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Revolução e contra-revolução, fator subjetivo e objetividade (página 2)

Sergio Lessa

Postular que vivemos um momento revolucionário não apenas leva Arcary a tratar como revolucionárias crises que não o são, como ainda o obriga, também, a relativizar a clássica categoria da dualidade de poderes. Segundo ele, diferente do passado, as "crises revolucionárias" não dariam origem à dualidade de poderes já que não fazem aparecer "organismos de poder popular"(Arcary, 2004:38). Nos últimos 25 anos, a "dualidade de poderes manifestou-se de forma atomizada e/ou inorgânica pela presença das massas nas ruas em mobilização".(Arcary, 2004:38) Rebaixar a dualidade de poderes que se expressa, não pela consolidação de órgãos revolucionários como os sovietes, mas pela "presença das massas nas ruas", é uma das conseqüências que decorrem da tese segundo a qual viveríamos a "sexta onda revolucionária mundial"(Arcary, 2004:95,135, 137, 138-40).

A tese de que viveríamos um período revolucionário tem, ainda, um terceiro problema. Se as condições históricas estão dadas, se as revoluções acontecem com cada vez maior freqüência, se as situações não-revolucionárias se tornam cada vez mais raras, curtas e instáveis, por que as revoluções nunca foram vitoriosas? A resposta de Arcary é precisa: a carência de uma liderança revolucionária (uma vanguarda, um partido) à altura do seu papel histórico. Quais seriam as causas históricas desta ausência tão prolongada, por tantas ondas revolucionárias, de uma liderança digna das revoluções. Se as condições histórico-objetivas já estão dadas, resta a Arcary apenas o terreno da subjetividade para dirimir esta questão.

"Não seria por ausência de crises econômicas devastadoras que poderíamos explicar a longevidade do capitalismo. As crises não faltaram. O que faltou foi encontrar o caminho para a reconstrução de uma subjetividade revolucionária. Em outras palavras, o que explicaria a permanência do capitalismo seriam as imensas dificuldades do movimento dos trabalhadores em construir uma representação política que não fosse cooptada pela defesa do regime do capital."(Arcary, 2004:43)

Quais as razões históricas das "imensas dificuldades do movimento dos trabalhadores em construir uma representação política" revolucionária? A resposta a esta questão não poderia ser dada pelo "objetivismo" pois, para o nosso autor, o "objetivismo" "desde Kautsky [foi] a metodologia de todos os reformismos havidos e por haver no movimento operário contemporâneo". O fato de que "Lenin sempre frisou a dimensão mais objetiva do fenômeno" revolucionário se explicaria pela necessidade de polêmica contra as "concepções voluntaristas" então predominantes no movimento operário russo (Arcary, 2004:63). Não se trataria, em outras palavras, de buscar fora das consciências, nas determinações objetivas que emanam da reprodução material da sociedade, as respostas pelo "atraso" do fator subjetivo frente ao subjetivo. Pelo contrário, devemos entender este processo a partir das "flutuações da consciência de classe"(Arcary, 2004:41), num contexto no qual,

"Se a crise econômica é o fundamento objetivo da situação revolucionária e, em última instância, o decisivo para explicar a flutuação das consciências das classes, em uma outra perspectiva, a mudança de humor e disposição das massas – um elemento subjetivo – é também, do ponto de vista do sujeito político, um fator objetivo, porque exterior à sua vontade."(Arcary, 2004:70)

"De uma outra perspectiva", "o humor e a disposição das massas" explicariam a carência do fator subjetivo. Qual perspectiva, essa, que se distinguiria do "objetivismo"? O que separaria essa "outra perspectiva" do idealismo e do voluntarismo de algumas correntes gramscianas que imaginam que é na esfera da subjetividade que ocorre a revolução e daí sua exagerada ênfase na chamada "contra-hegemonia"? Isso não é esclarecido. Todavia, é dessa "outra perspectiva" que é importante a observação de Valério Arcary de que o "fator subjetivo" inerente aos processos revolucionários não se iguala à mera consciência de classe e relaciona diretamente com a direção política:

"/.../ como a história demonstrou à exaustão, as revoluções sociais exigem, como condição sine qua non, uma direção centralizada e decidida a tomar o poder. /.../ Na verdade, todas as revoluções que triunfaram no século XX foram dirigidas, à exceção de Outubro, por partidos-exércitos, ou seja, por organizações não só centralizadas, mas militarmente centralizadas." (Arcary, 2004:49)

"Nenhuma outra forma de organização foi /.../ tão eficiente para lutar pelo poder em sociedades urbanizadas quanto o partido centralizado de combate."(Arcary, 2004:70; tb. 71)

Portanto, o fator subjetivo se consubstancia historicamente na figura do "partido revolucionário" "centralizado" "de combate". E, aqui, "O problema teórico consiste no equacionamento das relações entre ação, consciência e organização. Assim como não há ação humana sem consciência, não existe consciência sem organização e tampouco é possível organização sem direção."(Arcary, 2004:56) A direção é o fundamento da organização que, por sua vez, é o fundamento da consciência a qual não deve ser confundida com a "mera " consciência de classe. A resposta à questão pelas razões da ausência de partidos capazes de levar a bom termo as inúmeras revoluções pode, então, ser sumariada: pela falta de direção.

