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O discurso colonial híbrido
Quando percebeu o fluxo turístico no verão, passando em frente à sua mercearia, decidiu Primitivo:
Vou atrair os turistas: e aí pendurei cacau, jaca e coisas da região e da estação, inclusive a palha de banana. É preciso ser criativo. No verão, a loja é mais aberta, a mercadoria na porta, por chover pouco. O importante no comércio é a vitrine. A idéia da palha de banana é porque eu não tinha dinheiro. (Entrevista ao Autor)
E assim conseguiu fazer "um japonês parar o carro e filmar minha placa do cala boca, um americano parar e pedir pra tirar foto". Além da decoração para atrair, Primitivo tem ainda uma estratégia de relacionamento com os turistas estrangeiros:
O importante é fazer com que o turista, em um minuto, já se sinta em casa. É preciso ter habilidade e os gringos saem tudo do ônibus para vim visitar minha loja. Boto a gringalhada para entrar e comer a farinha na mão, pimenta, carne... O gringo sabe quando você está mentindo. (Ibidem)
A condição híbrida da cultura nacional tem contribuído para que o brasileiro venha tendo um olhar eurocêntrico, de origem colonial, sobre sua cultura. É comum, diante de notícias negativas sobre nosso comportamento, como, por exemplo, notícias de corrupção política, ouvir-se comentários do tipo: "Só no Brasil acontece isso!", "Se fosse nos Estados Unidos ou na Europa, os políticos não roubariam!" etc.
Esse olhar eurocêntrico colonial sobre nossa própria cultura está ao alcance de todos, principalmente através da mídia e da escola. Portanto, além de ser uma solução barata, o uso das palhas de banana e das frutas regionais, na decoração do Shopping Primitivo, pode estar relacionado ao "exótico", uma das características desse olhar eurocêntrico colonial sobre as regiões periféricas da Ásia, África e América Latina.
Dessa forma, a estratégia de Edílson Primitivo para comunicar-se com o turista nacional e estrangeiro pode estar calcada em satisfazer as expectativas do imaginário colonial sobre nossa cultura. Pendurar, na entrada da loja, frutas regionais e palhas de banana, além de anunciar a "batida sex", é oferecer ao turista eurocêntrico o "exótico" que ele espera ver nos países periféricos. Mas, ao utilizar esse discurso colonial como uma estratégia de venda, O Shopping Primitivo hibridiza, questiona e fragiliza a autoridade desse discurso, tomando-o já fraturado, em si mesmo, pois incorporou nele o que tal discurso nega: o olhar e os saberes do colonizado.
O hibridismo é uma problemática de representação e de individuação colonial que reverte os efeitos da recusa colonialista, de modo que outros saberes "negados" se infiltrem no discurso dominante e tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de reconhecimento. (BHABHA, 2003, p. 165)
Assim, o discurso do Shopping Primitivo sobre o turista, estrangeiro e nacional, pode ser visto como um discurso colonial híbrido, porque a base da autoridade desse discurso, suas regras de reconhecimento do "exótico", são assumidas como estratégia de venda pelo colonizado, como um feitiço virando contra o feiticeiro. É como se Primitivo dissesse ao turista colonial: "Você não quer ver o exótico, o selvagem, o natural? Então venha ver e comprar aqui!", oferecendo, com sua decoração, um simulacro dessa visão eurocêntrica dos países colonizados. Se, antes, os colonizadores ofereciam bugigangas aos índios, em trocas comerciais, agora são os colonizados que oferecem bugigangas da visão colonial aos próprios colonizadores. Segundo Primitivo,
O importante é fazer com que o turista, em um minuto, já se sinta em casa. É preciso ter habilidade e os gringos saem tudo do ônibus para vim visitar minha loja. Boto a gringalhada para entrar e comer a farinha na mão, pimenta, carne... O gringo sabe quando você está mentindo.
