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Dentre as diversas transformações que se processavam nas formas de codificar a experiência musical a partir da reforma guidoniana, podemos destacar que o desenvolvimento da square notation sugere que o canto passou a ser pensado mais em termos de notas individuais do que em linhas ou frases melódicas improvisadas. A maior visibilidade dada a cada nota em particular fez com que esta divisão em quadrados facilitasse o canto a partir de um codex, revelando a tendência de se cantar diretamente de um livro ao invés de resgatar uma experiência memorizada. Os livros de canto podiam ser encomendados de copistas profissionais não familiarizados com as idiossincrasias das escritas musicais das diversas regiões, e as novas ordens religiosas (como os franciscanos, dominicanos e agostinianos) tornaram obrigatória a square notation para os livros de canto. A secularização da produção dos livros para o canto e o surgimento dos copistas profissionais foram impulsos importantes em direção à simplificação e padronização da escrita musical. Esse processo também incidiu no estabelecimento de uma aparência geral para os neumas. A partir do século XIII predominou na Europa o modelo misto de Alemanha-Messina de grafia dos neumas, que colocava maior ênfase na nota individual em detrimento do contorno melódico.
Até então, o ritmo musical era dado pelo ritmo das palavras. O desenvolvimento da notação mensural indica o rompimento desta simbiose. A necessidade de medir a duração dos sons foi ganhando força à medida que se tratou de codificar o canto polifônico, pois era necessário encontrar na escrita uma forma de coordenar as ações das diversas vozes. Ainda no século XIII esta relação entre a prática da música polifônica e a teoria musical era problemática, pois esta última buscava traduzir ou moldar uma tradição musical que nascera pelo menos meio século antes. Desse modo, o sistema de ritmo modal desenvolvido pelos tratadistas para descrever as práticas dos cantos polifônicos era bastante impreciso. Ele basicamente padronizava alguns modos rítmicos que eram mais freqüentes na prática musical.
Entre os séculos XIII e XIV o desenvolvimento da notação se deu quase exclusivamente no âmbito do ritmo. Neste sentido se destacam as ações de Franco de Cologne, que desenvolveu um sistema no qual os símbolos das notas eram capazes de indicar os modos rítmicos ao invés de serem determinados por eles. As relações internas entre as figuras foram se tornando mais importantes do que as relações entre elas e o texto ou o contexto musical. Ainda no século XIV, tratadistas posteriores a Franco de Cologne assumiram o seu legado e distinguiram visualmente quatro níveis principais de valor das notas (longa, breve, semibreve e mínima), estabelecendo relações binárias e ternárias entre elas. Mas foi somente no começo do século XVI que os valores das notas vieram a ser determinados com precisão pela aparência, independentemente do contexto em que eram identificadas como breve, longa, etc. Este foi um passo importante em direção à simplificação e praticidade do sistema de notação mensural.
Tais elementos estabeleceram as bases para o desenvolvimento da notação musical a partir do Renascimento. Até então, os sistemas de notação medievais estavam dirigidos, sobretudo, aos cantores. Nos séculos seguintes (XVI, XVII e XVII), especialmente depois do surgimento do baixo contínuo, (SADIE, 2001: 140) "[...] teoria e ensino foram paulatinamente sendo controlados por instrumentistas como tecladistas, e a notação de pauta utilizada para a maior parte do repertório foi influenciada pelas necessidades instrumentais, adotando muitas características que a permitiram expressar informações cada vez mais complexas.".
Durante este período também foram desenvolvidas várias propostas de reforma da notação musical com o objetivo de alcançar uma representação universal, ilustrando (SADIE, 2001: 140) "[...] o desejo destes copistas por uma notação independente de qualquer estilo musical.". Estes impulsos em direção a um "desenraizamento" completo da escrita musical eram acompanhados por ações menos ambiciosas, mas provavelmente muito mais efetivas. Copistas como o próprio Bach, por exemplo, preferiam escrever os ornamentos melódicos, e esta tendência acompanhou o declínio das ornamentações improvisadas. No âmbito do ritmo, a falta de confiança nas fórmulas de compasso como indicadoras da pulsação levou ao emprego de termos específicos para este propósito. Mas até mesmo estas indicações não foram suficientes. Em busca de maior precisão, os andamentos foram especificados em função do metrônomo e, no século XX, passou-se a indicar a duração exata da peça em minutos e segundos.