Esta dialética entre o fator subjetivo e as condições objetivas no capitalismo seria o fundamento do "abecedário da política contemporânea", isto é, "a primazia crescente da política" causada pelo "crescente papel da auto-organização das classes exploradas que, por sua vez, foi expressão do alargamento, e não do definhamento, da esfera do público."(Arcary, 2004:70-1) Isto teria reduzido o peso do fator objetivo, estaria "diminuindo o lugar [na história] dos fatores de necessidade 'cegos, surdos e mudos'". (Arcary, 2004:71)

Portanto, se compreendemos corretamente Arcary, no contexto histórico em que aumenta o peso da política na mesma proporção em que diminui a importância dos fatores "de necessidade cega, surda e muda", o fator subjetivo não consegue se estruturar devido à ausência de um grupo de revolucionários capaz de constituir uma direção que possa ser o núcleo de uma organização da qual, finalmente, emergirá a consciência revolucionária das massas.

As revoluções não foram vitoriosas porque faltaram partidos revolucionários. E eles não compareceram na história porque faltaram direções revolucionárias. Por que faltaram direções revolucionárias em um período de crises revolucionárias cada vez mais freqüentes? Não conseguimos encontrar, nas formulações de Valério Arcary, uma resposta conclusiva a esta questão, uma resposta que fosse além da constatação da ausência de direções, de partidos e, portanto, do "fator subjetivo".

A causa, a meu ver, da falta de uma resposta conclusiva a essa questão está em uma dada concepção de história que parte de um axioma: viveríamos um período revolucionário. Daqui explicam-se as derrotas das revoluções pelas suas direções. O porquê de as direções não serem capazes de fazer a revolução é uma questão que, no texto de Valério Arcary, carece de resposta. E, com sua concepção de histórica, fica difícil sequer colocar a questão fora da esfera da subjetividade revolucionária, pois a carência do fator subjetivo se explicaria pelo desenvolvimento da própria subjetividade revolucionária. Qualquer resposta, nesse círculo vicioso, teria imensas dificuldades para incorporar o peso das condições objetivas que predominam na formação da vanguarda revolucionária do mesmo modo, com as devidas mediações, que predominam na formação e desenvolvimento das classes sociais.

Aqui, a nosso ver, o núcleo problemático das teses de Arcary: sem a devida consideração do peso histórico dos fatores objetivos na formação das vanguardas revolucionárias, das direções dos partidos revolucionários, não lhe resta alternativa senão repetir que sem direção revolucionária não há revolução. Afirmação verdadeira, sem dúvida, mas que não resolve a questão das razões históricas mais profundas e persistentes da ausência por tantas décadas de tais direções. E esse núcleo problemático, tanto quando conseguimos enxergar, relaciona-se intimamente com a tese de que viveríamos em um período revolucionário no qual as situações e crises revolucionárias se tornariam cada vez mais freqüentes.

II. Contra-revolução e esgotamento do modo de produção capitalista

Ao contrário do que postula Valério Arcary, e acompanhando István Mészáros até onde conseguimos compreendê-lo, o que caracteriza nossos dias é a conjunção de dois longos processos históricos. Por um lado, e certamente o predominante, é a crise estrutural do capital que se anunciou a partir do final da II Guerra Mundial e que, desde 1970, converteu a vida cotidiana no continuum de crise que se estende a todos complexos sociais dos nossos dias. O segundo processo histórico é a absorção da classe operária à ideologia (no sentido mais amplo, de concepção de mundo) burguesa, em medida muito significativa devido ao predomínio do stalinismo e da social-democracia no seio das organizações operárias.

O fundamento do caráter estrutural da crise que vivemos, e que a distingue de todas as crises precedentes, inclusive a de 1929, é que as possibilidades expansivas do capital se esgotaram historicamente. Ou seja, ainda que momentos de expansão pontuais possam ocorrer aqui e ali, não mais podem ser a característica decisiva da reprodução do capital em sua totalidade. Se Mészáros estiver correto, como o capital é um processo cuja essência é a

