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Trata-se de um objecto pessoal, o que o distingue radicalmente do telefone fixo partilhado por uma família, pelos colegas de trabalho, etc. Esta dimensão de objecto individual faz com que cada indivíduo adquira uma autonomia excepcional na gestão dos seus relacionamentos, sem qualquer tipo de negociação com parceiros de uso. Deste modo, o instrumento de comunicação móvel, portátil e pessoal confere uma dinâmica nova e inaudita ao processo de comunicação mediada, na qual se destaca a questão da individualização dos territórios pessoais e a personalização dos usos.
Trata-se de umobjecto multifuncional, que progressivamente tem vindo a adquirir funções para além das chamadas de voz. Das mensagens de texto, às fotos, vídeos em tempo real e ao acesso à Internet, passando pelos jogos ou pela simples calculadora, as funções são múltiplas e exploradas de forma diferenciada de acordo com o perfil do sujeito utilizador.
Do meu ponto de vista existe um quarta característica:
Trata-se de um dispositivo que expõe o sujeito em permanência à interacção, mesmo quando se desliga ou não se atende o sistema informa das chamadas não atendidas e quando desligados as operadores enviam uma mensagem informando que o nosso interlocutor nos tentou contactar, ou caso tenha caixa de voz poder-se-á deixar uma mensagem. Logo, a gestão da presença mediatizada por trocas telefónicas fica completamente alterada. Esta característica faz também com que sejam sistemas de vigilância do utilizador, ou seja, a flexibilidade de gestão pessoal e espacial da comunicação contémtambémo seu reverso.
São estas quatro características transversais – portabilidade, individualismo, multifuncionalidade e permanência – que fazem com que os modos de organização social e as práticas comunicacionais se transformem e que emerja a necessidade de análise e reflexão neste campo. Os usos dos dispositivos móveis devem ser interpretadosemrelação à questão damanutenção e produção de sistemas de relação.
Que representações têm os utilizadores dos dispositivos de comunicações móveis? São várias as representações desde acessório de moda, a instrumento de construção de redes de relacionamento, a dispositivo de vigilância. Trata-se de compreender em que medida um mesmo instrumento desencadeia comportamento e representações diversas na ecologia interaccional dos territórios, espacialmente, dos territórios urbanos onde uns se apresentam de forma ostentatória, outros «normais» e, ainda, de forma espacialmente contextualizada. Neste novo cenário surge a necessidade de gerir a localização espontânea: "Estou na rua tal." ou "Onde estás?" – e ver da importância da localização na dinâmica conversacional e na gestão dos relacionamento de quem está presencialmente no momento em que o contacto mediatizado com o outro distante se estabelece.
Uma das características dos processos comunicacionais mediados por dispositivos de comunicação móveis, quer sejam telemóveis ou outros equipamentos, como por exemplos os computadores portáteis interconectados por rede sem fios, é a deslocalização e ubiquidade dos interlocutores.
Onde quer que esteja está conectado, como se o corpo e os dispositivos de comunicação a distância se confundisseme fossem uma e a mesma coisa. Um corpo intercomunicante – o processo progressivo de miniaturização dos equipamentos temsido marcante na naturalização dos equipamentos como sinais de "maquilhagem" do corpo. Eu sou eu e os meus acessórios de vestuário, de gestão do tempo e de gestão da comunicação. Relieu (2002) estudou o papel da localização na conversação em telefone móvel e a importância do momento em que essa localização surge na conversação, para o desenrolar da respectiva conversação. As comunicações móveis trazem consigo essa especificidade de tornar incerta a identificação espacial dos locutores (Relieu,2002:44), contudo, por si só o pedido de localização do interlocutor ou a informação espontânea dessa localização não tem um efeito unívoco na conversação.
Para que esse efeito seja compreendido é necessário proceder à análise da situação de conversação no seu todo, no conteúdo e contexto do processo comunicacional em curso. Com a expansão dos dispositivos de comunicações nómadas o espaço público passou a ser povoados por novas modalidades de interacção conversacional/comunicacional em que se estabelecem relações com ausentes, com alguns impactos nos presentes, nomeadamente, dos toques mais ou menos estridentes dos telemóveis à interrupção brusca da conversação com o interlocutor presencial para dar audiência ao interlocutor invisível, o que faz comque se reconfiguremos modos de presença. Morel (2002) refere a existência de três níveis de tensão com a «ecologia» do espaço público provocados pelas comunicações móveis: uma primeira tensão é provocada pela interferência acústica como lugar, que poderá ser mais ou menos tensional consoante se está num bar ou, por exemplo, num espectáculo de teatro, música ou cinema e surge de forma abrupta o toque estridente do telemóvel. Um segundo nível de tensão é a relação com o espaço público.