A estratégia que Primitivo usa, na comunicação com seus fregueses estrangeiros, é resumida pelo princípio: "fazer com que o turista, em um minuto, já se sinta em casa". A expressão "sentir-se em casa" significa estar familiarizado, estar acostumado, deparar-se com algo já esperado, não estranho, algo que não é uma surpresa. Para conseguir isso, é preciso justamente oferecer ao turista que chega um simulacro daquilo que ele já esperava encontrar na cultura nativa: frutas exóticas, palhas de bananas selvagens, bebidas afrodisíacas, expressões pitorescas. Ao deparar-se com o que já esperava ver, o turista se sente em casa. E aí é só prosseguir com o espetáculo autóctone: "Boto a gringalhada para entrar e comer a farinha na mão, pimenta, carne..." Primitivo oferece uma encenação espontânea do discurso colonial, porque o "gringo sabe quando você está mentindo", isto é, o gringo sabe quando você não simula adequadamente a visão do discurso colonial.
A experiência de compreender outras culturas assemelha-se "mais a entender um provérbio, captar uma alusão, perceber uma piada [ou, como já sugeri, ler um poema] do que a alcançar uma comunhão" (BHABHA, 2003, p. 96). Primitivo não busca compreender as culturas dos turistas, mas busca alcançar com estes uma "comunhão":
Um japonês parar o carro e filmar minha placa do cala boca, americano pára e pede pra tirar foto. E eu faço com que o turista, em um minuto, já se sinta em casa. É preciso ter habilidade e os gringos saem tudo do ônibus e vêm visitar minha loja.
Essa "comunhão" com o turista Primitivo a consegue via discurso colonial. Através do simulacro do exótico e do selvagem na decoração, ele torna a si mesmo o simulacro de um "nativo", com sua fala profusa e difusa, seu jeito aparentemente estabanado, colocando as mercadorias nas mãos dos turistas, "comer farinha na mão, pimenta, carne", sem discutir preço antes, como se fosse um selvagem "inocente" do discurso colonial de Caminha: "Andam nus, sem nenhuma cobertura. Não fazem caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas. E o fazem com tanta inocência, como mostram o rosto" (SIMÕES, 2000, p. 40)
Segundo Canclini (2000, p. 198), um dado elemento cultural pode ser considerado arcaico, residual ou emergente.
O arcaico é o que pertence ao passado e é reconhecido como tal por aqueles que hoje o revivem, quase sempre "de um modo deliberadamente especializado". Ao contrário, o residual formou-se no passado, mas ainda se encontra em atividade dentro dos processos culturais. O emergente designa os novos significados e valores, novas práticas e relações sociais.
O Shopping Primitivo pode ser considerado como um residual, uma vez que utiliza elementos característicos da tradição regional, como a palha, a jaca, a banana e o cacau, mantendo-os em atividade, como decoração ou mercadoria, em seu comércio com os moradores locais e com os turistas. Porém, simultaneamente, ele pode ser considerado emergente, uma vez que cria novos significados e valores, ao anunciar, em letreiros, a "jaca orgânica", "banana orgânica", "batida sex", "cala boca", "como pouco" etc., em novas práticas de comércio, decoração, e comunicação. Assim, a classificação rígida de Primitivo numa das categorias propostas por Canclini apresenta dificuldades, justamente pelo caráter heterogêneo de seu público consumidor: fregueses locais e turistas. O Shopping Primitivo não é somente uma "barraca exótica", montada para atrair os turistas, ele é também um restaurante popular, com freguesia local fixa diária. Portanto, seus produtos, suas estratégias de venda e sua comunicação estão dirigidos simultaneamente ao consumo desses dois públicos tão diversos. As expressões "cala boca" e "como pouco", geradas na barganha com os fregueses populares locais, adquirem significados pitorescos para os turistas, sob a forma de letreiros, na fachada da loja. As palhas de banana e as frutas regionais, expostas na entrada para atrair os turistas que passam de carro, despertam também a atenção dos moradores locais. Se, pelos turistas, Primitivo pode ser visto como residual, pelo seus fregueses cotidianos pode ser visto como emergente.
