O jurista Hans Kelsen se revela como defensor do normativismo, ou seja, preconiza que a validade das normas reside no preenchimento de requisitos formais. Neste artigo é feita uma releitura dos principais pontos abordados pela teoria do direito de Kelsen; assim, analisa-se o processo de aplicação do direito em face à indeterminação que lhe é intrínseca, de modo a chegar a conclusões críticas acerca desta teoria.
Palavras-chave: Hans Kelsen, hermenêutica, nazi-fascismo, validade das normas
Hans Kelsen, através de uma perspectiva normativista, procura formular uma teoria pura do direito que funda a ordem jurídica na norma, sem levar em conta como fundamento de validade qualquer aspecto subjetivo, sociológico ou cultural. O direito é entendido exclusivamente a partir da normatividade e da validade, então seu campo nada tem a ver com a ética ou com a moralidade.
Neste sentido, a proposta kelseniana prevê que as normas jurídicas devem ser estudadas pela ciência do direito; as normas morais, por sua vez, são objeto de estudo da ética. Mais especificamente, o raciocínio jurídico não deverá versar sobre o que é certo ou errado, mas sim sobre o que é válido ou inválido.
A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade justifica-se pela tentativa de autonomização da ciência jurídica em relação aos outros campos científicos. O direito é positivo na medida em que é o direito posto pela autoridade do legislador, dotado de validade, por obedecer a requisitos formais. Em decorrência disto, o direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como direito, pois é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais.
Segundo Kelsen, o que é justiça é relativo. Isto corrobora-se pois não há concordância entre os povos sobre qual o definitivo conceito de justiça. Portanto, discutir sobre a justiça é tarefa da ética. Segundo Pierre Bourdieu, a tese de Kelsen se aproxima com a de Saussure na lingüística, na medida em que:
A tentativa de Kelsen, firmada no postulado da autolimitação da pesquisa tão só no enunciado das normas jurídicas, com exclusão de qualquer dado histórico, psicológico ou social e de qualquer referência às funções sociais que a aplicação prática destas normas pode garantir, é perfeitamente semelhante à de Saussure que fundamenta a sua teoria pura da língua na distinção entre lingüística interna e a lingüística externa, quer dizer, na exclusão de qualquer referência às condições históricas, geográficas ou sociológicas do funcionamento da língua ou das suas transformações (Bourdieu, pp. 211-212)
Neste artigo é feita uma releitura dos principais pontos abordados pela teoria do direito de Kelsen; assim, analisa-se o processo de aplicação do direito em face à indeterminação que lhe é intrínseca, de modo a chegar a conclusões críticas acerca desta teoria, na medida em que o próprio nazi-fascismo poderia ser considerado direito legítimo. Não obstante, pretende-se mostrar que o próprio nazi-fascismo se utilizou desta teoria como fonte de legalidade das suas ações.
Não se pretende aqui realizar um estudo exaustivo da visão sobre a hermenêutica de Kelsen, mas sim analisar elementos desta visão que sejam complexos e, por vezes, controversos na teoria do direito. Compreende-se que o instrumento da releitura promove a atualização e discussão de temas consagrados na teoria kelseniana. Logo, nas palavras de Bourdieu:
A capacidade de reproduzir activamente os melhores produtos dos pensadores do passado pondo a funcionar os instrumentos de produção que eles deixaram é a condição do acesso a um pensamento realmente produtivo (Bourdieu, p. 63)
O pressuposto essencial na hermenêutica jurídica em Hans Kelsen é o fato de que esta é "uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior" (Kelsen, p. 463) de modo a fixar um sentido para a norma. Depreende-se, daqui, que há possibilidade de interpretação em qualquer hierarquia em que se encontre a norma; o que difere, na verdade, é o grau de liberdade da atividade hermenêutica.
Ademais, a fixação de sentido da norma pode ser realizada, a priori, por três entes: os órgãos aplicadores; os indivíduos que observam a norma; e a ciência do direito. Em linhas gerais, os primeiros criam uma nova norma a partir de normas anteriores; os segundos interpretam a norma para afastar a sanção que a corresponde; e a terceira interpreta a norma para que possa descrevê-la.
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