«Discuter, envoyer des messages écrits de façonsynchrone/asynchrone. à des personnes absentes physiquement reconfigure les modes de présence, les capacités d"action et en somme, les interactions dans l"espacepublic.» (Morel,2002:51)
Uma terceira dimensão deve-se ao facto de se trazer para a espera pública o que era até então realizado na esfera privada, ou seja, o acto de telefonar, o que implica novas formas de partilha do espaço público. Quando o indivíduo usa os serviços móveis de comunicação, seja telefonar ou aceder a um serviço Internet ele sofre uma espécie de evasão cognitiva e social do espaço público, ou seja, suspende o seu eu num espaço imaterial relativamente autónomo que se sobrepõe aos relacionamentos no espaço público. Nestas circunstâncias nem sempre os comportamentos comunicacionais estão de acordo com as expectativas normativas e saber estar contextual do lugar. Contudo, os sujeitos tendencialmente adequam as suas práticas a esses contextos e àestrutura normativa subjacente ao lugar. Os estudos das trajectórias dos falantes ao telemóvel (Morel, 2002) mostram que existe uma tendência para que nessa circunstância os sujeitos se afastem das pessoas com quem estão presencialmente e, quando sozinhos, se aproximem de objectos do espaço públicos, como árvores, bancos, recantos e com este comportamento de "protecção" criem deliberadamente um espaço comunicacional dedicado que pode ser de duas naturezas (Morel, 2002:62-63): meramente virtual, imaginário, em que a pessoa se aliena do espaço social envolvente apesar de não estar a ser coadjuvada por elementos físicos ou, num segundo tipo, em que se utilizam elementos do espaço urbano como atractores comunicacinonais e que exercem o efeito de nichos nos quais o sujeito cria uma separação cognitiva e social da envolvente espacial. O espaço público é, deste modo, povoado de novos territórios comunicacionais fluidos, demarcados pelos percursos dos novos nómadas comunicantes.
Quando o sujeito se encontra em lugares de sociabilidade, como por exemplo, cafés, restaurantes, etc., ele adapta o seu comportamento face ao telemóvel de diversos modos de acordo com o número de pessoas presentes, o seu grau de familiaridade e o tipo de relacionamento que está em questão (Morel,2002:67).
Podem-se destacar tês configurações típica de uso dos dispositivos comunicacionais nestas circunstâncias. Quando o indivíduo está sozinho num lugar de sociabilidade o telemóvel adquire um lugar de destaque sendo objecto de atenção frequente, sendo colocado sobre a mesa e, muitas vezes, utilizado para usar funcionalidades que não atender outelefonar.
«Au travers de ces activités, l"objet technique est plus qu"un téléphone et occupe la solitude, d"une parte, au moyen de l"activité des fonctionnalités et, d"autre part, dans un rapport quasi charnel: que dire en effet des ces caresses fréquentes, préhensions, contemplations, qui visent la totalitéde l"appareil?»(Morel,2002:68)
Quando o sujeito se encontra numa situação de conversação presencial, de face a face, o atender a chamada telefónica exige uma gestão do relacionamento, para que se torne aceitável a intrusão de um terceiro elemento. O sujeito fica na situação de duplo compromisso, presencial e mediático, tendo de gerir a situação. A postura corporal face ao interlocutor presencial e a direcção do olhar são fulcrais neste processo, com tendência a gerar um nicho comunicacional sobre si próprio, com a estratégia de dirigir o olhar para um espaço neutro que o permita deslocalizar-se da situação presencial ou opta mesmo por se afastar para criar um novo ambiente conversacional. Se o sujeito estiver em grupo esta sua deslocalização da atenção comunicacional é mais atenuada na medida em que a interacção se continuará a manter. Em algumas circunstâncias o(s) interlocutor(es) presencialé envolvido na conversação mediada, nomeadamente, quando partilhama mesma rede de relacionamentos. Se é certo que num espaço público os indivíduos partilham um território num qual é necessário cumprir regras, verifica-se que com a difusão dos telemóveis, o que inicialmente era entendido como uma agressão, uma interferência sonora e social, o toque e a conversa, foi progressivamente sendo entendido como uma coisa natural, salvo situações e espaço sociais de maior cerimónia onde o uso do telemóvel ainda é encarado como um elemento disruptivo e inaceitável. O uso dos serviços mediáticos, quer telefónico, quer televisão e Internet têm progressivamente tomado o caminho da selecção individual e da recepção solitária, desmultiplicando os ecrãs no domicilio e fora dele. No acesso telefónico sente-se o processo de individualização de forma marcante. Se até há pouco tempo o telefone era um bem comum da família, do escritório, em que uns atendiam as chamadas de outros e ficavam assim ao corrente de quem lhe desejava falar, com os telemóveis este cenário alterou-se de forma drástica – o telefone deixou de estar referenciado a um espaço para estar referenciado a uma pessoa. Esta situação faz com que cada um faça uma gestão personalizada dos seus contactos gerando tendência para homogeneizar o tipo de contactos e instaurar o agrupamento por afinidades (Gournay,2002:351) e, deste modo, gerar um processo de segregação comunicacional, na medida em que é possível filtrar as ligações, não deixando entrarna sua rede os indesejados e os desconhecidos.