Uma coisa é certa: o Shopping Primitivo não pode ser considerado arcaico, autêntico, no sentido de ser um "genuíno" produtor artesanal da cultura regional. Seus produtos não resultam de uma tradição cultivada, mas são criados para atender a uma estratégia comercial imediata. No entanto, "a atual circulação e consumo dos bens simbólicos limitou as condições de produção que em outro tempo tornaram possível o mito da originalidade, tanto na arte de elites e na popular, quanto no patrimônio cultural tradicional" (Ibidem). Assim, o critério da "autenticidade", na forma tradicional de pensar o patrimônio cultural, não leva em conta a atual circulação e consumo dos bens simbólicos. O Shopping Primitivo está situado não apenas numa esquina, isto é, num cruzamento de ruas, mas também num cruzamento de consumidores populares locais e de turistas nacionais e internacionais. Nesse contexto diversificado atual de circulação e consumo dos bens simbólicos, não se pode mais encontrar o artesão "autêntico", numa comunidade isolada, com valores e significados originários.
O discurso colonial estabiliza a visão do outro em estereótipos, conotando rigidez e ordem social imutável. Estereótipos sobre a duplicidade do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano, são repetidos exaustivamente, embora sem provas (BHABHA, 2003, p. 105). A "fixidez" do discurso colonial, tendo o estereótipo como sua principal estratégia discursiva, permite explicar por que, separados no tempo por meio século e em circunstâncias tão diversas, Primitivo e a cantora Carmen Miranda usam o mesmo elemento, como representação cultural do Brasil para os "gringos". O recurso das frutas tropicais, ornamentando os chapéus com que se apresentava, foi usado pela cantora Carmen Miranda, nos Estados Unidos, justamente para sugerir um clima selvagem, primitivo, exótico, associado às músicas brasileiras que cantava. É com semelhante finalidade que Primitivo pendura essas mesmas furtas na porta de sua loja.
Assim, conforme já visto, as estratégias de venda e de comunicação de Primitivo, em relação aos turistas podem estar fundamentadas, em grande parte, no discurso colonial eurocêntrico. O letreiro que anuncia a "batida sex" pode ser associado à longa tradição do estereótipo colonial de que nas culturas africanas, asiáticas e americanas o sexo é praticado sem qualquer restrição. As gravuras e relatos sobre os índios brasileiros, feitas por viajantes coloniais, manifestam curiosidade e fixação sobre a nudez dos "selvagens", referidas à exaustão na Carta de Caminha, conforme Simões (2000, p. 38-58):
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas... [...] Andam nus, sem nenhuma cobertura. Não fazem caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas. E o fazem com tanta inocência, como mostram o rosto. [...] E então estiraram-se de costas na alcatifa a dormir sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas, e as cabeleiras deles estavam bem rapadas e feitas. [...] Fomos assim de frecha diretos à praia. Ali acudiram logo obra de 200 homens, todos nus com arcos e setas na mão. [...] Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos, pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de nós muito bem as olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. [...] E uma daquelas moças era toda tingida, de fundo acima, daquela tintura a qual é certo era tão bem feita e tão redonda a sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra vendo-lhes tais feições, fizera a vergonha por não terem a sua como ela. [...] Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres moças assim nuas que não pareciam mal entre as quais andava uma com a coxa do joelho até o quadril e a nádega toda tinta, daquela tintura preta, e o resto todo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tingidas e também os colos dos pés. E suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que não havia nisso nenhuma vergonha. E também andava outra mulher moça com uma menina ou menino no colo, atado com um pano não sei de quê, aos peitos que não apareciam senão as perninhas.Mas nas pernas da mãe e nas outras coisas não traziam nenhum pano. [...] Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa, a quem deram um pano com que se cobrisse puseram-lhe ao redor de si. Mas ao assentar não fazia memória de o muito entender para se cobrir. Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria mais, quanto à vergonha. Ora veja Vossa Alteza, quem em tal inocência vive, ensinando-lhe o que para sua salvação pertence, se se converterão ou não?
