivo institucional de discurso religioso, que é o de fornecer uma cosmogonia unificada, isto é, uma imagem homem-universo, para uma realidade contraditória. Esse tem sido o fenômeno religioso, com seu pensamento simbólico, manifestado na história e através da história, somente possível por imagens nocionais, nunca por conceitos.
No discurso do Pai Nosso, a imagem multivalente tem três planos de referência: a relação filho-pai, a relação crente-deus e a relação homem-cosmos. É essa imagem tri-valente que é o verdadeiro. Ela não pode ser reduzida a qualquer um dos seus três planos referenciais, sob pena de ser anulada como instrumento de conhecimento. "No plano da dialética da Imagem, toda redução exclusiva é uma aberração". (ELIADE, 1995, p. 12). O discurso religioso funciona por meio dessa imaginação, isto é, condensação e deslocamento de imagens, e não pela linguagem analítica, que rejeita o irracional, o pânico, o extraordinário, o sublime, o marginal, como se fossem insanidades e superstições, supostamente abolidas pelo progresso racional do homem,.
A condensação e o deslocamento de imagens resultam na metáfora e na metonímia discursivas, respectivamente. Imaginação não significa criação arbitrária e, sim, imitação, reprodução. O importante nessas imagens é que elas expressam muito mais do que está dito no texto da oração: "Ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade; pois as Imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito." (ELIADE, 1996, p. 16). O discurso religioso, portanto, apresenta, além de suas condições histórico-sociais de produção, um funcionamento específico, próximo aos estados de sonho, de devaneio, da melancolia, do desprendimento, da contemplação estética, da evasão, etc., que transcendem à condição histórica de uma dada situação de enunciação. Esses estados fazem o homem vivenciar, consciente ou inconscientemente, vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico da enunciação. Escutar uma bela música, apaixonar-se, rezar, abrir um romance ou assistir a um espetáculo artístico fazem o homem sair do presente histórico imediato e reintegrar o presente eterno do amor e da religião, fazendo-o encontrar um outro ritmo temporal que, em todo o caso, não é o tempo histórico da enunciação. (ELIADE, 1996, p. 29).
Conforme a relação que se estabelece entre o enunciado e a situação, podemos ter planos de enunciação embreados ou não embreados. Enunciado embreado é o que contém embreantes, estando portanto relacionado à situação de enunciação. O enunciado não embreado é desprovido de embreantes e isolado da situação de enunciação, construindo um universo autônomo. Evidentemente, estes "têm um enunciador e um co-enunciador, e são produzidos em um momento e lugar particulares, mas apresentam-se como se estivessem desligados de sua situação de nunciação, sem relação com ela" (MAINGUENEAU, 2001, p. 114. Grifo do Autor.). No discurso do Pai Nosso, o enunciador é representado por "Nós" (= eu + eles), conforme já visto. O co-enunciador é referido por "Pai nosso" e tratado por vós, marcado pelos possessivos "vosso", "vossa" e pelas desinências número-pessoais dos verbos: "estais", "daí", "perdoai", "deixeis" e "livrai". A oração do Pai Nosso não apresenta qualquer identificação temporal e espacial da situação empírica de enunciação. Na expressão "o pão nosso de cada dia nos daí hoje", o termo hoje, à primeira vista, parece ser um embreante, uma vez que remete ao dia da situação de enunciação. Entretanto, como a oração do Pai Nosso, tomada em si mesma, é uma fórmula institucionalmente escrita para ser enunciada em qualquer dia, desvinculada de qualquer ritual com data específica, como o do Natal ou da Páscoa, vemos que se trata de um embreante genérico, referindo-se a qualquer dia em que for enunciada, e não a uma data específica. Para o co-enunciador, o "Pai Nosso", há um termo aparentemente embreante: "...que estais no céu". Normalmente, enunciador e co-enunciador compartilham o mesmo espaço ou cenário de enunciação. No entanto, o discurso religioso institui uma cosmologia autônoma em três níveis: num espaço superior estão os deuses positivos ou bons; na Terra, estão os homens; e, abaixo da terra, estão os deuses negativos ou maus. Uma das formas de comunicação entre os homens e os deuses positivos é a oração. A oração é, assim, uma situação de enunciação em que os homens falam, da Terra, com os deuses positivos, que estão em um nível espacial superior: "no céu". Vemos, portanto, que a dimensão espacial, na situação de enunciação do discurso do Pai Nosso, nada tem a ver com o espaço sócio-histórico, mas constitui um espaço cosmológico autônomo. O espaço do enunciador é a Terra e o espaço do co-enunciador "Pai nosso" é o "céu". O co-enunciador, enquanto um deus, compartilha ambos os espaços, mas o enunciador, enquanto homem, não compartilha o céu. A oração, isto é, a enunciação da fórmula do Pai Nosso, é possível porque se realiza no sentido homem-deus.