«Chacun sera donc sommé d"afficher sa carte de visite avant d"établir une connexion: identifiez-vous ou on ne vous laissera pas passer! C"est donc l"annonce de cette identité «authentifiée» sinon authentique qui est aujourd"hui requise comme préalable à une connexion téléphonique, dans le cercle privé comme dans le monde professionnel.» (Gournay, 2002:358)
Estamos na era das conexões sem fios, das tecnologias nómadas (telemóveis, computadores portáteis, palms), em que a interconexão se expandiu de modo a posibilitar um uso flexível do espaço, em que «a rede transforma-se em um "ambiente" generalizado de conexão, envolvendo o usuário emplena mobilidade.»(Lemos,2004:2). O desafio é analisar este processo de mudança no sentido de compreender as implicações deste novo ambiente ubíquo de comunicação nas representações cognitivas e sociais dos indivíduos e na criação e gestão de redes de relacionamento. Será este ambiente de comunicação móvel propício à expansão das redes relacionais ou, pelo contrário, a tendência é para reforçar a existência de arquipélagos de comunicação onde se torna ainda mais difícilentrar? Como diria Lemos «A era da conexão não é necessariamente uma era da "comunicação".» (Lemos,2004:10). Gera-se um ambiente tensional, quase paradoxal, entre as possibilidades de comunicação e contacto sem barreiras físicas mas, em que se erguem barreiras para proteger a esfera privada. Contudo, esta sociedade permanentemente conectada é também uma sociedade permanentemente vigiada. Vive- se na eminência de se estar num panóptico.
Portugal é conhecimento por ter tido uma adesão fortíssima ao uso do telemóvel, tendo este entrado de forma marcante no quotidiano dos portugueses alterando rotinas de trabalho, familiares e de relacionamentos em geral, bem como, da gestão da comunicação nos diversos espaços: profissionais, domésticos, públicos. Os dados da ICP-ANACOM[1]mostram que neste momento existem mais telemóveis que portugueses! No final do 2º trimestre de 2005 existiam 10,7 milhões de assinantes do Serviço Telefónico Móvel (STM) e os dados indicavam que cerca de 73,5% dos residentes em Portugal eram clientes do Serviço Telefónico Móvel. Isto evidencia que este equipamento entrou de forma irreversível nas práticas comunicacionais e que algumas pessoas usam mais do que um aparelho com finalidades diversas, nomeadamente, como forma de separar a actividade profissional das restantes actividades pessoais.
(Anacom,2005:4)
No que concerne ao nosso posicionamento no seio dos países da União Europeia estamos acima da média, na oitava posição, como se pode ver no gráfico que se segue:
(Anacom,2005:4)
No que respeita ao tráfego de voz e SMS
«No 2º Trimestre de 2005 os assinantes do STM realizaram cerca de 1,61 mil milhões de chamadas, mais 6,6% do que no trimestre anterior e mais 6,9% do que no trimestre homólogo(.) No mesmo período, os assinantes do Serviço Telefónico Móvel receberam 1,65 mil milhões de chamadas, valor que representa um acréscimo de 7% face ao trimestre anterior e um aumento de 6,6% em relação ao trimestre homólogo. (.) O número de mensagens escritas enviadas no 2º Trimestre de 2005 foi de cerca de 712 milhões, o que representa um aumento de 13,9% face ao trimestre anterior e de 17,9% face ao período homólogo do ano anterior» (Anacom,2005:5,7)
(Anacom,2005:7)
Apesar destes dados avassaladores não existem estudos sociológicos significativos sobre as implicações nas rotinas dos portugueses. No âmbito da disciplina de Cibercultura, do Curso de Novas Tecnologias da Comunicação da Universidade de Aveiro, sob a minha orientação dois grupos de alunos realizaram estudos sobre usos, representações e implicações das comunicações móveis no quotidiano dos portugueses. Esses estudos têm um âmbito limitado mas, pretende-se que sejam o gérmen de um Observatório centrado à observação e análise das implicações das comunicações em rede nas rotinas cognitivas e sociais dos portugueses. Dos referidos estudos devem-se destacar entre outros dados, que no acto de compra de telemóvel um dos factores mais valorizados é operadora para