"circularidade perversa /.../ ?pela qual??o trabalho enquanto trabalho objetivado e alienado se transforma em capital e, enquanto personificação do capital, confronta, assim como domina, o trabalhador /.../?,?o poder que domina o trabalhador é, de forma circular, o próprio poder do trabalho social transformado, que assume uma "forma fantasiada/travestida" e funda a si próprio na "situação fetichizada na qual o produto é o proprietário do produtor""(Mészáros,1995:607),

então o sistema do capital é em uma verdadeira "causa sui"(Mészáros,1995:610). Sua essência está na sua própria reprodução ampliada, sua existência repousa em sua própria dinâmica. Muito mais que uma forma de poder entre os homens, --como ocorre com os modos de produção pré-capitalistas --o capital é um modo sócio-metabólico de controle social. A esfera do poder se desdobra entre as "personificações" do capital e as do trabalho abstrato — e, por isso, a destruição de apenas uma das formas particulares dessas personificações – ou seja, a "desapropriação dos expropriadores" nos moldes que conhecemos na ex-URSS ou na China, por exemplo --não é condição suficiente para a superação do capital.

Faz parte da essência do capital submeter à sua legalidade todas as relações sociais com que se defronta. Todavia, essa tendência expansiva do capital termina por produzir seus próprios limites, de tal modo que sua expansão termina sendo, também, a ampliação extensiva e intensiva do caráter destrutivo, perdulário, de sua própria essência. Esse seu caráter essencialmente auto-destrutivo hoje se manifesta de forma plena e explícita sob a forma do dilema: ou a humanidade supera o capital ou enfrentará ameaças crescentes à sua própria sobrevivência.

A afirmação por Mészáros da existência de "limites absolutos" à expansão do capital tem sido um dos aspectos mais polêmicos e incompreendidos de sua obra. Talvez porque uma concepção aparentemente — mas só aparentemente — semelhante teve conseqüências nefastas para o movimento revolucionário. Nos referimos às teorias catastrofistas da III Internacional e às equivocadas estratégias e táticas revolucionárias que ocasionaram. Em contraposição, tornou-se senso comum a afirmação da inexistência de limites à expansão do capital — a não ser aquele limite socialmente imposto pela afirmação hegemônica de um projeto socialista.

Mészáros argumenta o equívoco dessas duas concepções. A primeira, da III Internacional, por não ser capaz de identificar os reais limites à expansão do capital (fundamentalmente por ser, a própria III Internacional, expressão da afirmação histórica de uma nova forma de regência do capital, aquela que se explicitou na URSS); e, a segunda, por negar a existência de tais limites. Segundo Mészáros, o caráter crescentemente destrutivo da produção capitalista, a intensificação da obsolescência planejada, a cada vez mais intensa perdularidade do capital no trato dos recursos naturais e humanos se chocam, de modo escandaloso, com o fato de sermos uma humanidade finita, que habita um planeta finito, comrecursos finitos e com um equilíbrio ecológico cada vez mais ameaçado. É inconcebível que possamos, ad infinitum, desconsiderar os limites planetários e sociais à expansão da produção e do consumo e, por tabela e com urgência ainda maior, que possamos desconsiderar a perdularidade do atual modo de produção.

Mészáros propõe um tertium datur: a expansão do capital produz seus próprios limites --alguns deles absolutos, isto é, que devem ser imediatamente atendidos sob pena de colapso geral do sistema . Eles delimitam o horizonte de possibilidades no interior do qual o capital pode manobrar no sentido de deslocar suas contradições antagônicas. O deslocamento, pelo capital, dos seus limites --mesmo de seus limites absolutos --a patamares superiores não significa que eles não existam, nem que não atuem, enquanto limites absolutos. Significa, apenas, que, como quase todos os limites do mundo dos homens, podem ser realocados de modo a possibilitar a reprodução ampliada do capital por mais algum tempo. Contudo, esse deslocamento dos limites --repetimos, mesmo dos limites absolutos --não significa que eles foram superados, significa apenas que foram elevados a um novo patamar que, tipicamente, se expressa em uma taxa decrescente de acumulação e na tendência de cada deslocamento criar um equilíbrio cada vez mais efêmero e instável. Desse modo, cada deslocamento significaria, também, uma nova aproximação aos limites de expansão do próprio capital. A ação dos homens sobre os limites --mesmo sobre os limites absolutos --pode levar à sua superação (por exemplo, por meio de uma revolução) ou ao seu deslocamento a um patamar superior de contradições e alienações. O seu deslocamento, ao contrário de sua superação, não significa o desaparecimento dos mesmos mas apenas que, em uma nova situação histórica, operam na reprodução social através de novas mediações que prolongam a permanência do modo de produção. Para Mészáros, em suma, a possibilidade do deslocamento dos limites absolutos do capital não significa a inexistência deles, mas apenas uma reconfiguração do sistema global que o eleva a patamares superiores de alienação — com a conseqüente agudização das suas contradições fundamentais.