Observa-se que, mesmo numa carta formal, dirigida a "El-Rei", a curiosidade excessiva do europeu sobre a nudez dos índios, especialmente a das índias, não é contida e se espalha, ao longo das páginas em, pelo menos, oito citações diretas. Esses trechos, escritos por um homem que estava há meses no mar, sem ter contato com mulheres, traem um erotismo aguçado no olhar: "cabeleiras bem rapadas e feitas", "vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras", "tão bem feita e tão redonda a sua vergonha", "a coxa do joelho até o quadril e a nádega toda tinta".
Mas, ao mesmo tempo, os trechos mostram a cultura cristã européia que envolve esse mesmo olhar: "vergonhas", "inocência":
Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria mais, quanto à vergonha. Ora veja Vossa Alteza, quem em tal inocência vive, ensinando-lhe o que para sua salvação pertence, se se converterão ou não?" (Idem, p. 58)
No olhar do europeu, diante da cultura diferente, pode-se ver a tensão entre o instinto e a visão religiosa: a parte do corpo das índias que mais o atrai é justamente aquela que a religião chama de "vergonha". Para compreender o costume diferente do outro diante da nudez, o europeu vai buscar, também na religião, a expressão "inocência". Em suma, ele vê a cultura do outro através de valores e expressões de sua própria cultura: "vergonha" e "inocência".
O discurso colonial é essencialmente masculino, uma vez que, sobretudo em seu início, a colonização foi uma empresa feita por homens. A expressão "vergonha", na carta de Caminha, refere-se, na maioria das vezes, ao sexo das índias e reflete o olhar dividido do europeu sobre si mesmo: de um lado, a repetição obsessiva dessa expressão indica que ele se vê atraído por aquele sexo exposto que, por estar nu, lhe parece facilmente alcançável e oferecido, livre de qualquer restrição cultural nativa; de outro lado, a palavra com que nomeia esse mesmo sexo exposto, "vergonha", manifesta a repressão de sua própria cultura a essa atração "livre", fazendo-o ver-se como culpado de um comportamento vergonhoso. Assim, contraditoriamente, a palavra "vergonha" significa a atração do sexo nu, sobre o olhar e o instinto do europeu e, simultaneamente, a culpa e o remorso em que é atirado, por sentir tal atração. Dessa forma, para justificar a si mesmo a insistência com que seu olhar se prende no sexo das índias, ele lança mão da "inocência" atribuída a elas, "E suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas", para argumentar em favor da urgência com que os indígenas devem ser convertidos ao cristianismo: "Ora veja Vossa Alteza, quem em tal inocência vive, ensinando-lhe o que para sua salvação pertence, se se converterão ou não?". Em outras palavras, o instinto sexual em excitação do europeu é reprimido e sublimado pelo desejo missionário de catequese e salvação.
Esse desejo colonial envergonhado pelo sexo das nativas pode ser visto até hoje nos apelos eróticos da propaganda turística do Brasil, da Bahia e, especificamente, em nossa região, através da figura de Gabriela, personagem criado por Jorge Amado, conforme esse olhar colonial do europeu. Os países periféricos passaram a funcionar como casas de prostituição, isto é, lugares onde o europeu se permite a licenciosidade sexual vergonhosa, discreta e oculta, num lugar distante e remoto, sem afetar seus costumes cristãos: "Não existe pecado do lado de baixo do Equador", como diz uma música popular.
Além disso, a cultura brasileira, especialmente na Bahia, apresenta fortes marcas da cultura africana. No discurso colonial, os negros estão associados ao estereótipo da "bestial liberdade sexual" (BHABHA, 2003, p. 105). Assim, o Brasil, com suas índias nuas e negras sexualmente livres, tem fomentado um imaginário eurocêntrico de ser um desses lugares distantes, "paradisíacos", onde as relações sexuais estariam livres de qualquer restrição cultural. No sul da Bahia, esse estereótipo do discurso colonial foi alimentado pelo personagem Gabriela, do romance de Jorge Amado, uma mulata que se entrega livremente ao prazer sexual, sem respeitar qualquer delimitação imposta pelos costumes, nem mesmo a do casamento formal. Tal personagem, com larga difusão no exterior por meio do romance, cinema e telenovela, encarna muito mais o estereótipo colonial da "bestial liberdade sexual" dos negros do que os valores da cultura popular regional, presa a rígidos padrões tradicionais de moralidade e de dominação da mulher.
