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As origens da sociologia e do romance: paralelos (página 2)

Edison Bariani

A sociologia não é a forma científica que a consciência de classe burguesa teria adquirido, nem o poderia ser, pois seria contraditório identificar a universalidade e totalidade da ciência com a forma particular de visão de mundo de uma classe. Assim como não existe uma ciência proletária, no mesmo sentido, a sociologia também não pode ser uma ciência burguesa, sua forma admite conteúdos distintos, embora suas origens estejam relacionadas ao modo particular de sociabilidade predominante no modo de produção capitalista e na forma própria de percepção dessas relações pelos homens: a modernidade.

Tal tensão contraditória entre o universal e o particular está inscrita no nascimento da sociologia e permanece em sua construção e atualização, a saber: de estar ligada enquanto forma desde suas origens à sociedade burguesa, sua configuração e historicidade particulares, e de, também, afirmar-se enquanto ciência, cujos compromissos impõem a superação dos limites e o aventar possibilidades para além dessa sociedade; de pressupor os limites, regularidades e condicionantes dos motivos e ações dos homens em dada sociedade e, ainda assim, não circunscrever tais possibilidades àquela sociedade particular, sua sociabilidade específica e interesses localizados; de perscrutar as condições objetivas do mundo social e não eliminar os componentes subjetivos da existência humana; de não cindir teoria e prática; de entender a particularidade da existência social historicamente determinada e, também, vislumbrar o horizonte da existência humana em geral, sem desmembrar a visão sociológica da condição ontológica, sem cindir a sociologia da antropologia, da história e da política.   

O pluralismo de valores também estaria presente na forma romanesca e indicaria – segundo Fehér (1997) – que este não seria simplesmente um gênero problemático, mas ambivalente: em um nível expressa a sociedade burguesa, em outro, a sociedade "puramente social", caracterizada pela eliminação das formas "naturais", pela superação das barreiras estamentais, laços comunitários e uma radical socialização da vida e imposição do caráter teleológico com que a sociabilidade dar-se-ia, por meio de escolhas que ocorreriam na esfera ampliada do cotidiano. A comunidade orgânica estaria perdida para sempre, não seria mais possível retomar o ideal de um mundo comunitário, orgânico e homogêneo, caberia expandir ao máximo as possibilidades de humanização de que a sociedade "puramente social" é capaz (FEHÉR, 1997, p. 103).

A afirmação da sociedade "puramente social" e o abandono da nostalgia e da idealização comunitárias, por outro lado, não instauraria o reino da autonomia dos indivíduos, persistiria a dualidade entre o eu e o ambiente, as presunções dos sujeitos se oporiam e se anulariam, e haveria uma incongruência entre o processo temporal histórico e o ritmo da vida cotidiana, daí que, no romance, o herói (sujeito) tenderia a construir seu próprio universo e orientar-se teleologicamente, tal presunção criaria a série causal que forma o edifício romanesco. A transposição em termos causais, lógico-temporais, de acontecimentos fortuitos conferiria um caráter de "fatalidade" social à simples seleção e escolha dos acontecimentos por parte da narração e seu aspecto fortuito. Desse modo, o fetichismo da sociedade burguesa transfere à forma do romance a idéia de um sistema de leis naturais que "organizam" a sociedade.  Essa homologia estabeleceria uma relação formal indefectível da forma literária com a sociedade capitalista, o romance acusaria "a tensão da ação que nasce da bipolaridade do imprevisto e do fatal" (FEHÉR, 1997, p. 94).

Também a sociologia – afora os determinismos mais rasteiros – acusa a oscilação entre o caráter "aberto" e "fechado" da ação dos indivíduos e grupos, apresenta uma tensão bipolar entre a escolha e a necessidade, entre a liberdade e a coerção, o livremente condicionado e o absolutamente condicionado, entre a propensão e a determinação, a tendência e a lei. Apesar das tentativas de eliminação do imponderável, do fortuito, do acaso e do irracional, mesmo no terreno da racionalidade da ação é imenso o escopo das possibilidades de motivos e atitudes. Não obstante a sociologia ter sido construída com base na previsibilidade de condutas, o vasto leque de virtuais posicionamentos frente a condições, ainda que determinadas, esboça um ponto de fuga no horizonte da sociologia como ciência. A narração dos nexos da vida social pode conferir, circunstancialmente, coerência lógica aos fatos, ações, motivos e seus encadeamentos, todavia, tanto quanto um lance de dados, jamais abolirá o acaso (MALLARMÉ, 1990) – caso acalentasse tal pretensão estaria sob pena de perder seu estatuto de ciência, tornando-se dogma, doutrina, religião ou axioma totalitário.