É a aproximação do capital aos seus limites históricos a causa da crise estrutural que assumiu, num primeiro momento (a dos anos cinqüenta e sessenta), a forma do Welfare State e, num segundo momento, nos anos setenta até hoje, a forma de um "continunn de depressão" ("depressed continunn") que tende a abolir até mesmo os mecanismos de controle das crises da etapa anterior. Numa frontal oposição às teorias que, hoje, procuram idealizar os "anos dourados", produzindo uma imagem do Welfare State como período de apogeu da democracia e de segurança econômicas, Mészáros demonstra que tanto hoje, como no pós-guerra, o gargalo da reprodução ampliada do capital era o mesmo: a impossibilidade de, mantido o atual metabolismo social, ampliar o consumo na mesma amplitude em que se desenvolvem as forças produtivas. A saída encontrada pelo capital foi, em primeiro lugar, ampliar o consumo pela estruturação de um mercado consumidor de massas que teve no Welfare State sua necessária regulamentação política. Em segundo lugar, intensificar o caráter destrutivo e perdulário do sistema pela adoção de uma escandalosa estratégia de obsolescência planejada, de tal modo a ampliar a venda pela redução do consumo das mercadorias. Do ponto de vista do capital, a rigor há uma identidade funcional entre consumo e destruição: uma vez vendida, o ideal seria que a mercadoria fosse imediatamente destruída para dar lugar a uma nova compra. A intensificação da "obsolescência planejada" no pós-guerra intensificou essa tendência de aproximação funcional entre consumo e destruição dos produtos sociais — e, no seu limite, chegou mesmo a identificá-las em setores econômicos da maior importância, como o Complexo Industrial Militar.

Nos mesmos anos de 1950 que abriram as "três décadas de ouro", os Estados que pretensamente estavam se democratizando pela adoção das políticas públicas que caracterizavam os Estados de Bem-Estar, iniciavam o movimento de implantação no restante do mundo das multinacionais e das ditaduras, militares ou não, necessárias para "adequar" a periferia do sistema. Nestes mesmos anos, no seio das democracias européias e estadunidense, tivemos o renascimento da tortura em uma escala que não conhecíamos desde o século XIX, segundo o impressionante relato de Kate Millet (Millet, 1994). Na França e nos Estados, este foi um período marcado por uma direitização do espectro político, representado sobretudo pelo Maccarthismo e pelo gaullismo; algo semelhante, ainda que com intensidade variável, ocorreu em todos os países que conheceram a experiência do Estado de Bem-Estar. Foi durante este mesmo período que construiu-se o maior arsenal militar da história da humanidade, com a capacidade para destruir o planeta 99 vezes. E, por fim, é bom lembrar que a implantação do Estado de Bem-Estar não representou, de modo universal e necessário, a melhoria das condições de vida e trabalho de todos os assalariados, como ainda a real elevação da massa salarial nos países centrais não significou uma distribuição de renda consistente, isto é, que tenha perdurado por mais de alguns anos.

Há que se considerar, ainda, que os anos posteriores à II Guerra Mundial não foram anos de vitórias operárias. Pelo contrário. No bloco soviético tivemos a decadência do stalinismo, com tudo o que significou de desmobilização do movimento revolucionário e, depois, para o desaparecimento do assim chamado "bloco socialista". Os países nos quais a resistência ao nazismo deu origem a um exército guerrilheiro armado e nas mãos dos PCs, este poder foi entregue às suas burguesias nacionais no contexto dos acordos de Yalta e Potsdam; na Itália a resistência popular e operária foi rapidamente batida e, na Grécia, a invasão da Inglaterra com o beneplácito de Stalin liquidou o levante armado. Excetuando-se a vitória do Exército Vermelho chinês, os anos do pós-guerra não conheceram nenhuma revolução digna do nome. Graças fundamentalmente ao aumento da massa salarial, o movimento operário europeu foi absorvido pelas estratégias reformistas dos partidos e sindicatos sociais-democratas e ameaçou cada vez menos a ordem do capital. Em linhas gerais, este quadro predominou até os anos de 1970, quando o início do que depois seria o neoliberalismo viria a introduzir importantes modificações, com uma sua subsunção ainda maior à ordem burguesa.

Longe dos "anos dourados", ou de uma vitória operária, Mészáros argumenta que o Welfare State seria a primeira forma da crise estrutural em que o capital está mergulhado desde o pós-guerra (Mészáros,1995:53). Ainda que amplo e profundo, o deslocamento das contradições pelo Welfare State demonstrou ter vida curta, conduzindo na década de setenta e oitenta ao segundo momento da crise estrutural do capital, não apenas com a desmontagem do Welfare State, mas também com a dissolução do outro sistema do capital contemporâneo, o das sociedades pós-revolucionárias (URSS, etc.).

Mais uma vez, o que está no fundo dessa argumentação de Mészáros é a velha (e boa) concepção marxiana segundo a qual a tendência do capital à expansão nada mais é, ao fim e ao cabo, que a tendência à expansão de riqueza humana alienada, — e, nesse sentido, é uma tendência à expansão, intensiva e extensiva, da destrutividade das relações sociais.