Esse estereótipo do discurso colonial pode ser visto no discurso híbrido da tabuleta que Primitivo expõe na Avenida Juracy Magalhães, em Itabuna, anunciando sua afrodisíaca "batida sex de cacau". Por meio de um eco, uma alusão distante, ele insinua, reafirmando o discurso colonial de uma visão paradisíaca da nudez selvagem dos índios e da bestialidade sexual dos negros, mas, ao mesmo tempo, na medida em que toma esse discurso como pressuposto de uma propaganda comercial, já fragmenta sua autoridade. A tabuleta, anunciando a bebida afrodisíaca, pode insinuar o "paraíso", com índias nuas e negras sexualmente livres, conforme o discurso colonial, mas, ao mesmo tempo, já desqualifica a autoridade desse discurso, por tomá-lo como pressuposto de uma propaganda comercial. É como se um bordel usasse o discurso bíblico em sua fachada: "Deus perdoa sempre!" A autoridade do discurso bíblico aparece aí cindida: de um lado, reafirma o perdão divino, mas, de outro, o local e as circunstâncias em que é dito, sugerem uma ironia, uma chacota, que põe em cheque a autoridade desse discurso. Assim, quando Primitivo anuncia a "batida sex de cacau", ele pode estar se colocando na corrente secular do discurso colonial do sexo selvagem e bestial nos países periféricos, mas, o próprio gênero discursivo em que tal discurso é insinuado, o gênero da propaganda comercial, provoca uma ruptura na autoridade desse discurso.
Para Hall (1997, p. 9), a globalização é um dos processos da modernidade tardia que mais tem exercido impacto sobre a identidade cultural. Tal fenômeno tem provocado "o deslocamento-descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos" . O avanço da indústria cultural de massa no Brasil, TV, cinema, discos fonográficos, editoras etc. não tem provocado a dominação do mercado interno por produtos estrangeiros.
As estatísticas revelam que nos últimos anos cresceu sua cinematografia e a proporção de filmes nacionais nas telas: de 13,9% 1971 a 35% em 1982. Os livros de autores brasileiros, que ocupavam 54% da produção editorial em 1973, subiram para 70% em 1981. Também se escutam mais discos e fitas nacionais, enquanto decaem os importados. Em 1972, 60% da programação de televisão era estrangeira; em 1983, baixou para 30%. Ao mesmo tempo que ocorre essa tendência à nacionalização e autonomia da produção cultural, o Brasil se transforma em um agente muito ativo do mercado latino-americano de bens simbólicos exportando telenovelas. Como também consegue penetrar amplamente nos países centrais, chegou a transformar-se no sétimo produtor mundial de televisão e publicidade, e o sexto em discos. (CANCLINI, 2000, p. 311)
Nessa perspectiva, a produção cultural do Shopping Primitivo pode ser analisada do ponto de vista do seu público externo, os turistas, e do ponto de vista do seu público interno, os fregueses cotidianos do restaurante popular. Curiosamente, o próprio nome da loja já sugere a bipolarização dos tipos de fregueses.
Para os turistas, conforme já visto, a produção cultural material está orientada para o regional, com frutas, batidas, churrasqueiras artesanais, carvão e comida caseira, enquanto a produção cultural simbólica está submetida ao viés do discurso colonial. Ou seja, as frutas penduradas, as palhas de banana e a batida sex são produtos culturais da região, articulados num simulacro do "exótico" nativo, conforme a visão do discurso colonial. O cardápio, estampado em letreiro na porta da loja, Prato Feito, Cala Boca, Como Pouco e Biscateiro, faz parte do "exótico", tendendo ao pitoresco.
