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Nacib e gGabriela ou hibridação entre moderno e pré-moderno (página 2)

Prof. Odilon P. de Mesquita Filho

– Preciso não... Pra quê? (AMADO, 2002, p. 181)

Gabriela é desprovida de ambição por bens, sem ainda fazer parte da sociedade moderna de consumo:

Estava contente com o que possuía, os vestidos de chita, as chinelas, os brincos, o broche, uma pulseira, dos sapatos não gostava, apertavam-lhe os pés. Contente com o quintal, a cozinha e seu fogão, o quartinho onde dormia, a alegria quotidiana do bar com aqueles moços bonitos – o professor Josué, seu Tonico, seu Ari – e aqueles homens delicados – seu Felipe, o Doutor, o Capitão – contente com o negrinho Tuísca seu amigo, com seu gato conquistado ao morro (AMADO, 2002, p. 183).

A relação de produção entre Nacib e Gabriela evolui para uma relação matrimonial. Nacib tem uma concepção burguesa moderna do casamento, visando sempre um cônjuge de mesma classe social ou superior:

[...] Mas como casar com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no mercado dos escravos? Casamento era com senhorita prendada, de família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade (AMADO, 2002, p. 200).

Nacib se preocupa mais com os signos de distinção social: "cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no mercado dos escravos." Todos esses signos, típicos das classes populares, são negativos para a posição social de Nacib. Em sua visão moderna do casamento, ele deveria procurar signos que o distinguisse das classes subalternas: "senhorita prendada, de família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade."

Gabriela, entretanto, não deseja o casamento burguês:

Contente com seu Nacib. Era bom dormir com ele, a cabeça descansando em seu peito cabeludo, sentindo nas ancas o peso da perna do homem gordo e grande, um moço bonito. Com os bigodes fazia-lhe cócegas no cangote. Gabriela sentiu um arrepio, era tão bom dormir com homem, mas não homem velho por casa e comida, vestido e sapato. Com homem moço, dormir por dormir, homem forte e bonito como seu Nacib. (AMADO, 2002, p. 183).

Num primeiro momento, Nacib dá o passo inicial de hibridação cultural, tomando Gabriela como esposa, embora ela não apresente os signos de distinção social exigidos pela sua posição de comerciante. Apesar disso, tenta excluir e substituir a visão pré-moderna de Gabriela. Antes mesmo do casamento, tenta impor o ponto de vista de sua posição sócio-econômica, ao mesmo tempo em que se esforça para manter a aparência dos signos de distinção social:

[...] Nacib mandara Gabriela para a casa de dona Arminda. Não ficava bem ela dormindo sob o mesmo teto que o noivo.

– Por quê? – perguntou Gabriela. – Importa não... Importava, sim. Agora era sua noiva, seria sua esposa, todo o respeito era pouco (AMADO, 2002, p. 235).

Depois do casamento, continua o esforço doutrinário de Nacib para substituir-lhe a cultura pré-moderna e fazê-la assumir os signos de distinção de sua classe social:

– Ouça, Bié, já te disse: você agora não é mais uma empregadinha. É uma senhora. A senhora Saad. Precisa se compenetrar disso. Tem uma conferência, vai falar um doutor que é um colosso. Toda a nata de Ilhéus vai estar lá. Nós também. Não se pode deixar uma coisa assim, importante, para ir a um circo mais vagabundo e rastaqüera. (...)

– Bié, escuta: você precisa se instruir, você é uma senhora. Tem de viver, de se comportar, como a senhora de um comerciante. Não como uma mulherzinha qualquer. Tem que ir a essas coisas que a nata de Ilhéus freqüenta. Pra ir aprendendo, se instruindo, você é uma senhora. (AMADO, 2002, p. 254).

Mas essa tentativa de exclusão e substituição do pré-moderno resulta em fracasso total: Gabriela não é fiel sexualmente a Nacib e a relação matrimonial formal entre ambos é anulada. Eles voltam a uma relação de trabalho, até que encontram uma forma híbrida de relacionamento: uma mistura inédita, complexa e contraditória de: empregada – patrão, esposa – marido, amante-concubina, namorado – namorada:

[...] Entrou em casa, tirou a roupa. Dos fundos, da cozinha ou da copa, veio um ruído de louça partida. Foi ver o que era. Um gato fugiu para o quintal. A porta do quartinho dos fundos estava aberta, ele espiou. A perna de Gabriela pendia da cama, ela sorria no sono. Um seio crescia no colchão e o cheiro de cravo tonteava. Aproximou-se. Ela abriu os olhos e disse:

– Seu Nacib...