Portanto, os termos embreantes "céu" e "terra" não remetem diretamente ao espaço da situação histórico-social de enunciação por um crente concreto, mas a um universo autônomo, tridimensional, céu-terra-inferno, instituído pelo próprio discurso religioso e contendo o espaço-tempo físico da enunciação empírica. Observa-se que na expressão "não nos deixeis cair em tentação", o verbo "cair" sinaliza na direção do mundo subterrâneo: "cair", na terra, significa ir para baixo, estar mais próximo do espaço inferior, onde estão os deuses negativos ou maus, que podem fazer o homem "cair em tentação".
Na oração do Pai Nosso, estamos diante de um tempo mítico ou sagrado, que "é qualitativamente diferente do tempo profano, da contínua e irreversível duração, na qual está inserida nossa existência cotidiana e dessacralizada." (ELIADE, 1996, p. 53). O tempo das formas verbais, no discurso do Pai Nosso, é o presente: "estais", "perdoamos", "tem ofendido", presente do indicativo; "seja", "venha" e "seja", presente do subjuntivo; "dai", "perdoai", "deixeis", "livrai", imperativo que, num ato de fala performativo de súplica, torna-se presente. Mas não se trata aqui de um presente dêitico, que indicaria que os acontecimentos evocados ocorrem no momento da enunciação histórico-social. O tempo verbal presente remete aqui ao tempo da cosmologia do discurso religioso, isto é, à eternidade. Ao enunciar o discurso do Pai Nosso, o tempo comum, com duração, é abolido e o sujeito é mergulhado num tempo, por assim dizer, intemporal, em um instante sem duração. Os acontecimentos evocados: "estais no céu", "santificado seja o vosso nome", "venha a nós o vosso reino", etc., não se referem ao tempo histórico empírico da enunciação da fórmula por um crente, mas à eternidade: "Pai nosso que estais no céu [eternamente], santificado seja o vosso nome [eternamente], venha a nós o vosso reino [eternamente], seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu [eternamente]. O pão nosso de cada dia nos dai hoje [eternamente]" e assim por diante. Vemos agora que o "hoje" não remete apenas ao tempo histórico da enunciação da fórmula por um crente determinado, mas ao único tempo verbal possível na eternidade: o presente-eterno. Por isso, recitar a oração do Pai Nosso traz conseqüências para o sujeito que a recita e para aqueles que a ouvem, em nome dos quais o locutor fala. A enunciação do discurso do Pai Nosso projeta o sujeito e seus ouvintes num Grande Tempo, sem duração, e num Grande Espaço, sem dimensões, absorvendo e ultrapassando, em seu infinito-eterno, o pequeno lugar, com dimensões, e o curto tempo, com duração, do cotidiano. O tempo de toda uma vida individual humana não passa de um instante do Grande Tempo, com seu presente-eterno, sem duração.
O importante aqui é que o discurso religioso do Pai Nosso institui uma situação de enunciação cosmológica própria e inclui embreantes temporais e espaciais que o mantêm em relação com essa situação. O espaço dessa enunciação divide-se em três níveis: "céu", "terra" e inferno. O tempo é o presente da eternidade. Nessa perspectiva, toda existência cotidiana é precária, efêmera e ilusória, pois ela é apenas um ponto do infinito e um instante da eternidade, Dessa forma, o discurso do Pai Nosso incorpora a situação de enunciação histórica, em que um crente determinado repete sua fórmula, ao universo autônomo de sua situação de enunciação. Isto é conseguido através de sua forma dialógica, em que um enunciador, marcado em primeira pessoa, "nós", se dirige a um co-enunciador, marcado em segunda pessoa "vós", usando como embreantes os dêiticos espaciais "céu" e "terra" e os dêiticos temporais de um presente-eterno verbal, desvinculado de qualquer situação histórica. A realidade cotidiana é, assim, integrada numa Realidade Absoluta. Não se trata de negar ou ignorar a realidade cotidiana histórica, em favor de uma Realidade Absoluta. O discurso do Pai Nosso valoriza a existência empírica, desde que esta seja vista como parte de uma visão cosmológica Absoluta e vivida como um estágio para se chegar a esta. O próprio ato de enunciação do discurso do Pai Nosso é já uma vivência empírica da realidade cotidiana na perspectiva de uma Realidade Absoluta.