"/.../ no sistema do capital toda "harmonização" só pode assumir a forma de um balanceamento temporário — e nunca de uma verdadeira resolução — do conflito. /.../ O axioma bellum omnium contra omnes éo modus operandi insuperável do sistema do capital. Pois, enquanto um sistema sócio-metabólico de controle ele é antagonisticamente estruturado da menor à mais abrangente unidade política e sócio-econômica. /.../"(Mészáros, 1955: 55)

A intensificação das contradições inerentes ao sistema do capital, com a sua crescente destrutividade causou, sempre segundo Mészáros, uma profunda modificação na relação entre o Estado e a sociedade. A complexificação da reprodução social, o surgimento de novas mediações, a tendência à crescente diversificação interna das classes sociais, etc. resultaram na intensificação do papel econômico do Estado. Entre o Estado e a sociedade civil regida pelo capital temos um "círculo de ferro" no interior do qual cada uma das partes reforça o todo, e em cuja reprodução todas as suas partes são sempre momentos partícipes da expansão do capital enquanto autêntica causa sui.

Em sendo assim, continua argumentando Mészáros, na medida em que a tendência histórica predominante em nossa época é a de crescente e incontrolável aproximação do capital aos seus limites absolutos, é previsível um aumento da presença do Estado na vida cotidiana "ao invés do prometido 'recuo dos limites do Estado'".(Mészáros,1995:705) As mediações extra-econômicas, diretamente políticas, tendem a se tornar cada vez mais decisivas para a reprodução do capital à medida em que suas tensões estruturais se agudizarem. Portanto, para Beyond Capital, a incontrolabilidade inerente à auto-reprodução ampliada do capital conduz, não à ampliação da regulamentação política sobre o capital (o sonho dos sociais-democratas de aquém e além mar), mas justamente ao oposto, isto é, à intensificação da regulamentação do capital sobre o metabolismo social por meio do Estado.

Daqui evolui Mészáros para a recuperação da tese marxiana acerca da necessidade do desaparecimento do Estado para a transição socialista. Para ele, a abolição do Estado é uma exigência insuperável à realização do projeto socialista. Cita Marx seguidamente e propõe o fenecimento do Estado, com todas as letras:

"Dada a inseparabilidade dessas três dimensões do sistema do capital plenamente articulado — capital, trabalho e o Estado — é inconcebível emancipar o trabalho sem simultaneamente superar também o capital e o Estado. /.../ Enquanto as funções controladoras vitais do metabolismo social não forem efetivamente tomadas e autonomamente exercidas pelos produtores associados, mas deixadas sob a autoridade de um pessoal de controle separado (isto é, um novo tipo de personificação do capital), o trabalho enquanto tal continuará reproduzindo o poder do capital sobre si próprio, materialmente mantendo e estendendo, portanto, a regência da riqueza alienada sobre a sociedade."(Mészáros,1995:494)

Sem o fenecimento do Estado não pode haver nem superação do capital nem, obviamente, do trabalho abstrato. O projeto marxiano de emancipação

"/.../ é possível apenas se todas as funções controladoras do metabolismo social /.../ ?forem??progressivamente apropriadas e positivamente exercidas pelos produtores associados. Nesse sentido, o deslocamento estrutural objetivo /.../ das personificações do capital através de um sistema de genuíno auto-gerenciamento é a chave para a reestruturação exitosa das estruturas herdadas/.../"

em direção à sociabilidade emancipada.(Mészáros,1995:495)

É desse referencial que Mészáros parte para a análise da falência dos projetos reformistas de transição para o socialismo. Observa que essa falência é de tal ordem que, de projetos de transição para o socialismo por meio de reformas, terminam por se transformar em projetos de reformas para aquém do socialismo, em projetos de reformas do próprio capitalismo. Partidos e sindicatos operários se fundiram com o parlamento em um mesmo complexo: a democracia burguesa em período da "produção destrutiva". (Mészáros, 1995:678) Se, na origem, eram revolucionários reformistas, com o tempo se transformam em capitalistas reformistas. E, argumenta nosso autor, nem poderia ser de outra forma, pois basearam a sua estratégia em uma concepção fundamentalmente falsa, ilusória: a de que se poderia controlar o capital através de reformas parciais que terminariam na sua superação. O

"projeto ?dos sociais-democratas??de institucionalizar o socialismo por meios parlamentares estava condenado ao fracasso deste o começo. Pois eles visam o impossível. Eles prometiam transformar gradualmente em algo radicalmente diferente — isto, em uma ordem socialista — um sistema de controle sócio-reprodutivo sobre o qual eles não tinham nem poderiam ter qualquer controle significativo no e através do parlamento."(Mészáros,1995:713)