Para os fregueses cotidianos do restaurante popular, a produção cultural material é constituída de pratos da comida caseira local: frango, fígado, cozido de músculos, e, aos sábados, sarapatel. A produção cultural simbólica é constituída pelo cardápio: Prato Feito, Cala Boca, Como Pouco e Biscateiro; pelo uso de referenciais geográficos da região: galinha caipira de Itajuípe, carne-de-sol de Itororó e cozido de Buerarema"; pelos adjetivos usados como slogans das mercadorias: cozido sem colestero, banana orgânica e jaca orgânica; e pelas qualidades afrodisíacas atribuídas à batida sex de cacau: "Tome o mel ou a batida de cacau que, de noite, você tá em cima da véa, igual um bicho!", diz Primitivo.
Embora influenciado pela mídia, longe de abrir uma lanchonete de fast food, Primitivo preferiu a produção cultural regional, seja com seus clientes locais, seja com os turistas, transformando-se num agente ativo e exportador da produção cultural, material e simbólica, de caráter local, seguindo a tendência de nacionalização e autonomia da produção cultural brasileira. Como diz ele mesmo: "temos de valorizar o lugar onde vivemos".
A produção cultural de Primitivo relativiza o paradigma binário e polar na análise das relações intcrculturais, isto é, o paradigma segundo o qual o popular estaria associado ao nacional e em oposição ao internacional:
(...) mas a radical alteração dos cenários de produção e consumo, assim como o caráter dos bens que se apresentam, questiona a associação "natural" do popular com o nacional e a oposição igualmente apriorística com o internacional. (CANCLINI, 2000, p. 311)
Na produção cultural do Shopping Primitivo, o popular tanto está associado ao nacional quanto ao internacional. As frutas regionais, como jaca e banana, de consumo popular, penduradas na porta, e o cardápio, gerado na barganha com clientes do restaurante popular e transformado em letreiro pitoresco na porta da loja, se tornam atrativos para os turistas nacionais e internacionais. Além disso, nessa produção cultural, tanto na comida caseira e na exposição das frutas, quanto no cardápio e na batida sex, as classes populares são as únicas representadas e dela se beneficiam, ao lado dos turistas.
O culto moderno
A produção cultural do Shopping Primitivo tem sido objeto de atenção da mídia local, em artigos de jornal e reportagens na TV. Ser culto não è apenas ligar-se às vanguardas artísticas e aos avanços tecnológicos, mas é também incorporar matrizes tradicionais de privilégio social e distinção simbólica (CANCLINI, 2000, p. 74).
O interesse da burguesia e de setores médios de Itabuna pela produção cultural do Shopping Primitivo pode estar associado a essa noção de "ser culto moderno", que implica saber incorporar "matrizes tradicionais de privilégio social e distinção simbólica". A batida sex de cacau, com a sugestão de uma intensa e variada prática sexual, pertence à "matriz tradicional de privilégio social e distinção simbólica" dos coronéis do cacau, exaltados por Jorge Amado, no romance Gabriela, Cravo e Canela, como freqüentadores do bordel Bataclã, e como amantes inveterados. Assim, tomar a batida sex seria incorporar o privilégio social e a distinção simbólica tradicionais dos coronéis do cacau, e, dessa forma, ser uma pessoa culta moderna.
Na história regional, conforme apresentada no mesmo romance de Jorge Amado, a "modernização operou poucas vezes mediante a substituição do tradicional e do antigo". Ao contrário, todo o processo de modernização da cidade de Ilhéus, ocorre simplesmente por uma mudança de líder dos fazendeiros, que deixam de seguir o Coronel Ramiro Bastos, para apoiarem o exportador Mundinho Falcão. Apesar de alguns momentos de tensão, na luta pela hegemonia, a "substituição do tradicional e do antigo", culmina com a morte natural de Ramiro Bastos e a pacífica adesão dos fazendeiros à liderança de Mundinho. As classes populares não têm qualquer participação significativa nessa mudança e não ocorre qualquer revolução, ruptura ou "substituição do tradicional e do antigo": o poder continua nas mãos dos mesmos coronéis, sob nova liderança.