Mesmo em povos possuidores de uma escrita musical, a tradição oral se mantinha como principal meio de transmissão do conhecimento musical. No Ocidente, por outro lado, a tradição musical foi conservada especialmente através dessa nova forma de notação desenvolvida a partir do século XI, que era capaz de determinar de maneira precisa os diversos elementos que se articulavam dentro de uma composição. Nas palavras de Max Weber (WEBER, 1995: 119):
"Uma notação desta espécie é, para a existência de uma música tal como a possuímos, de importância muito mais fundamental do que, digamos, a espécie de escrita fonética para a existência das formas artísticas lingüísticas [...] uma obra de arte musical moderna, por menos complicada que seja, não poderia ser reproduzida, nem transmitida, nem reproduzida sem os meios de nossa notação: sem ela uma obra musical moderna não pode em geral existir em lugar algum e de nenhuma maneira, nem mesmo como uma propriedade interna de seu criador.".
Esta reflexão de Weber também nos possibilita vislumbrar algumas questões. Além de constituir um dos pilares fundamentais sobre os quais se apóia toda a música moderna ocidental, nosso sistema de notação musical também se insere no processo de "perda da memória" que Walter Benjamin, em 1936, já dava por consumado (BENJAMIN , 1994).
Ainda que houvessem existido diversos sistemas de representação e decodificação da experiência musical, as distintas formas de transmissão deste conhecimento sempre haviam dependido essencialmente da tradição oral. O contato direto entre músicos abrira um canal por onde melodias e ritmos puderam deslizar ao longo dos séculos e milênios. Através deles se contava e recontava uma história, e cada experiência única garantia sua continuação. A tradição se mantinha, em última instância, na efemeridade de cada experiência musical singular. Não a tradição entendida como argumento próprio das classes dominantes num esforço para se distanciarem e diferenciarem das demais. Mas a tradição que nasce de uma experiência coletiva e que, ao longo dos anos, tece uma história.
Benjamin descreve a construção das narrativas como um longo processo, pautado por um ritmo semelhante ao da formação da crosta terrestre; uma lenta superposição de camadas. Elas pertencem, portanto, a determinadas formas de vivência em que o ritmo das transformações está organicamente relacionado com o próprio ritmo da vida humana (BENJAMIN, 1994: 202). As transformações no domínio da experiência musical seguiam um tempo semelhante, pois, em última instância, dependiam tanto do contato direto entre duas ou mais pessoas quanto da limitação fundamental que a tradição oral impunha ao volume e à complexidade do conhecimento que era transmitido.
A apropriação racional dos mais diversos aspectos do fenômeno musical através da previsão e do cálculo possibilitou que o desenvolvimento da música ocidental se descolasse de tal ritmo. As infinitas possibilidades que se abriram ao racionalismo ocidental com o desenvolvimento da notação musical moderna alteraram a própria natureza da experiência musical e romperam a simbiose entre tradição oral e escrita musical: nossa notação foi um impulso fundamental para libertar a ratio musical das amarras da tradição oral. Em suas linhas e espaços puderam ser reunidos e sintetizados diversos princípios e práticas musicais heterogêneos, como a polifonia, o contraponto, o cânone, a fuga, a imitação, etc. Dessa maneira foi possível organizar e coordenar as ações de um sem número de instrumentos, assim como determiná-las de maneira precisa. E além de garantir a precisão técnica da execução musical, essa notação também possibilitou uma virada qualitativa na práxis da música ocidental. O desenvolvimento de uma música baseada fundamentalmente na progressão de acordes em centros tonais, particularidade específica de nossa cultura musical, depende essencialmente dessa notação.