que tenham uma operadora partilhada pelos seus pares. Por um lado, há uma questão económica, na medida em que normalmente as camadas no interior da mesma operadora são menos dispendiosas mas, também, revela a importância das redes sociais. Para além deste factor, entre os utilizadores mais jovens as raparigas valorizam o aspecto visual e os rapazes o custo. Contudo, todos valorizam o factor tamanho, com preferência para equipamentos mais pequenos e leves. Quanto ao tipo de serviços mais utilizados os jovens têm maior incidência de uso das SMS enquanto que os adultos usam preferencialmente chamadas de voz. Curiosamente nenhum dos grupos etários explora a totalidade dos serviços disponíveis no telemóvel. Para os jovens rapazes argumentam que isso tem custos adicionais, as raparigas justificam que os serviços não suscitam interesse e os maiores de 35 anos alegam não terem tempo (Ligeiro e Cancela,2005). No que respeita aos serviços de valor acrescentado os inquiridos (Valverde e Reis,2005) tomaram conhecimento deles através da televisão e de revistas, destacando-se os serviços de "download" de imagens e de toques mas, mostram-se hesitantes quanto à utilização destes serviços, especialmente, por os considerar em muito caros. O preço será um factor condicionador do uso que os portugueses fazem dos serviços móveis e, seria interessante investigar qual o grau de influência ao nível dos contactos e do conteúdo e estratégia comunicacional. Outro elemento que é importante que venha a ser investigado é o da rede de contactos e da gestão dos mesmos que os serviços móveis promovem. Será que se verifica em Portugal o processo de insularidade mediática (Gournay,2002)? Terá a mesma expressão em todas as faixas etárias e grupos sócio-culturais e profissionais? A reflexão sobre o caso português está em boa parte por fazer e o papel deste texto é, essencialmente, alertar paraa necessidade de se proceder aesse trabalho.
ANACOM, «ServiçoTelefónicoMóvel -2º trimestrede2005», Lisboa, 2005.
Arminen, Ikka, «Emergentes, divergentes? Les cultures mobiles», in: Reveu Reseaux – Communication-Technologie_Societé, Paris: Hermès Science Publications, Vol.20, nº112/113/2002, Moblies, p.79-106.
Gournay, Chantal de, «Le Bunker Communicationnel – Vers un apartheid des cercles de sociabilité?», in: Reveu Reseaux – Communication-Technologie_Societé, Paris: Hermès SciencePublications, Vol.20, nº112/113/2002, Moblies, p.347-371.
Lemos, André, «Cibercultura e Mobilidade: a Era da Conexão», in: Revista Razón y Palabra, México, nº41, Octubre-Noviembre, 2004, p.1-21.
Licoppe, Christian, «Sociabilité et technologies de communication. Deux modalités d"entretien des liens interpersonnels dans le contexte du déploiement des dispositifs de communication mobiles», in: Reveu Reseaux – Communication-Technologie_Societé, Paris : Hermès Science Publications, Vol.20, nº112/113/2002, Moblies, p.171-210.
Ligeiro, Ana Sofia e Cancela, Ana Sofia, «Gerações Móveis», Disciplina de Cibercultura, Universidade de Aveiro, 2005.
Ling, Rich, The Mobile Connection – The Cell Phone"s Impact on Society, London: Morgan KaufmannPublishers, 2004.
Morel, Julin, «Une ethnographie de la téléphonie mobile dans les lieux publics», in: Reveu Reseaux – Communication-Technologie_Societé,Paris:Hermès SciencePublications, Vol.20, nº112/113/2002, Moblies, p.49-77.
Postman, Neil, Tecnoplolia –quandoa cultura serende à tecnologia, Lisboa:DifusãoCultural, 1994.
Relieu, Marc, «Ouvrir la boíte noire. Identification et localisation dans les conversations mobiles», in: Reveu Reseaux – Communication-Technologie_Societé, Paris : Hermès Science Publications, Vol.20, nº112/113/2002, Moblies, p.19-47.
Valverde, André e Reis, Paulo, «Uso dos Telemóveis – Serviços de Valor Acrescentado», Disciplina deCibercultura, Universidade de Aveiro, 2005.
Autor:
Lídia Oliveira Silva
Professora Auxiliar doDepartamento deComunicação eArteda Universidade deAveiro
[1] Ver: Serviço Telefónico Móvel -2º trimestre de 2005, em: http://www.icp.pt/template12.jsp?categoryId=161103
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