Mesmo nas últimas décadas, as famílias tradicionais, descendentes desses coronéis, ainda vêm mantendo um certo privilégio social e distinção simbólica. O patrimônio histórico regional, preservado com verbas públicas, - Bar Vesúvio, Bataclã e Museu da Casa Verde, além de outros - está voltado, quase exclusivamente, à memória dessa classe social, tal como descrita, em sua ascensão e auge de poder, por Jorge Amado, no romance Gabriela, Cravo e Canela. Ou seja, quase nenhuma vez, na história regional, a modernização operou mediante a substituição do tradicional e do antigo, mas sempre mediante transformações homeopáticas que vão reformando, aos poucos, o tradicional e o antigo, sem rupturas. Distante dos estudos históricos acadêmicos, a identidade cultural regional, isto é, o ser grapiúna, tem sua grande narrativa fundadora, principalmente, no romance Gabriela, de Jorge Amado.
Isso pode explicar, pelo menos em parte, porque a burguesia e setores médios de Itabuna, os chamados "cultos modernos", têm demonstrado um certo interesse pela produção cultural do Shopping Primitivo. Na verdade, quase sempre de modo inconsciente, eles estariam incorporando matrizes tradicionais de privilégio social e distinção simbólica: freqüentar um lugar rústico, decorado com palhas de banana e frutas regionais, comer "galinha caipira de Itajuípe, carne-de-sol de Itororó ou cozido de Itapé" e beber a batida sex de cacau seria incorporar o antigo estilo de vida dos coronéis.
Além disso, a distinção entre "culto" e "popular", a partir da segunda metade do século XX, tende a não se fundamentar mais na separação entre classes, entre elites instruídas e maiorias analfabetas ou semi-analfabetas. Enquanto a maior parte das classes altas e médias e a quase totalidade das classes populares vêm sendo submetidas à programação massiva da indústria cultural, o culto passou a ser uma área cultivada por facções da burguesia e dos setores médios. (CANCLINI, 2000, p. 88)
Assim, as classes altas e médias estão divididas entre o consumo do "culto" e o consumo da programação massiva da indústria cultural. Longe de ser um produto dessa indústria, o Shopping Primitivo só pode ser consumido por "facções da burguesia e dos setores médios", que cultivam o "culto" das elites, em oposição ao "popular", das "maiorias analfabetas ou semi-analfabetas." Indagado sobre os tipos de fregueses do seu restaurante, diz Primitivo: "Hoje os clientes são diversificados: o doutor, o motorista, o mecânico, o carpinteiro etc."
A presença do "doutor" no Shopping Primitivo pode indicar o interesse das elites "cultas" por um produto cultural de consumo das classes populares, isto é, um produto com poucas possibilidades de ser reservado ao consumo exclusivo de minorias, embora tais elites procurem se diferenciar dos freqüentadores populares, nos dias, horários e modo como se apropriam dos serviços oferecidos: os trabalhadores fazem ali sua refeição diária, o turista e o "doutor" apenas provam o gosto, "comer a farinha na mão, pimenta, carne".
O Shopping Primitivo oferece um complexo de "desorganização-organização" de experiências temporais, em articulação heterogênea com o social (CANCLINI, 2000, p. 362). Tal como na indústria cultural massiva, o Shopping estabelece uma relação fragmentada e heteróclita com o social.