A articulação entre Estado e capital é de tal ordem que --não apenas este é incontrolável, ainda mais a partir do e pelo Estado, --como ainda o trabalho apenas pode ser politicamente representado pelo trabalho abstrato, enquanto personificação do trabalho do ponto de vista do capital (Paniago, 2001). Em si mesma, e por si só, a representação política das classes trabalhadoras em um Estado burguês apenas é possível enquanto representação da personificação do trabalho abstrato e jamais enquanto representação do projeto de emancipação. (Mészáros, 2002: 719-20). Por isso, argumenta Mészáros, a necessidade absoluta de um forte movimento extra-parlamentar que consiga se contrapor frontalmente, pela luta social, a essa tendência à assimilação ao status quo da representação político-parlamentar das classes trabalhadoras. O quanto essa tese tem de atual pode ser percebida com um rápido exame da trajetória dos partidos com base operária, tanto na Europa como no Brasil.

Dito de outro modo, a defesa de uma forma do Estado contra outra das suas formas não pode ser o terreno adequado para emancipação humana. A liberdade que pode ser conseguida "por meio do Estado /.../" (Marx, 1969:24) é a "iliberdade" de nossos dias. Essa liberdade, tipicamente burguesa, se converteu, com a plena explicitação das alienações fundadas pelo capital, em uma forma historicamente específica de escravidão cuja essência está na conversão do desenvolvimento das forças produtivas (isto é, da condição universal do desenvolvimento histórico dos homens) em intensificação das desumanidades socialmente postas. E o nódulo desta essência reside na propriedade privada burguesa. Por esta razão, a estratégia política, presente em largos círculos democráticos, de se radicalizar a democracia via reformas no Estado tem seu significado histórico reduzido à busca de uma forma mais humana, democrática, etc., do velho e surrado Estado burguês e não conduzirá jamais à acumulação de forças necessária para a revolução comunista.

É com base nessas características da crise atual que Mészáros argumenta que vivemos uma "etapa de transição", no preciso sentido de que a atual forma de sociabilidade está fada ao desaparecimento. Tal como a passagem da sociedade primitiva às sociedades de classe foi um período histórico de transição entre sociabilidades ontologicamente distintas, (a forma histórica do trabalho de cada uma é ontologicamente distinta: o trabalho primitivo versus o trabalho alienado pela exploração do homem pelo homem), também o período histórico que vivemos é de transição entre a organização social de classes que não mais corresponde às possibilidades e necessidades de desenvolvimento das forças produtivas. Para que tais necessidades e possibilidades possam se realizar, é imprescindível a passagem de uma produção ordenada pelo trabalho alienado em sua forma a mais desenvolvida (o trababalho assalariado) a uma outra, ordenada pelo trabalho emancipado. Em outras palavras, a atual sociabilidade ordenada pela propriedade privada entrou em franca contradição com o desenvolvimento das forças produtivas e, com isto, a totalidade social passa a ter o seu fundamento em crise: o trabalho assalariado não mais possibilita à humanidade senão uma produção ampliada de desumanidades. Todos os complexos sociais --afinal, não há complexo social que não seja, "direta ou indiretamente" (Lukács, 1981:135) fundado pelo trabalho --entram em crise a partir de seu fundamento primeiro. E a superação desta crise apenas é possível pela superação do modo de produção capitalista, pelo comunismo. Ou, então, pela extinção da humanidade do planeta Terra.

Por isso, do período contra-revolucionário que vivemos decorre a necessidade da "ofensiva socialista" e, não, uma frente única com os setores democrático-burgueses. A articulação entre a crise estrutural do capital com a contra-revolução forjou um momento histórico no qual não possuem mais qualquer viabilidade histórica, sequer para o curto prazo, as propostas reformistas, democrático-burguesas, por mais radicais que sejam. Como sabemos, o programa máximo de uma frente é sempre aquele de seu setor mais atrasado. Por isso, uma frente única dos socialistas-comunistas com as forças democráticas será, sempre, uma frente ao redor de uma plataforma democrática. E, como argumentamos, a viabilidade histórica de tal plataforma se esgotou. Como não se faz política revolucionária ao redor de fantasias, de nada adianta para o acúmulo das forças socialistas-comunistas que necessitamos insistir em propostas e em plataformas historicamente superadas e que, por essa razão, não são capazes de servir de orientação para retirar a classe operária da paralisia em que se encontra.

Por outro lado, dissolver os revolucionários em uma plataforma democrática na esperança de atrair tais setores para posições revolucionárias é um duplo equívoco. Em primeiro lugar, porque o predominante em tais forças são personificações dos amplos setores assalariados que estão objetivamente comprometidos com a propriedade privada, com todas as conseqüências político-ideológicas daqui decorrentes. Em segundo lugar, porque impede que os revolucionários se apresentem em público enquanto revolucionários: recobre a plataforma socialista-comunista com uma plataforma democrática que, aos olhos das massas, faz dos revolucionários o que eles, de fato, fazem na luta cotidiana, ou seja, democratas um pouco mais radicais.

