Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


Atividades de uso real da Língua: como elas podem ajudar a transformar nossa aula (página 2)

Ana Paula Carvalho Nogueira

Na sala, os alunos sentam-se em carteiras, dispostas umas atrás das outras. No fundo, há um mural com as atividades realizadas.

Quase sempre, a professora A pede para os alunos varrerem o chão e, às vezes, ela limpa junto com eles. Ela diz que como não há faxineiros na escola, não custa nada ajudar. Alguns encaram a tarefa da limpeza como brincadeira, outros reclamam, mas fazem.

A turma é composta por aproximadamente vinte e cinco alunos, com idade entre dez e dezesseis anos de idade. Apesar de todos estarem em um nível abaixo do esperado para a quarta série, há uma considerável diferença de conhecimento entre eles. Identificamos pelo menos dois alunos que não sabem escrever e decodificar nada além do nome.

Entre os outros, a capacidade de interpretação de textos, sejam eles pequenos enunciados ou parágrafos, é muito limitada. Nos conhecimentos de matemática, abstrair é tarefa árdua.

A maioria dos meninos já tem mais de doze anos e está envolvida com questões de adolescentes. Pensam em namorar, em músicas de hip-hop, em tênis e camisas de marca, ainda que suas condições financeiras sejam muito precárias.

As meninas transitam entre o mundo infantil e o adolescente. Gostam de colecionar álbum de figurinhas, mas falam sobre namorados.

De um modo geral, não há cuidado com o material didático. As páginas do livro são feitas de recorte e quase diariamente eles usam o material didático (livros e cadernos) como se fosse uma bola de basquete, rodando na ponta dos dedos.

Os estudantes têm por hábito brincar de brigar, o que por vezes torna a brincadeira uma verdadeira confusão. Conhecemos um caso de uma professora que tentou separar dois brigões e acabou machucando-se seriamente.

Além disso, não há respeito com o material do próximo. Foram poucas as vezes em que presenciamos algum aluno pedir material emprestado ao colega. Quase sempre, uma pessoa pega algo emprestado com um amigo, que empresta a um outro e no final da aula, ninguém sabe de quem é o lápis, a borracha etc.

Apresentação do projeto

O projeto de iniciação à docência é realizado sob a orientação da professora Helena Amaral da Fontoura com universitários dos cursos de Letras, História e Geografia, da Faculdade de Formação de Professores – FFP -, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Nosso enfoque é realizar atividades na escola com dois objetivos principais: preparar os licenciandos para a realidade escolar e aperfeiçoar a aprendizagem através do apoio às professoras e da elaboração e execução de atividades pedagógicas.

Os planos de aula são elaborados a partir das necessidades dos alunos e professores por nós observadas. São, em geral, atividades que pretendem não só apresentar/relembrar conhecimentos específicos, mas também tornar os estudantes conscientes dos conhecimentos de mundo que eles possuem e valorizar tais conhecimentos, fazendo sempre a relação entre estes dois tipos de saber.

A produção do jornal, à qual me ative neste trabalho, teve como elemento norteador estes dois vieses. No primeiro momento, pedimos para que os alunos escrevessem uma matéria de jornal cujo tema era: Você é professor. Conte como foi seu dia. Para tanto, os alunos precisaram utilizar elementos que observavam no próprio cotidiano. No segundo momento, a correção do jornal possibilitou a indicação de erros e acertos de grafia e de coerência; a apresentação de algumas regras gramaticais, como o uso de plural; e aprimoramento da memória fotográfica dos alunos, visto que foi produzido um quadro comparativo sobre o qual falaremos melhor posteriormente.

O dia como professor

O título do jornal, O dia como professor, faz alusão a uma popular publicação fluminense. Todo processo de produção do periódico pode ser analisado a partir de duas perspectivas: uma pedagógica e outra discursiva.

A perspectiva pedagógica explicita a necessidade e a importância do ensino produtivo nas aulas de língua portuguesa, apontadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), enquanto a discursiva revela como os discursos produzidos pelos alunos refletem o lugar que ocupam na sociedade.

Análise I – Perspectiva pedagógica

O plano de aula da atividade foi elaborado com base na tríade açãoàreflexãoàação indicada pelos PCN. Nesta concepção, os alunos iniciam a atividade com situações menos artificiais da língua, fazendo uso real dela, por meio de textos. Em seguida, o professor de português propicia momentos de reflexão, apresentando conceitos, tirando dúvidas, demonstrando as razões para que os alunos, agora conscientes do que praticaram no primeiro momento, voltem ao texto. Este conjunto de ações forma a metodologia do ensino produtivo de português.

No nosso caso, tentamos tornar a descrição/ narração do dia como professor menos artificial produzindo um jornal e colocando os alunos no papel de colunistas. Quando os alunos souberam que haveria um jornal, demonstraram bastante interesse pelo trabalho.

Os textos foram recolhidos, digitados, corrigidos (somente foram corrigidos erros de grafia e de coerência). A partir disso, elaboramos o jornal O dia como professor, no qual cada matéria vinha acompanhada da foto e nome do aluno-colunista.