O uso de frutas regionais penduradas na porta da loja, ao mesmo tempo em que remete ao estereótipo do exótico, no discurso colonial, visto nos chapéus de Carmen Miranda, também nos traz o debate ecológico contemporâneo sobre o uso de defensivos agrícolas, por meio das placas: "banana orgânica", "jaca orgânica" etc. A "batida sex", por sua vez, pode ser vista como um eco tanto da bestialidade sexual nativa, outro estereótipo do discurso colonial, quanto da publicidade que sugere o turismo sexual, - inclusive com a figura de Gabriela O cardápio, com "cala boca" e "como pouco", sugere uma temporalidade arcaica popular, mas, usado como estratégia de venda, soa como um recurso moderno de comunicação. Dessa forma, os produtos culturais do Shopping Primitivo não são bens "descartáveis", propondo "relações instantâneas, temporalmente plenas" e fugazes. Ao contrário, o inusitado de sua decoração e de seus letreiros "trabalham sempre dentro de uma tradição, comentando-se e se auto-referindo constantemente, isto é, estabelecendo uma prática hermenêutica básica para sua dinâmica de existência, contribuindo, justamente para a construção de uma memória coletiva" (CANCLINI, 2000, p. 363-364).
O tom arcaico da decoração rústica do Shopping Primitivo pode funcionar como "núcleo simbólico" que expressa "formas de convivência e visões de mundo" do passado regional. As palhas de banana podem sugerir as antigas festas juninas nas roças de cacau, com seus caramanchões, e as barracas improvisadas típicas das feiras populares, de ontem e de hoje, sustentadas por relações sociais do passado e da atualidade. Hoje, os antigos folguedos juninos são continuados pelas festas "de camisa", com bandas eletrônicas. As feiras populares, no entanto, constituem ainda hoje na região, o maior espaço de convivência social. Nessa perspectiva, o Shopping tanto pode levar à utopia de reviver um passado que não existe mais, como nas antigas festas juninas; quanto pode reafirmar a cultura regional popular do presente, ao sugerir as feiras populares. Esse passado popular regional, aparece em Primitivo num processo de desenvolvimento e transformação. Das antigas formas, integrando um complexo definido, como as festas juninas e as feiras populares, aparecem apenas fragmentos, como as palhas de banana, acrescidos de novos elementos, como o "orgânico" e a batida sex, numa reformulação interdiscursiva, que gera novos significados em "interseções do culto e do popular, do nacional e do estrangeiro", fugindo das classificações que "normalmente estabelecem as situações e posições no espaço cultural" (Idem, p. 366).
O Shopping Primitivo adota uma estratégia de comunicação com os turistas baseada na construção de um simulacro do imaginário do discurso colonial eurocêntrico. Entretanto, ao reafirmar esse discurso num contexto de mera propaganda comercial, ele o hibridiza, isto é, fragmenta sua autoridade pois incorpora nele o que tal discurso nega: o olhar e os saberes do colonizado.
A classificação do Shopping Primitivo nas categorias de arcaico, residual e emergente, torna-se problemática em razão, mais uma vez, da heterogeneidade do seu público. Enquanto pode ser considerado como residual pelos clientes turistas, pode também ser visto como emergente pelos seus clientes populares.
O estereótipo, principal estratégia do discurso colonial, pode estar reverberando nas estratégias de comunicação do Shopping Primitivo, como o das frutas tropicais, associadas à imagem colonial exótica dos países periféricos, numa visão eurocêntrica. Assim, as frutas tropicais tornam-se um estereótipo das culturas dominadas. Um outro estereótipo do discurso colonial é a da suposta ausência de restrições culturais à prática do sexo, entre os povos da Ásia, África e América Latina. O letreiro do Shopping Primitivo, anunciando a batida sex, pode ser um eco desse estereótipo.
A produção cultural do Shopping Primitivo relativiza o paradigma binário e polar na análise das relações intcrculturais, isto é, o paradigma segundo o qual o popular estaria associado ao nacional e em oposição ao internacional. Em Primitivo, o popular está associado tanto ao nacional, representado pela sua freguesia cotidiana local do seu restaurante, quanto ao internacional, representado pelos turistas atraídos pela sua decoração.
Finalmente, a decoração do Shopping Primitivo, evocando os caramanchões típicos das festas juninas e as barracas improvisadas das feiras populares, apresenta-se como uma expressão da cultura regional, para turistas e fregueses locais.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
SIMÕES, Henrique Campos. O achamento do Brasil. Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel. Ilhéus (Ba): Editus, 2000.
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