Rompidos os laços comunitários, perdida a possibilidade de comunhão social entre os indivíduos, o romance surgiria como indício da "morte da narrativa", devido à incomunicabilidade da experiência, relacionada ao avanço da técnica, da informação, da vida agitada, individualista e solitária. Dissociado da memória (ligada à narrativa), o romance seria incapaz de recuperar e transmitir experiências comuns, pois é a saga do indivíduo isolado, incomunicável em suas idiossincrasias, que não pode transmitir suas preocupações mais importantes, não recebe conselhos nem os sabe dar, está indissoluvelmente ligado à sociedade burguesa e sua sociabilidade fragmentada, assim, a matriz do romance seria o indivíduo e sua solidão (BENJAMIN, 1987, p. 54). Esse processo de incomunicabilidade (JOYCE, 1975), de alienação (KAFKA, 1948, 1963), tem seu ápice no homem à deriva, o indivíduo náufrago em meio ao mar social de impessoalidade e indiferença (BECKETT, 1982, 1989). 

O romancista seria o "o verdadeiro solitário, o autêntico mudo" da sociedade moderna.

O romancista separou-se do povo e daquilo que este cultiva. A célula mater do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que já não pode mais falar de modo exemplar sobre seus desejos, porque ele próprio está perplexo, incapacitado de aconselhar. Escrever um romance significa, na apresentação da existência humana, levar o incomensurável até às últimas conseqüências. (BENJAMIN, 1986, p. 126).

 

"Pois esta é a lei da forma do romance: no momento em que o herói se ajuda a si mesmo, sua existência deixa de nos ajudar" (BENJAMIN, 1986, p. 129). Não estaria em jogo apenas a perda da exemplaridade e da comunhão de experiências, mas o próprio modo de comunicabilidade do romance, atingido pela contradição de não se poder mais narrar, ao passo que a forma do romance exige a narração. Dilacerado pela contradição, já agonizaria como forma:  "O romance foi a forma literária específica da era burguesa" (ADORNO, 1980, p. 267).

Entretanto, a tensão na modernidade entre o individualismo e a capacidade de compartilhar (e narrar) experiências e valores não assenta a lápide do romance, expressa as contradições inerentes à ordem burguesa e sua sociabilidade específica, o cortejo fúnebre do romance informa menos sobre as formas sociais de expressão artística e literária que sobre os limites da interpretação que se detém nos marcos dessa ordem e, frente à desconfiança na superação desses marcos, reconstrói como utopia negativa a nostalgia da perda dos laços comunitários.

Se no romance – enquanto forma de interpretação do social – a dificuldade de compartilhar problematiza mas não determina a impossibilidade de narrar, a pulverização social dos indivíduos, suas experiências e valores, não inviabilizam a sociologia, sequer a problematizam, pois que reforçam seus alicerces e a consolidam como forma central da interpretação social da vida moderna, baseada, segundo os padrões dominantes, na reificação dos indivíduos e do social.  Nesse sentido, a sociologia continuou o programa do Iluminismo, ao menos quanto aos aspectos – definidos por Adorno e Horkheimer (1985, p. 19) – de racionalização instrumental, desencantamento do mundo e substituição da imaginação pelo saber.

Ao renunciar à crítica, a sociologia acomodou-se à sociedade burguesa e tomou a existência social como comportamento, reduzindo as ações, por meio da racionalidade instrumental, ao que pode ser padronizado e previsível.  

A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura. (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 23).

 

A sociologia tornou-se a narração possível da vida numa sociedade que avança no rumo da perda do sentido de comunhão e do esvaziamento das ações dos homens de quaisquer conteúdos singulares não-racionalizáveis. O padrão tornou-se a regra e a afirmação da regra alimenta pretensões de realidade: ironicamente, o projeto sociológico do início do séc. XIX fracassou como sociologia e realizou-se como dominação, já é possível pensar uma "física" ou uma "fisiologia" social, não como ciência, mas como metáfora da existência. 

 

Na pretensão de constituir-se como autoconsciência científica da realidade social, repelir a proximidades com a literatura e as artes, a sociologia tentou expurgar o subproduto subjetivo, incerto e incontrolável que toda ciência, e as ciências humanas em particular, ainda que parcialmente, possuem e produzem. Se o herói romanesco fez da busca de valores, de ideais autênticos, sua saga na modernidade, o sociólogo, frequentemente, na busca frenética desses valores e ideais, cedeu à tentação de criá-los, ainda que escondido sob o manto da objetividade e da neutralidade axiológica.

A eliminação dos sentimentos nas ciências sociais e em outras disciplinas se dá em nome de uma razão arrogante, que pretende ser não apenas meio para o conhecimento, mas também concepção do mundo e igualmente substituto da religião. Mas com isso a razão se excede e promete mais do que pode realizar e, quando as dúvidas que nela mesma surgem não são suficientes para fazê-la corrigir-se, os sentimentos não somente recuperam seus direitos, mas também se intensificam até tornarem-se um culto do irracional, como ocorre nas ideologias totalitaristas. (LEPENIES, 1996, p. 24).

Não há ciência neutra. Não há ponto arquimediano possível para mover o mundo sem se conspurcar com os efeitos do esforço.

[...] qualquer que seja a maneira pela qual o homem encare o seu estatuto, a sua relação com o mundo, encontra-se, porque o faz necessariamente no plano da consciência, inserido num círculo que pode evidentemente alargar, mas do qual não pode de modo algum escapar-se inteiramente. (GOLDMANN, 1984, p. 17).