Depois de diagramado e impresso, levamos os exemplares do jornal e os textos originais para a escola a fim de efetuarmos a reflexão sobre o uso da língua.

Iniciamos a aula da correção da atividade entregando os jornais já alterados e os textos originais produzidos pelos alunos. Explicamos que deveriam observar o jornal e os originais na tentativa de encontrar diferenças entre eles.

Houve reclamação. Uma das alunas perguntou por que deveriam fazer isto. Respondemos evidenciando a importância de saber adequar a linguagem às diversas situações, falamos sobre a necessidade de escrever textos coesos, coerentes e sem erros de grafia no nosso cotidiano, como, por exemplo, nas redações solicitadas em entrevistas de empregos, nos bilhetes deixados a um namorado, a um colega de trabalho ou a um chefe. Afirmamos que, além da aparência, as pessoas reparam no modo como falamos, como evidencia Platão Savioli: "Falar é criar uma imagem social de si mesmo" (PEREIRA, 2006, p. 23).

Depois de explicarmos a necessidade real de aprendizagem para a vida profissional e social, os estudantes ficaram muito atentos e participativos, o que demonstra a importância de deixar claro o objetivo da atividade.

Pedimos para que fizessem um quadro comparativo que deveria seguir o modelo:

PALAVRA NO ORIGINAL

 

(ANTES)

PALAVRA NO JORNAL

 

(DEPOIS)

Os alunos sábiu

Os alunos sábios

xamá

chamar

Acompanhamos, individualmente, a elaboração dos quadros e explicamos a cada aluno o motivo de seus erros, quando estes não eram convenções ortográficas arbitrárias.

Tínhamos uma preocupação inicial dos erros serem encarados como problemas e, por isso mesmo, criar barreiras para a confecção do quadro comparativo. Entretanto, ao contrário do que pensamos, os alunos ficaram curiosos, desejosos por saber o motivo de seus erros. Acreditamos que tal atitude tenha sido reflexo da forma como abordamos os erros, não discriminando, tampouco ridicularizando os alunos que os cometeram. Da mesma forma, evitamos usar a palavra erro durante a correção, preferindo falar em diferenças.

Terminada a elaboração individual dos quadros, coletamos os erros mais freqüentes e os expusemos em cartolinas coloridas. Dois dos problemas mais comuns foram os relacionados à concordância verbal e nominal – Maressa e Flávia é a melhor aluna (no lugar de são as melhores) e os aluno (no lugar de os alunos) – e à marcação da desinência verbal – Renan fico (no lugar de ficou); tive que xama (no lugar de chamar) –, além, é claro, de problemas de grafia devido à interferência da oralidade sem explicação gramatical, como o substantivo dever, escrito pela maioria deve e o advérbio muito, escrito por alguns muinto.

Para elaborarmos o quadro junto com os alunos, escrevemos primeiro a coluna PALAVRA NO ORIGINAL (ANTES) e pedíamos para que eles nos falassem como deveria ficar a palavra na coluna PALAVRA NO JORNAL (DEPOIS). Todos os alunos participaram. Terminamos a atividade colando as cartolinas no mural da sala.

A relevância do ensino produtivo de português consiste no fato de aproximar a língua - um instrumento de interação - de seu papel, fazendo com que os alunos sintam-se autores de seus próprios textos. Para elaboração da coluna do jornal, o aluno precisou utilizar as competências lingüísticas necessárias a um bom falante de língua portuguesa: a gramatical, a discursiva, a estratégica e a sociolingüística.

Além disso, a atividade extrapola o espaço escolar, visto que cada aluno levou um exemplar para casa para mostrar aos seus pais e amigos. Isto é um estímulo enorme à produção de textos e ao estudo da gramática.

Cabe salientar que o papel do professor de português não é somente fazer com que os alunos escrevam e os acompanhe, mas também propiciar momentos de reflexão para que seus alunos usem a língua de forma mais consciente.

Análise II – Perspectiva discursiva

A escolha do tema foi definida com o objetivo de colocar os alunos no papel de professores, na tentativa de conscientizá-los de que a profissão pode ser muito cansativa caso não haja a cooperação deles.

Foi interessante notar que a mudança de papel de estudante para professor revelou uma mudança de postura. Como professores, os alunos relataram comportamentos diferentes dos que costumam ter como estudantes. Um deles, por exemplo, que falta aulas constantemente e não faz os exercícios propostos deu ênfase na presença e nas atividades: "Eu iria dar aula todos os dias e não iria deixar sair sem fazer atividade. Iria "pegar pesado" nas atividades. Não iria perder nenhuma aula, iria todos os dias da semana.". (Aluno A, do CIEP).