Com tudo isso, o ritmo das transformações na vida musical se acelerou intensamente, deixando para trás a tradição, a narrativa, o narrador, a experiência, a memória... A relação entre o ouvinte e o narrador, que segundo Benjamin (BENJAMIN, 1994: 210) "[...] é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado", já não é mais possível, pois ela pressupõe que (GAGNEBIN, 1994: 10) "a experiência transmitida pelo relato dever ser comum ao narrador e ao ouvinte". Neste sentido, a memória aparece em Benjamin como a faculdade que possibilita ao narrador articular as histórias que constituem uma tradição. No entanto, as condições sociais que permitiam uma (GAGNEBIN, 1994: 9) "experiência e uma narratividade espontâneas", a saber, uma organização comunitária centrada no artesanato, foram destruídas pelo desenvolvimento do capitalismo e da técnica. Ou seja, perdera-se a capacidade de intercambiar experiências, pois já nem existem mais experiências comuns, nem as próprias condições para que elas possam ser contadas e recontadas. Portanto, a destruição dos antigos laços comunitários e a perda da capacidade de intercambiar experiências também anunciam o fim da memória – que retinha e recriava as histórias nascidas das experiências comuns – e da tradição – que resultava do acúmulo dessas histórias.
Se as transformações ocorridas na vida musical entre os séculos XI e XV dão início ao desmanche do tecido da memória, a partir do Renascimento já começamos a vislumbrar suas conseqüências. As determinações dos diversos âmbitos da execução musical são cada vez mais estabelecidas em função de uma ordem abstrata[3]. No decurso de seu desenvolvimento, a partitura passa a se alimentar das próprias relações internas entre os elementos musicais. E estes últimos também vão se distanciando paulatinamente de suas origens numa tradição musical concreta até o ponto em que qualquer lastro com uma realidade viva se torna desnecessário[4].
A relação entre o homem e a música que nasce da partitura se assemelha àquela entre o homem e o romance. Contrapondo o romance à narrativa, Benjamin nos conta que (BENJAMIN, 1994: 201)
"A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive.".
O compositor moderno guarda semelhanças com o romancista. À diferença do aedo, por exemplo, sua música não recria experiências comuns e concretas. Não anuncia a chegada da primavera, não celebra a colheita bem sucedida, não evoca as lembranças de um exílio[5]. Sua obra, que nasce do isolamento, se dirige também ao indivíduo isolado; e, como afirma Weber, adquire o caráter de uma redenção intramundana, (WEBER, 2006: 338) "[...] libertando o homem do quotidiano e, sobretudo, também da pressão crescente do racionalismo teórico e prático.". Deste modo se aproxima novamente do romance, mas agora do ponto de vista do leitor. Segundo Benjamin (BENJAMIN, 1994: 214)
"[...] o leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler o "sentido da vida". Ele precisa, portanto, estar seguro de antemão, de um modo ou outro, de que participará de sua morte. [...] Em conseqüência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro.".
Liberta dos fins práticos aos que servia, a música se torna um ponto de fuga para nossa existência insalubre. Assim como a morte no romance, ela deve ajudar a ocupar o vazio que nos preenche. Ela deixa de contar e ensinar coisas sobre nossa própria vida concreta e real e se torna um meio de afastar-nos dessa vida, seja sublimando nosso espírito para transcendê-la, ou entretendo nossas mentes e corpos para esquecê-la.
Faz-se necessário um breve esclarecimento de nossa posição em relação ao pensamento de Adorno sobre o processo de racionalização da música. Limitando-nos aos objetivos deste trabalho destacamos que, neste autor, essa problemática se desenvolve em duas direções. Por um lado, a tradição musical burguesa se apresenta como um processo dialético. Em sua fase progressista, que encontra seu ponto de virada na obra de Beethoven, o todo musical seria resultante da particularidade de cada um de seus motivos musicais, coincidindo assim com a fase progressista da sociedade burguesa, onde o todo social seria a consequência da associação entre cada indivíduo em particular. Em sua fase decadente, que culminaria com a obra de Wagner – que é, ao mesmo tempo, a que abre definitivamente espaço para a superação da tonalidade –, o todo musical, preestabelecido, se impõe sobre cada individualidade, coincidindo assim com uma concepção da sociedade que se aproxima tanto do ideário nazista quanto das relações sociais dentro das "democracias de massas". Neste último caso, a produção de subjetividade na linha de montagem da indústria cultural se utiliza da música como instrumento de dominação social e veículo de alienação das massas, expondo o ouvinte à constante repetição de fórmulas musicais rasas e padronizadas. Por outro lado, a "nova música", representada especialmente pela obra de Schoenberg, também apresenta uma relação dialética. Com a dissolução da tonalidade e da falsa identificação entre parte e todo, essa música lograria revelar a violência do todo social sobre os indivíduos que são objeto de sua dominação. No entanto, também representaria a elevação ao extremo da racionalidade procedural, onde a música, por fim, acaba se reduzindo simplesmente à aplicação de determinados procedimentos matemáticos, onde todo potencial criativo humano volta a ser dominado pela mesma racionalidade da qual tentara escapar.