Ele a olhou e, alucinado, viu a terra molhada de chuva, o chão cavado de enxada, de cacau cultivado, chão onde nasciam árvores e medrava o capim. Chão de vales e montes, de gruta profunda, onde estava plantado. Ela estendeu os braços, puxou-o para si.

Quando se deitou a seu lado e tocou seu calor, de súbito então tudo sentiu: a humilhação, a raiva, o ódio, a ausência, a dor das noites mortais, o orgulho ferido e a alegria de nela queimar-se. Segurou-a com força, marcando de roxo a pele cor de canela:

– Cachorra! Ela sorriu com os lábios de beijos e dentada, sorriu com os seios erguidos, palpitantes, com as coxas de labareda, com o ventre de dança e de espera, murmurou:

– Importa não...

Encostou a cabeça em seu peito peludo:

– Moço bonito.

Mas Gabriela, ainda que represente o pré-moderno, se deixa influenciar pela tecnologia do divertimento urbano, num processo inicial de hibridação cultural:

[...] Gabriela voltava para casa após pedir:

– Deixa eu ir ao cinema hoje? Pra acompanhar dona Arminda... Tirara da caixa uma nota de cinco mil-réis, generoso:

– Pague a entrada dela... (AMADO, 2002, p. 164)

O cinema consegue provocar em Gabriela uma "reestruturação" simbólica, com que, geralmente, "os migrantes do campo adaptam seus saberes para viver na cidade." (CANCLINI, 2000, p. 18). Ela equipara circo a cinema e opõe ambos à conferência literária: "– Seu Nacib... O doutor falando, a gente ouvindo... E seu Nacib compara com cinema, com circo, que coisa! E logo seu Nacib, tão instruído. Melhor que circo, pode ser não" (AMADO, 2002, p. 253).

No romance Gabriela, Cravo e Canela, parece predominar, inicialmente, uma visão dicotômica entre arte culta e arte popular ou folclore. Essa dicotomia é representada pelos desencontros entre Gabriela e Nacib. Este representa a arte culta, ligada a grupos sociais hegemônicos, enquanto a primeira representa a arte popular e o folclore, ligados aos grupos sociais subalternos. Os dois campos artísticos aparecem, inicialmente, no romance, como opostos e inconciliáveis, de modo maniqueísta, a ponto de contribuírem para tornar impossível o casamento formal entre estes personagens: de um lado, Nacib, ligado ao moderno, culto, hegemônico; de outro, Gabriela, ligada ao tradicional, popular, subalterno (Cf. CANCLINI, 2000, p. 205-6).

Quando um circo mambembe chega a Ilhéus, manifesta-se a primeira contradição entre os campos culturais culto e popular, na vida do casal. Sobre o circo, diz Nacib: "– Não se preocupe... – informava Nacib, de pé ao lado da mesa ilustre. Esse é um cirquinho vagabundo, está vindo de Itabuna. Não vale nada. Não tem animais, artista que preste. Só mesmo menino é que vai..." (AMADO, 2002, p. 248) . Entretanto, a reação de Gabriela à chegada desse mesmo circo é outra:

Gabriela batia palmas com as mãos ao ouvi-lo contar as peripécias do dia, as notícias do mundo mágico do circo.

– Tuísca, tu ainda vai ser um artista de verdade. Amanhã estou lá, na primeira fila. Vou convidar dona Arminda – pensava. – E vou falar com seu Nacib pra ele ir também. Ele bem que podia ir, deixar o bar um pouquinho. Pra te ver... Vou bater tanta palma de inchar as mãos. Gabriela tinha idéias definitivas sobre circos:

– Tudo que é circo é bom. Pode ta caindo aos pedaços, é bom. Não há coisa melhor do que função de circo. Gosto até demais. Amanhã tou lá, batendo palma. E vou levar seu Nacib. Pode contar (AMADO, 2002, p. 251).