Os discursos criam mundos referenciais, estabelecendo, no entanto, um efeito de sentido inverso, isto é, para o sujeito, o mundo criado por seu discurso é anterior ao próprio discurso e a si mesmo. Para ele, é o discurso que deve adequar-se ao mundo referido, e não o inverso. O funcionamento especial desse discurso religioso consiste exatamente em criar um cosmos e nele transfigurar a situação espaço-tempo empírica, de sua enunciação. Dessa forma, o sujeito acredita que esse universo, criado pelo discurso do Pai Nosso, antecede sua própria enunciação, que a ele deve se adequar. Ao repetir a fórmula do discurso do Pai Nosso, o indivíduo é arrebatado em um sujeito, situado num espaço cosmológico, cujo aqui é o complexo "céu-terra" e cujo agora é a eternidade. A situação histórica de enunciação, com sua data e seu local específicos, não tem embreantes próprios nesse discurso. Ela não é negada ou ignorada, mas é dissolvida e absorvida como parte de uma situação de enunciação universal e eterna, como parte de uma realidade última, realidade estritamente metafísica, que só pode ser abordada pelo pensamento simbólico, presente no discurso do Pai Nosso. O local empírico da enunciação torna-se um ponto do espaço infinito e o tempo empírico da enunciação torna-se um momento da eternidade. O discurso do Pai Nosso faz seu sujeito transcender os limites de espaço, com extensão, e de tempo, com duração, próprios da vivência cotidiana histórica e individual. Enunciar esse discurso religioso equivale a dizer uma palavra mágica e tornar-se um super-sujeito.
Por isso, o pensamento simbólico tem feito parte da história dos homens até os dias de hoje. Nem mesmo o sucesso recente do pensamento científico, com seu racionalismo empírico, conseguiu eliminar ou diminuir a força do pensamento simbólico. No discurso do senso comum, o sujeito permanece mergulhado no tempo-espaço cotidiano; no discurso do pensamento artístico, o sujeito é levado a diferentes percepções do espaço-tempo; e no discurso científico, o sujeito é sempre restrito a disciplinas particulares, que focalizam áreas isoladas do mundo observacional. Só no discurso do pensamento simbólico, o sujeito tem uma visão global do homem e do cosmos, num espaço infinito e num tempo eterno, capaz de manter e absorver os espaços e os tempos dos outros tipos de conhecimento.
Em outras palavras, ao enunciar o discurso simbólico do Pai Nosso, o sujeito da enunciação vê alargarem-se os referenciais empírico-históricos de tempo e de espaço de sua própria enunciação, até os limites do infinito e do eterno, num plano sobre-humano e sobre-histórico. Os embreantes existentes no discurso o mantêm relacionado aos novos limites dessa situação cosmológica de enunciação. Ao mesmo tempo em que não apaga o lugar empírico da enunciação, - por exemplo, uma igreja, um jardim ou um quarto -, nem apaga o tempo histórico da enunciação, - por exemplo, 9h da manhã do dia 3 de outubro de 2002 -, o discurso do Pai Nosso dá-lhes um novo sentido: a igreja, o jardim ou o quarto torna-se um ponto do espaço infinito; e o "9h da manhã do dia 3 de outubro de 2002" torna-se um momento da eternidade. É a essa situação empírica, transfigurada em situação cosmológica de enunciação, que os embreantes "céu", "terra", "hoje" e o tempo presente-eterno dos verbos, mantêm o discurso relacionado. Podemos dizer, então, que o discurso do Pai Nosso realiza dois passos em seu funcionamento:
1. Transforma o lugar e o tempo histórico de sua própria enunciação em ponto do infinito e em momento do eterno, respectivamente;