 

Mas não se pode fazer da necessidade, virtude. Cabe à sociologia enfrentar seus dilemas, superar suas contradições e transcender suas limitações, dentre estas, a de se remeter aos homens como "objetos" e "sujeitos", de torná-los passíveis e passivos nos processos de quantificação e determinação, de diluí-los nas abstrações sistêmicas, de moldá-los a esquemas explicativos e auto-referentes.

O fundamento dessas limitações reside no sempre iminente risco da sociologia tornar-se vulnerável à reificação do social a pretexto de garantir a "objetividade", a cientificidade inexpugnável pelas subjetividades. Tal reificação – congruente com uma sociologia hipertrofiada como explicação, especializada, estática, restritamente temática e estanque – postula a especificidade do social como terreno do domínio da técnica e do controle, tomando relações entre indivíduos como processos "naturais" e as relações entre coisas como processos sociais, no intuito de afirmar o racionalismo positivista e instrumental da previsibilidade tanto quanto o irracionalismo animista e sua hiper-realidade. Ambos a serviço do conformismo às limitações da sociedade burguesa e sua desencantada a-historicidade, seus anseios de contenção e controle, de instrumentalização dos homens e administração da existência social. Uma vez assumida a intervenção explícita ou implícita de valorações e, por outro lado, o caráter de intervenção imediata e não apenas técnica do desenvolvimento e elaboração das idéias na vida social, impõe-se que:

[...] qualquer estudo sociológico, mesmo o mais honesto, o mais escrupuloso e o mais crítico, mantém sempre o caráter de uma aposta explícita ou implícita, simultaneamente teórica e prática: teórica quanto ao máximo de adequação possível ao objeto estudado, e prática quanto à possibilidade de transformar a sociedade (ou impedir qualquer transformação). (GOLDMANN, 1984, p. 25).

A gênese da sociologia está relacionada ao advento histórico da sociedade (civil e burguesa) como esfera autônoma em relação ao Estado – considerada como local dos indivíduos, interesses, grupos e conflitos – e os conseqüentes rompimentos dos laços comunitários. A sociologia nasceu como tentativa de entendimento científico da sociedade (e do social) como algo autônomo, e sua gênese está relacionada ao contexto da modernidade como sociabilidade predominante no capitalismo. Em última instância, a sociologia está ligada ao processo da revolução burguesa e conformação social daí resultante, seu nascimento, desenvolvimento e características decorrem do advento do capitalismo e são condicionados pelos diferentes processos históricos de ascensão da burguesia e estabelecimento de sua dominação, entretanto, tais processos têm diferentes desenvolvimentos nos diferentes países, bem como diferentes arranjos de classe.

Originada nesse contexto e não sendo simples forma de consciência burguesa de classe, a sociologia se  manteve, em seu processo histórico de construção, permeável à iniciativa de outros grupos e classes sociais que, em cada respectiva formação social e em luta com as demais classes, influenciaram sua criação e desenvolvimento como disciplina e ciência, sendo a ação e visão de mundo desses grupos-sujeitos, a partir de suas posições na estrutura de classes e enfrentamento com outros no processo da revolução burguesa que dão especificidade à(s) sociologia(s) em seus diversos modos de construção, de caracterização circunstancialmente nacional e tradições intelectuais.

No limite, a sociologia como ciência emerge na modernidade a partir da dissolução das amarras que mantinham os homens encadeados e hierarquizados, e constitui-se por meio do esforço e da disputa entre grupos pela hegemonia de interpretação do social, da luta de classes e das respectivas visões de mundo, bem como ganha forma estética sendo moldada por iniciativas de construção teórico/artística peculiares.

Referências bibliográficas

 ADORNO, Theodor W. A posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, Walter; HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W.; HABERMAS; Jürgen. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores). p. 269-273.

 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

 BECKETT, Samuel. Companhia. Tradução Elsa Martins. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

______. O inominável. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie (escritos escolhidos). Seleção e apresentação Willi Bolle. São Paulo: Cultrix, 1986.

 ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas, v. 1).

 FEHÉR, Ference. O romance está morrendo? Contribuição à teoria do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. (Leituras).

GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. (Literatura e teoria literária, v. 7).

 ______.  Epistemologia e filosofia política. Lisboa: Presença, 1984.

 JOYCE, James. Ulisses. 2ª ed. Tradução Antônio Houaiss. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.

 KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução Syomara Cajado. São Paulo: Nova Época, 1948.

 ______. O processo. Tradução Syomara Cajado. São Paulo: Nova Época, 1963.

 LEPENIES, Wolf.  As três culturas. São Paulo: Editora da USP, 1996.

 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico. 2ª reimpressão. São Paulo: Duas Cidades, 2006. (Espírito Crítico).

MALLARMÉ, Stéphane. Poemas. Tradução e organização de José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

 MAZLISH, Bruce. A new science: the breakdown of connections and the birth of sociology. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 1993.

 

Autor:

Edison Bariani

edsnb[arroba]ig.com.br

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP / Araraquara-SP – e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

Ponência apresentada no I Congresso de Iniciação Científica organizado pela FASAR – Faculdade Santa Rita, Novo Horizonte – SP. Setembro de 2008.



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