Hoje, cabe aos revolucionários aproveitarem o espaço democrático que ainda existe para uma propaganda clara e inequivocamente comunista: por uma sociedade sem classes, que supere a propriedade privada, o casamento monogânico e o Estado. Sem compromissos políticos táticos que impliquem ceder no terreno da propaganda da revolução. Qualquer outra tática apenas nos conduzirá a herdar o isolamento político das massas em que naufragam os partidos democráticos; isolmento que se expressa epidermicamente na tese segundo a qual teria ocorrido uma profunda modificação na relação das massas com a política que imporia imperativamente campanhas de markenting. O markentig político é, na verdade, a expressão histórica do crescente afastamento dos reformisdas para com os trabalhadores. A mera radicalização da mesma tática democrática não será capaz de dar o salto de qualidade que precisamos --se é que devemos abrir uma nova fase de "ofensiva socialista".

Portanto, e a isso retornaremos mais à frente, hoje, diferente do passado, a necessidade de uma plataforma estratégica claramente comunista decorre, não de vivermos um período revolucionário, mas do seu oposto. Isto é, da conjunção da crise estrutural do capital com o período contra-revolucionário mais intenso e extenso da história.

III. Da defensiva democrática à ofensiva socialista

Para a discussão de algumas das teses fundamentais de As esquinas perigosas da história, passaremos agora àquilo que nos parece uma das questões decisivas: qual deveria ser, hoje, a perspectiva estratégica que possibilitaria acumular forças tendo em vista a superação do capital?

Neste terreno mais propriamente tático, a favor da tese de que hoje poderíamos acumular forças em uma "luta de guerrilhas" (como querem alguns gramscianos) no interior da institucionalidade burguesa (conselhos, parlamento, etc.) menciona-se com frequência, ao lado da passagem de O Capital em que Marx trata da jornada de 10 horas de trabalho, que o Estado de Bem-Estar seria a demonstração histórica dessa possibilidade. Quanto à passagem de Marx, Paniago já demonstrou o equívoco da interpretação de que a jornada de 10 horas seria uma conquista dos operários pura e simplesmente, e não é necessário que nos detenhamos novamente nessa questão. (Paniago, 2003)

Quanto à avaliação história do Estado de Bem-Estar, não raramente o argumento avança no sentido de propor que o desenvolvimento do capitalismo em uma sociedade muito mais complexa que a do século XIX, teria conduzido a uma nova e mais articulada relação entre a sociedade e o Estado, de tal modo que este seria agora expressão da "correlação de forças" da sociedade. Não valeria a pena mais do que mencionar que o argumento da maior complexidade social é de raiz weberiana, nada tendo a ver com as categorias de Marx; todavia, certamente é necessário apontar que a complexidade maior ou menor de uma formação social não necessariamente cancela, altera ou anula sua essência. Que a humanidade no século XX é mais "complexa" que no século XIX é uma obviedade, deduzir daí, contudo, que o Estado teria alterado a sua essência de tal modo a se converter em um "Estado ampliado", isto é, um Estado representante de todas as classes sociais, é algo que é negado a cada dia pelo próprio processo de reprodução da sociedade capitalista. Hoje o Estado é ainda mais imediatamente a expressão das necessidades de reprodução do capital do que no passado, e essa é uma das características importantes do período histórico da crise estrutural do capital que se abriu no início dos anos de 1970. O neoliberalismo é a expressão concentrada deste fato[1].

Além disso, o Estado de Bem-Estar foi predominantemente determinado, não pela luta vitoriosa dos trabalhadores que conseguiram impor limites, "por meio do Estado" ("das Medium des Staats") (Marx, 1969:24; Marx, 1956:353) à voracidade do capital mas, sim, pelo início da crise estrutural do capital já na década de 1950, o qual necessitava então incorporar ao mercado consumidor as massas de trabalhadores dos países imperialistas, como já argumentamos

Retomamos essa questão para problematizar a concepção que considera o Estado de Bem-Estar como exemplo da possibilidade de se avançar contra o capital "por meio do Estado /.../" (Marx, 1969:24). A tese do "Estado ampliado", sob as suas diferentes formulações e modulações, é muito mais a generalização à universalidade da falsa impressão gerada pelas políticas públicas do Estado de Bem-Estar do que uma possibilidade histórica real.