Reconhecendo todo o valor das idéias adornianas, queremos marcar aqui nossa diferença. Em nossa análise sobre o desenvolvimento da notação musical, o processo de racionalização aparece como separação entre indivíduo e música. Ao alimentar-se apenas de suas relações intrínsecas, a música tende a se descolar de todas as dimensões da vida social, entre elas, a dança, a religião, as festividades, etc... Nesse sentido, manifesta a perda de uma experiência coletiva e a elevação da figura solitária do compositor, que traça no pentagrama tanto as notas de uma obra prima quanto as de um primeiro lugar nas paradas de sucesso. Ou seja, enquanto Adorno contrapõe a repressão da indústria cultural à sublimação da verdadeira arte, nossa perspectiva neste breve estudo sobre o desenvolvimento da notação musical procura destacar a irreversível situação de que esses dois tipos de experiência musical postulados pelo frankfurtiano só se tornam uma realidade dominante quando a música se desprende da vida concreta dos indivíduos aos quais ela se destina.
ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 1989.
________. "Sobre música popular". Em COHN, G. (org.). Theodor W. Adorno: sociologia. São Paulo: Ed. Ática, 1994.
BENJAMIN, W. "Experiência e pobreza" e "O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". Em BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENT, I. D./ HUGHES, D. W., PROVINE, R. C., RASTALL, R. (I-II, com KILMER, A., I, 2), HILEY, D., SZENDREI, J. (III, 1), HILEY, D./PAYNE, T. B. (III, 2), BENT, M. (III, 3), CHEW, G./RASTALL, R. (III, 4-6). Verbete "Notation". Em SADIE, S. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres: MacMillan, 2001.
GAGNEBIN, J. M. "Walter Benjamin ou a história aberta". Prefácio a BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LANG, P. H. "The Enlightenment and Music". Em Eighteenth-Century Studies. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1967.
LIMA REZENDE, Gabriel S. S. La música como dimensión constitutiva del racionalismo occidental. Max Weber y Los fundamentos racionales y sociológicos de la música. Universidad de Granada, 2007. Trabalho apresentado para a obtenção do Diploma de Estudios Avanzados.
WEBER, M. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995.
_______. Sociologia das religiões. Lisboa: Relógio D"Água, 2006.
[1] Agradeço as leituras atentas dos professores Sergio Silva, José Roberto Zan e Leopoldo Waizbort.
[2] Os gregos já haviam estabelecido toda a estrutura físico-matemática empregada até então no processo de racionalização da música. Mas ainda faltava a experimentação racional, fruto do Renascimento, a partir da qual foram estabelecidos os princípios teóricos do temperamento e sua realização prática e efetiva no piano.
[3] Por exemplo: em algum momento as fórmulas de compasso mantinham relação direta com a vida musical, e por isso eram capazes de indicar a pulsação a ser seguida. Se por um lado a confusão criada pela dificuldade de determinação da pulsação atesta uma necessidade de controle cada vez mais intensa sobre a composição bem como o incremento de sua complexidade, por outro ela manifesta a falta de um referencial comum que fizesse convergir a expectativa de seu(s) executante(s).
[4] E é justamente no contexto dos nacionalismos musicais, quando este processo de "perda da memória" já se encontra amplamente disseminado, que os compositores vão buscar nos redutos em que se mantém vivas algumas tradições os elementos para construir uma "identidade nacional".
[5] Em um mundo "encantado", Weber nota que (WEBER, 1991: 403) "Toda atitude receptiva ingênua para com a arte parte em primeiro lugar da significação de seu conteúdo, e este pode ter efeito gerador de comunidade. A descoberta consciente do especificamente artístico está reservada à civilização intelectualista. Mas é precisamente com isso que desaparece o caráter da arte de fundadora da comunidade [...]".
Autor:
Gabriel S. S. Lima Rezende
gabriel_baixo[arroba]yahoo.com.br
Doutorando em Musicologia pela Universidad de Granada/Espanha e mestrando em Sociologia pela UNICAMP
Fonte: Revista Espaço Acadêmico Nº85, Junho de 2008
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