Percebe-se também nos textos a repetição do discurso de professores: "Fiz o meu trabalho! Pois eles são burros" (Aluno B, do CIEP). É comum ouvirmos a professora nos dizer, na frente dos alunos, que eles não se interessam e que têm muitas dificuldades de aprender. Insiste em dizer para os estudantes que deveriam ficar em casa, já que não querem estudar. Certa vez, o aluno A perguntou à professora se ela daria presença caso ele fizesse o que ela falava. Como a professora calou-se, o aluno começou a chamá-la de mentirosa.

Os fragmentos produzidos pelos alunos levantam também problemas educacionais com os quais convivem, como a indisciplina. Na maioria dos textos, os professores hipotéticos tinham alunos que faziam muita bagunça e os desrespeitavam:

Hoje meu dia foi um horror. Todos ficavam brincando e não faziam o dever, mas tinha uns que obedeciam e faziam o dever, eram poucos, mas tinha. Quando eu passava Matemática, eu tentava fazer eles entenderem conta de dividir, eu não conseguia. Eu passava Geografia, eles não queriam fazer e ficavam brigando, correndo na sala, ficavam xingando uns aos outros. Quando bateu o sinal do recreio para subir, ninguém formou, ficaram correndo, até que Jordão desceu e falou para formarem. Aí, todos formaram e subiram. Eu passei Português, uns copiaram. Quando eu falei que já estava na hora da saída, todos copiaram o dever. Quando acabaram de copiar, guardaram o material e formaram, desceram para ir embora. Esse foi meu dia como professor. (Aluno C, do CIEP).

Da mesma forma, os alunos revelam vontade de ter uma aula diferenciada:

Se eu fosse professora: eu daria uma aula diferente. Eu daria Ciências, mas uma ciência que falasse sobre as plantas, ou melhor, sobre o meio ambiente, como cuidar delas e como multiplicar. E também ensinaria a dizer não a violência e ensinaria que se alguém tacar pedras pelas costas não liguem, porque isso é sinal de que vocês estão sempre na frente. (Aluna D, do CIEP).

Assim, é notável que o discurso produzido pelos alunos, através de uma simples atividade, traz à tona seus comportamentos, desejos e vivência cotidiana.

Conseqüências da atividade

A atividade do jornal foi uma excelente experiência para nós, futuros professores. Em primeiro lugar porque conseguimos pôr em prática conceitos teóricos, como o ensino produtivo de português. Em segundo porque nos encheu de esperança por dias melhores em nossa profissão.

O comportamento dos alunos nos levou à seguinte conclusão: o desinteresse deles é aparente. Com atividades que se aproximam da realidade dos alunos, que fazem sentido além dos muros da escola, os estudantes mostram-se participativos. No caso do ensino de português, por exemplo, qual a necessidade que um aluno que ainda não é capaz de interpretar textos simples tem de aprender o coletivo de cão? Como mostrar interesse por isso?

Algumas conseqüências da aula foram imediatas. Durante a atividade, não houve brigas, como de costume. Os alunos mantiveram-se sentados. Apenas no final da aula, houve uma dispersão natural de alguns estudantes. Entretanto, este é um saldo muito positivo, já que, na maioria das vezes, os alunos nem copiam os exercícios no caderno.

Em médio prazo, notamos algumas mudanças, principalmente no que cerne à postura da professora. Nas aulas posteriores ao jornal, ela levou encartes de supermercados para resolver as questões de matemática, fato nunca antes acontecido durante os quase cinco meses de observação e participação de aulas.

Os alunos apresentaram maior interesse também nas atividades posteriores, questionando-nos quando haveria outra.

A análise das atividades realizadas pelo nosso projeto de Iniciação à Docência, lembrou-me uma frase escrita por Wanderley Geraldi, em seu livro Portos de Passagem: "Estas crianças passarão alguns anos na escola sem saber que elas poderão acertar o sujeito da oração mas nunca serão o sujeito das suas próprias histórias. A menos que..." (GERALDI, 1984). A menos que, como educadores, comecemos a entender a realidade, os desejos e as necessidades dos alunos com os quais convivemos e efetivamente pratiquemos um ensino que se aproxime das situações que serão por eles enfrentadas na vida.

Referências bibliográficas

BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática, 2005.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005.

GERALDI, João W. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.

PARAMETROS curriculares nacionais – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental MEC, 1998.

PERINI, Mario A. Para uma nova gramática do português. São Paulo: Ática, 1985.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.

Artigo de revista

PEREIRA, Luiz Costa Jr. Caso de polícia. Quando um problema de português extrapola a zona de lesa-língua e chega à porta da cadeia. Revista Língua Portuguesa, São Paulo, ano I, n. 10, p. 20-24.

Notas

(1)Sempre que utilizarmos os termos estudante(s) e alunos(s),  estaremos nos referindo a crianças/adolescentes do CIEP.

(2) Sempre que citarmos o termo escola, estaremos nos referindo ao CIEP.

Fonte: Revista Urutágua Nº11

 

Autor:

Ana Paula Carvalho Nogueira

ananogueira85[arroba]yahoo.com.br

Licencianda em Letras pela Faculdade de Formação de Professores – FFP – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.