O confronto entre folclore, ligado às classes populares, e manifestações culturais das classes hegemônicas também se apresenta na relação de Gabriela com Nacib. Por ocasião das festas de fim de ano, quando ela quer desfilar no cordão das pastoras, ele se opõe, levando-a para a festa de reveillon, no Clube Progresso. Mas, quando Gabriela está com Nacib na festa,

[...] ouviu-se, vindo da rua, música de cavaquinhos e violões, de flautas e pandeiros. E vozes a cantar cantigas de reisado. Gabriela elevou a cabeça. Enganar-se não podia. Era o terno de Dora. Parou em frente ao Clube Progresso, silenciou a orquestra do baile, todos correram para as janelas e portas. Gabriela enfiou o sapato, foi das primeiras a chegar ao passeio.

[...] As pastorinhas com as lanternas, Miquelina com o estandarte. Nilo, o exmarinheiro, com um apito na boca, comandava o cantar e o dançar. Da praça Seabra, na mesma hora, vinham o boi, o vaqueiro, a caapora, o bumba-meu-boi. Dançando na rua. As pastorinhas cantavam:

Sou linda pastorinha venho

Jesus adorar

No presépio de Belém

os reis magos saudar. (AMADO, 2002, p. 306).

A divisão entre cultura popular e a festa de reveillon, parece ser tão rígida quanto a divisão entre as classes sociais: "Ali não pediam entrada, não se atreviam a perturbar a festa dos ricos. Mas Plínio Araçá, à frente de garçons, trouxera garrafas de cerveja, distribuía. O boi descansava um minuto, a beber. A caapora também" (AMADO, 2002, p. 307).

A cultura latino-americana é híbrida, isto é, apresenta "sedimentação, justaposição e o entrecruzamento de tradições indígenas, do colonialismo ibérico católico e das ações políticas, educativas e comunicacionais modernas" (CANCLINI, 2000, p. 73). Não se pode separar rigidamente um perfil moderno para a festa de reveillon, no Clube Progresso, e um perfil tradicional e folclórico para a cultura popular, no terno de reisado. No espaço urbano de Ilhéus observa-se uma mestiçagem interclassista entre dominantes e dominados. A própria Gabriela, nesse momento, é a encarnação dessa mestiçagem: retirante cozinheira e, ao mesmo tempo, senhora Saad,

[...] Gabriela descalçou os sapatos, correu para a frente, arrancou o estandarte das mãos de Miquelina. Seu corpo rodou, suas ancas partiram, seus pés libertados a dança criaram. O terno marchava, a cunhada exclamou: – Oh!

Jerusa olhou e viu Nacib quase a chorar, a cara parada de vergonha e tristeza. E então também ela avançou, tomou a lanterna de uma pastora, se pôs a dançar. Avançou um rapaz, um outro também, Iracema tomou a lanterna de Dora. Mundinho Falcão tirou o apito da boca de Nilo. O Mister e a mulher caíram na dança.

A senhora de João Fulgêncio, alegre mãe de seis filhos, a bondade em pessoa, entrava no terno. Outras senhoras também, o Capitão, Josué. O baile inteiro na rua a brincar. No rabo do terno a irmã de Nacib e seu marido doutor. Na frente Gabriela, o estandarte na mão (AMADO, 2002, p. 307).

No conflito entre o cordão de pastoras e a festa social no Clube Progresso, a hibridação cultural se manifesta em cores vivas.

No romance de Jorge Amado, a oposição entre modernidade e pré-modernidade, entre arte culta e arte popular é representada, respectivamente, pelos personagens Nacib e Gabriela. Essa diferença de temporalidades históricas marca as relações entre ambos, tanto as trabalhistas como as matrimoniais, que evoluem de uma contradição dicotômica, até desembocarem numa forma híbrida inédita, complexa e contraditória. O folclórico terno de reis e a festa no Clube Progresso, entram em processo de hibridação, no meio da rua, sob o comando de Gabriela, com o estandarte na mão.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. 87 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. 343p.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2000, 381p.

SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, 242p.

Graphos. João Pessoa, Vol 7., N. 2/1, 2005

 

Autor:

Prof. Odilon P. de Mesquita Filho

o.pinto[arroba]terra.com.br

Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus - Bahia.



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