2. Por meio de embreantes, mantém o discurso relacionado a essa nova situação de enunciação ampliada.
Dessa forma, o discurso do Pai Nosso apresenta-se como não embreado, isto é, não relacionado à situação empírico-histórica de sua enunciação. Ao mesmo tempo, porém, apresenta-se como um discurso embreado, isto é, relacionado à sua situação empírico-histórica de enunciação, considerada em sua nova condição ampliada de ponto do infinito e de momento do eterno. O aparente paradoxo resulta do funcionamento discursivo do Pai Nosso que, previamente, define as coordenadas espaço-temporais de todas as suas possíveis situações empírico-históricas de enunciação, tomando-as como pontos de um espaço infinito e como momentos de um tempo eterno. Esse funcionamento discursivo não apaga nem ignora a situação histórica de enunciação. Muito menos, constitui um "universo autônomo", (MAINGUENEAU, 2001, p. 114), independente dessa situação. Seu funcionamento é mais sutil e mais poderoso: ele, primeiro, transfigura o tempo-espaço dessa situação empírica de enunciação em parte de um eterno-infinito; depois, inclui embreantes que o mantêm relacionado a essa situação de enunciação modificada. Temos, portanto, um discurso que estabelece, antecipadamente, uma situação de enunciação, com limites máximos espaço-temporais, dentro dos quais todas as situações históricas de sua enunciação foram, são e serão incluídas. É a essa situação de enunciação, com limites máximos de tempo e espaço, que se mantém embreado, o que significa manter-se embreado a todas as possíveis situaçõe s empíricas de enunciação.
O discurso e sua situação de enunciação tornam-se assim um círculo vicioso e fechado: enunciar o discurso do Pai Nosso implica, necessariamente, ver o lugar e o tempo históricos da enunciação elevados a ponto e momento de um infinito-eterno, a que o discurso se mantém embreado. A chave que quebra o encanto mágico desse discurso só pode ser a recusa em considerar o espaço-tempo histórico da situação de enunciação como parte de um suposto infinito-eterno, tal como estabelece o Sujeito Universal do discurso do Pai Nosso. Em outros termos, o poder simbólico desse discurso consiste na identificação do espaço-tempo cotidiano da enunciação com o espaço-tempo infinito e eterno, a que se mantém embreado.
Por meio do pensamento simbólico, o homem alcança uma espécie de conhecimento mais absoluto do seu destino e da sua significação, dando sentido a uma situação-limite, isto é, sua relação com o cosmos. Existe uma lógica do símbolo, ou seja, certos grupos de símbolos se mostram coerentes, logicamente encadeados entre si – em suma, podemos formulá-los sistematicamente, traduzi-los em termos racionais. (ELIADE, 1996, p. 33)
O assujeitamento do indivíduo pelo sujeito do "Pai Nosso" manifesta-se, simultaneamente, em três posições: de filho, em relação ao pai: "Pai nosso..."; de crente, em relação ao deus, na medida em que o "Pai" interlocutor não é um pai humano, mas um superhomem: "estais no céu", "seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu", "livrai- nos do mal"; e de homem, em relação ao cosmos: "na terra como no céu", "livrai-nos do mal".
Na medida em que as formações sociais foram mudando, as condições de produção desse discurso também foram se modificando e, conseqüentmente, partes desse discurso foram sofrendo deslizamentos de sentido, até exigirem uma alteração em sua própria fórmula lingüística, substituindo "perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores", por "perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
A formação discursiva do Pai Nosso se estabelece em íntima cooperação com o discurso familiar da relação filho-pai. Traços do lugar de pai de família, como de poder, juiz, provedor de alimentos e protetor são também atribuídos pelo crente ao lugar de deus.
O discurso do Pai Nosso manifesta-se também como uma arena de luta ideológica. Enquanto coloca o acesso aos meios de subsistência, ao "pão nosso de cada dia", como uma dádiva do deus Pai, pode ser utilizado pelo projeto político da burguesia. Mas, enquanto coloca os homens como filhos do mesmo Pai, desautoriza a exploração dos trabalhadores e sua situação de miséria, podendo ser utilizado pelo projeto político das classes populares.
Finalmente, o discurso do Pai Nosso apresenta embreantes que o relacionam a uma situação de enunciação cosmológica, em vez de a uma situação de enunciação histórico-social. Seus dêiticos espaço-temporais se referem ao infinito e ao eterno. Para isso, não negam a situação empírica de enunciação, mas a transfiguram em ponto do infinito e em momento da eternidade.
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SANTOS, Aparecida de Fátima Tiradentes dos. Desigualdade social & dualidade Escolar: conhecimento e poder em Paulo Freire e Gramsci. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
Autor:
Odilon Pinto de Mesquita Filho
Professor de Lingüística no Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus-Ba. Doutorado em Lingüística pela Universidade Federal da Bahia. Autor do livro de ficção "Coisas da Vida" e de dois livros, abordando análise lingüística para o ensino fundamental e médio: "Usos do Português" e "Português no Vestibular"
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