O objetivo desse artigo é analisar aspectos da enunciação no discurso religioso do Pai Nosso, uma oração emblemática do cristianismo, supostamente proferida e ensinada por Jesus Cristo, conforme o relato dos evangelhos:
Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.
Sujeito e assujeitamento são noções centrais da Análise de Discurso. "Os indivíduos são "interpelados" em sujeitos-falantes (em sujeitos do seu discurso) pelas formações discursivas que representam "na linguagem" as formações ideológicas que lhes são correspondentes." (PÊCHEUX, 1997, p. 161). Com Freud, o sujeito deixa de ser um organismo, que se adapta e que se confunde com o indivíduo, para se tornar descentrado em relação a este. (LACAN, 1985. p. 16). O indivíduo só se torna sujeito, quando inserido numa situação histórico-social de enunciação, a partir de um determinado lugar e de uma determinada formação discursiva. Fora de qualquer situação social não existe um "puro" sujeito, mas apenas o indivíduo de uma espécie biológica.
No discurso do Pai Nosso, podemos distinguir sujeito lingüístico, sujeito da enunciação e sujeito religioso. (LIMA, 1999, p. 266). O sujeito lingüístico é dado por pronomes, na primeira pessoa plural: "nosso", "a nós", "nos", "nossas", e a desinência número-pessoa em "perdoaMOS".
A enunciação está marcada no enunciado e, por isso, o sentido de um enunciado é a representação de sua enunciação. (BRANDÃO, 1998, p. 98). O sujeito da enunciação apresenta-se em três instâncias: a do locutor, aquele que fala; a do enunciador, aquele que assume uma posição; e a do autor, aquele que se responsabiliza socialmente pelo dito. (PÊCHEUX, 1997, p. 214-5). No "Pai Nosso", o sujeito da enunciação também se manifesta por meio de pronomes de primeira pessoa, que o inserem em uma comunidade, a dos cristãos. O discurso do Pai Nosso é tomado aqui como uma oração ritual da Igreja católica. Por isso, o seu enunciador, enquanto repetidor de uma fórmula convencional, assume o seu pertencimento a uma igreja institucional. Ainda que a enunciação se faça num lugar deserto e o indivíduo ali esteja sozinho, o enunciador do Pai Nosso assume sempre estar inserido num cenário discursivo de comunidade cristã, de coletivo.
O pronome "Nós" equivale a Eu + Eles, e não a Eu + Tu, porque, o locutor fala em nome de duas ou mais pessoas, dirigindo-se a um deus enunciatário, referido por "Pai Nosso". A oração pode ser reescrita assim:
Pai MEU e DELES que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a MIM e a ELES o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão MEU e DELES de cada dia dai a MIM e a ELES hoje. Perdoai as ofensas MINHAS e DELES, assim como EU e ELES perdoamos a quem nos tem ofendido, não deixeis EU e ELES cair em tentação, mas livrai EU e ELES do mal.
O assujeitamento do sujeito discursivo a um coletivo, através do pronome "Nós", faz o locutor assumir um papel de liderança do eles, na relação com o "Pai". Isso tem reflexos na instância autor. O autor responsabiliza-se, diante da sociedade, pelo que diz o locutor e pela posição do enunciador de pertencer a um grupo cristão. O pronome "Nós", nesse discurso, confere ao locutor uma posição de líder de um coletivo, em sua fala com o "Pai", fazendo com que o autor assuma também a responsabilidade por tal posição de liderança.
Além do sujeito da enunciação, o sujeito discursivo apresenta-se também como Sujeito Universal, isto é, como fornecimento-imposição de uma realidade e seu sentido, enquanto mundo das coisas e das relações entre estas. No discurso religioso, esse Sujeito Universal religioso caracteriza-se por apresentar-se como sem vontade própria ou com vontade fraca, tornando-se freqüentemente um instrumento ou joguete dos deuses e demônios. (LIMA, 1999, p. 266) Na medida em que se estabelece a existência de deuses, bons e maus, o homem sempre aparece como criatura, em nível inferior a esses deuses, sendo presa fácil de seus planos ou simples caprichos. Isso pode ser observado, por exemplo, em relação aos deuses da Antiguidade, ao deus dos judeus, ao deus cristão e aos deuses do candomblé. Para que um deus, geralmente mau, não domine a sua vontade, o homem implora a ajuda de outro deus, geralmente bom.
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