Resumo: A sociologia, assim como o romance, têm origens na ascensão do capitalismo, na dissolução dos laços comunitários e tradicionais do antigo regime e na criação da sociedade civil burguesa, quando o indivíduo, solitário, busca reconfigurar as conexões sociais e de sentido, na tentativa de encontrar valores autênticos que restituam o significado da vida numa sociedade já dominada pela corrosiva sociabilidade capitalista. Nesse sentido, ambos, sociologia e romance, marcados por tais origens, expressam a contradição entre as possibilidades de comunicação/narração da experiência existencial num mundo marcado pelo individualismo e pela fragmentação social.
Palavras-chave: sociologia; romance; origens; paralelos.
The origins of sociology and novel: parallels
Abstract: Sociology, as well as the romance, has origins in the ascension of the capitalism, in the dissolution of the communitarian and traditional ties of the old regimen and in the creation of the bourgeois civil society, when the individual, solitary, search to reconfigure the social connections and meanings, in the attempt to find authentic values that restitute the meaning of the life in a society ruled by the corrosive capitalist sociability. In this direction, both, sociology and romance, marked for such origins, expresses the contradiction between the possibilities of communication/narrative of the existential experience in a world marked for the individualism and the social fragmentation.
Keywords: sociology; novel; origins; parallels.
A literatura, mormente por meio de sua forma narrativa moderna de maior expressão, o romance, acusa impreteríveis relações com a sociologia e sua gênese. Segundo Mazlich (1993, p. 24), a sociologia não é simplesmente um moderno substituto intelectual do romance – talvez nunca o tenha sido, diríamos nós – e sim uma forma distinta de expressão: "While many of its roots are in the novel, [...] sociology still aspires, and should, to be a new form of science". Entretanto, no limite, ambos têm raízes na modernidade e nas formas de existência social daí decorrentes.
Embora distintas como formas de expressão, a sociologia e o romance têm raízes compartilhadas num solo comum. O contexto histórico-social da gênese de ambos é o mesmo: a ascensão do capitalismo no séc. XVIII na Europa e o advento da modernidade.
As raízes da sociologia vingaram num terreno no qual ocorria a ruptura dos laços comunitários e tradicionais, bem como o estilhaçamento das relações entre o mundo natural, social e espiritual; tais processos libertaram os homens dos laços tradicionais e, ao mesmo tempo, expulsaram-nos do seio da comunidade, a queda dessas barreiras empurrou-nos para um mundo novo e hostil, repleto de oportunidades e armadilhas, possibilidades e perplexidades.
A jornada do homem livre e perplexo nesse mundo hostil e estranho pode ser descrita como a busca do reatamento ou reconfiguração das conexões e sentidos, da totalidade oculta da vida, que se tornou problemática, num mundo abandonado por deus e marcado pela distinção entre sentido e realidade. A partir essa alienação, dessa inadequação entre o homem e o mundo exterior, dá-se a busca pela essência (agora alienada) da vida, pelo significado do mundo, pelo que há de autêntico nele e pelo autoconhecimento. Entretanto, o desenraizamento transcendental, a ruptura da corrente de conexões, a oposição entre o interior e o exterior desse homem, que o torna tanto criador quanto observador de sua própria vida, só logram conduzi-lo à desilusão, à resignação, à passividade e, por fim, à solidão. O relato incômodo desse mundo, tão fiel ao processo de nascimento da sociologia, na verdade, refere-se às origens do romance (LUKÁCS, 2006).
No romance, a busca por valores autênticos num mundo degradado reflete a contradição entre o individualismo da sociedade burguesa e os constrangimentos sociais dela decorrentes. O romance transpõe para o plano literário a vida cotidiana e orientada para a produção para o mercado; assim, a busca por valores autênticos é, analogamente, a busca pela experiência e significado social das coisas de modo não-alienado, do valor de uso, numa sociedade orientada para o valor de troca. Isto posto, haveria uma "homologia de estruturas entre gênero romanesco e produção para o mercado" (GOLDMANN, 1976, p. 18). Tal "homologia de estruturas" não implica numa identidade de conteúdos, nem na expressão de determinada visão de mundo de uma classe social, indica a existência de problemas relacionados à consciência coletiva, a todos os grupos e à forma de sociabilidade imposta pela sociedade burguesa. O romance, embora esteja ligado à ascensão do capitalismo e à história da burguesia, não é – de modo restrito – expressão da consciência burguesa de classe; estaria relacionado à atuação de "indivíduos problemáticos" não completamente integrados no mercado, que buscariam bens qualitativos (valores de uso, autênticos) num mundo cuja produção destes não seria prioridade. Esses indivíduos desajustados encontrar-se-iam, sobretudo, nas camadas médias (GOLDMANN, 1976, p. 17) – nas quais se recruta a maior parte dos romancistas (ibidem, p. 22).
Assim como o romance é uma criação da sociedade burguesa, mas cuja forma não comunica unicamente uma visão burguesa do mundo e se abre a novas possibilidades de expressão e, logo, de contestação, paralelamente, a sociologia não pode ser considerada uma "ciência burguesa", no sentido de que estaria ligada não somente ao nascimento de uma classe social portadora de um projeto universal e arquiteta de um mundo e sociabilidade próprios (o que é factível), mas sim a uma visão de mundo de uma classe e sua consciência possível, racionalização ordenadora de suas experiências e interesses com base num arsenal cultural próprio.
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