Bárbaros antigos ou modernos?

Enviado por Michel Silva


  1. Resumo
  2. Introdução
  3. Um Oriente imaginado
  4. Sobre bárbaros, guerras e tiranos
  5. Considerações finais
  6. Referências

Resumo

Pretende-se neste artigo analisar a construção do discurso sobre os persas – chamados "bárbaros" pelos gregos – no filme 300. Partindo da idéia de "orientalismo", de Edward Said, procuraremos demonstrar os aspectos anacrônicos da representação que o filme faz dos bárbaros, expressando aspectos políticos contemporâneos, estranhos aos gregos antigos.

Palavras-chave: Batalha nas Termópilas; bárbaros; orientalismo; Pérsia.

Introdução

De tempos em tempos surgem nos cinemas filmes que ocupam a agenda daqueles que se dedicam à História; dentre esses filmes, um dos mais recentes é 300, baseado nos quadrinhos de Frank Miller. Em função do seu conteúdo ideológico, é um dos filmes mais atuais que passaram pelas salas de cinema nos últimos tempos, embora pretenda narrar fatos ocorridos milênios atrás. Esse filme, que aparentemente mostra apenas uma batalha entre persas e gregos na Antigüidade, tem como tema central uma suposta guerra entre Ocidente e Oriente, "civilizados" e "bárbaros", Oeste e Leste, "nós" e "eles". Dessa suposta luta de razão e democracia contra misticismo e tirania, acabam surgindo mártires, lembrados como exemplo de grande bravura.

No filme 300 é narrada a batalha ocorrida no desfiladeiro das Termópilas, em agosto de 480 a.C., no contexto da segunda guerra Médica. Nessa batalha trezentos espartanos, sob

o comando do rei Leônidas, e cerca de sete mil soldados de outras cidades helênicas enfrentaram tropas persas de cerca de duzentos mil homens liderados pelo "Grande Rei", Xerxes. Embora tenham sido aniquiladas, as tropas gregas conseguiram impor grandes perdas ao exército persa, atrasando em vários dias seu avanço. Em setembro de 480 a.C. os gregos derrotaram os persas na batalha naval de Salamina e, um ano depois, em Plataia, as forças combinadas das cidades helenas derrotaram definitivamente as tropas de Xerxes.

Em excelente resenha, Delfino (2007, p 14-16) caracteriza 300 como "violento, caricatural, historicamente impreciso, que comete infidelidades em relação à obra original e que manifesta rasgos reacionários". O autor chama a atenção para vários aspectos anacrônicos do filme, como a "defesa da justiça, da democracia e da razão", que servem como argumento para justificar a resistência grega contra a invasão persa.

Segundo Delfino, "nenhum desses conceitos nem sequer existia para os gregos, e muito menos para os espartanos, com o mesmo significado que nós lhes damos hoje". Mesmo realizando essas análises, o autor termina corroborando o discurso ideológico central do filme ao afirmar ser um ato de resistência do rei Leônidas a recusa em se ajoelhar diante de Xerxes.

Outro comentarista, Bonalume Neto (2007, p. 48-9), que não partilha das mesmas posições progressistas do anterior, se refere aos espartanos como "heróis que morreram por uma causa nobre". Para ele "a grande vencedora das guerras entre gregos e persas foi a civilização", afinal "a Grécia é o berço do mundo moderno, de conceitos filosóficos importantes, da democracia". Salienta que teria sido vazia a vitória grega "se não houvesse liberdade de expressão, democracia e respeito aos direitos humanos – os principais valores ocidentais".

Bonalume Neto reivindica simpatia pelas posições de um "sujeito conservador", Victor Davis Hanson, para quem, caso os persas tivessem derrotado os gregos, teríamos "crônicas do estado em vez de história", "orgulho da raça em vez de orgulho na cultura" e "uma rígida casta sacerdotal em vez de intelectuais livre-pensantes". No mesmo sentido vai a resenha de Marques (2007, p. 69), um historiador: "graças aos 300 de Esparta, que a guerra fez como deuses, os gregos continuariam a ser homens livres".

Embora partam de pontos de vista diferentes, quiçá opostos, essas análises desconsideram ou corroboram o contexto ideológico do qual 300 é produto. Contada hoje pelo cinema, a batalha nas Termópilas se transforma na guerra entre o Ocidente "civilizado" e o Oriente "primitivo"; quem vence essa batalha é uma abstrata noção de liberdade, estranha aos gregos. No filme, a luta dos espartanos ganha conotação de luta contra um "mal" que quer destruir a "civilização", destacando-se grandes heróis que dedicam suas vidas a lutar contra o despotismo e a irracionalidade.

Um Oriente imaginado

Em 300 e nos comentários escritos sobre ele percebe-se um "discurso sobre o Oriente" onde este é apresentado como "irracional", "depravado" e "infantil", em oposição a um Ocidente "racional", "virtuoso" e "maduro". O Ocidente é "normal", enquanto o Oriente é "diferente", terra de mistérios, de povos atrasados, dominada por "árabes maus, totalitários e terroristas" (SAID, 1990. p. 38). Esse discurso "orientalista", construído de fora, cria não apenas um Oriente, mas o próprio oriental, fazendo uma "demonstração altamente artificial daquilo que um não-oriental transformou em um símbolo de todo o Oriente" (SAID, 1990. p. 38). Há uma relação de poder na qual um Ocidente "vencedor" busca a dominação econômica e política sobre o Oriente, criando imagens e vocabulários para expressar aquele "outro" e justificando essa dominação como um mecanismo para levar o "progresso" a esses povos.


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