Se, todavia, o caráter do Estado durante a vigência do Estado de Bem-Estar tem sido objeto de polêmica, o mesmo não se pode dizer da avaliação do Estado dito mínimo dos anos de neoliberalismo. Todas as análises do campo marxista coincidem no fato de que ele representa os interesses gerais do capital no sentido da ampliação da exploração do trabalho e que o desmonte do Estado de Bem-Estar por ele operado tem incluído a utilização dos mecanismos democráticos que se consolidaram no pós-guerra, como o voto universal, o parlamento, a imprensa sem censura, etc. Em praticamente todos os países que conheceram a experiência do Estado de Bem-Estar, em alguma medida fundamental o neoliberalismo foi implementado por governos ditos de "esquerda", como os socialistas na França, o Labour na Inglaterra, os Democratas nos EUA, e assim por diante. Pela "astúcia" da história, os partidos que adotaram as estratégias de colaboração de classes durante os "trinta anos dourados" foram, em medida significativa, os mesmos que serviram ao neoliberalismo nas décadas subseqüentes.

Que entre o Estado de Bem-Estar e o Estado neoliberal haja uma continuidade é algo difícil de ser negado. Entre eles houve uma tranqüila transição, sem qualquer quebra institucional significativa, possibilitada tanto pela domesticação do movimento operário no contexto da colaboração de classes dos anos do Estado de Bem-Estar como, também, pelo fato de que em importante medida os mesmos partidos "operários" e de "esquerda" que estiveram no poder durante o pós-guerra foram aqueles que mais resolutamente levaram avante a agenda neoliberal. A passagem do Estado de Bem-Estar ao neoliberalismo pôde se realizar sem qualquer ameaça mais séria de ruptura por parte dos trabalhadores e, por isso, foi realizada "por meio do Estado", tal como fora "por meio do Estado" que se estruturou o Estado de Bem-Estar.

É neste contexto que assistimos, nas últimas décadas, mas em especial nos últimos anos, à tendência ao crescente desrespeito aos direitos democráticos principalmente nos países imperialistas da Europa e nos Estados Unidos. Frente à crescente tensão social gerada pelo binômio desenvolvimento das forças produtivas/desemprego crescente, típico das últimas décadas, em nome do combate aos inimigos da democracia, legislações xenófobas, racistas e antidemocráticas têm sido adotadas de forma generalizada. Esses aspectos da conjuntura em que vivemos são importantes para a avaliação da estratégia e da tática dos revolucionários porque nos permitem compreender como, por quais mediações históricas, hoje cabe aos revolucionários a difícil tarefa histórica da defesa dos direitos democráticos na ausência de um movimento operário que atue como antípoda do capital.

Não se trata, claro está, se devemos ou não lutar contra a abolição dos direitos criados e mantidos "por meio do Estado", já que esta é uma imposição histórica da qual, hoje, os revolucionários não têm como se furtar. A questão é outra: como devemos travar esta luta, de qual perspectiva devemos defender os direitos ameaçados dos trabalhadores para que consigamos acumular força tendo em vista aemancipação humana. É aqui que reside, a nosso ver, o cerne da questão. Não se trata se devemos ou não defender os direitos ameaçados, trata-se de saber com que perspectiva, com que orientação estratégica, deveremos fazê-lo.

A perspectiva legalista, reformista e parlamentarista está historicamente esgotada. Seus teóricos e suas teorizações tenderão a se aproximar, de modo cada vez mais intenso, daquilo que Lenin, a seu tempo, denominou de "cretinismo parlamentar", pois tal concepção não tem outro futuro senão intensificar os seus equivocados pressupostos. Contra tal concepção, é preciso colocar em primeiro plano a questão da transição para além do capital como a única resposta historicamente viável para a "destruição democrática" dos direitos democráticos que estamos assistindo. Ou, em outras palavras, o terreno do Estado é, hoje, o mais apropriado para a destruição dos direitos democráticos, não o contrário. A revolução comunista, que supere a propriedade privada, o Estado, o casamento monogâmico e as classes sociais é a única alternativa que resta aos revolucionários para resistirmos à crescente destrutividade do capital. Se entendemos corretamente, é este o sentido fundamental da ofensiva socialista proposta por Mészáros: enfrentar a intensificação das alienações do capital com uma clara e definida estratégia socialista, que coloque a questão da propriedade privada no seu núcleo decisivo. Isso significa não mais privilegiar a participação e a resistência nos terrenos estatal e governista, no parlamento e nos órgãos públicos, nas instituições da "sociedade burguesa" e de seu Estado "político" (Marx) e deslocar o centro de gravidade para o terreno extra-parlamentar. Como fazer isso, com que mediações táticas implementar essa estratégia, são questões que não cabem nesse artigo e nem poderiam ser resolvidas fora da especificidade conjuntural de cada momento. Todavia, sem esta mudança de horizonte histórico, não faremos outra coisa senão nos perdermos nas entranhas das próprias forças alienadas que nos devoram.

A necessidade por uma estratégia socialista que supere a histórica subordinação dos setores revolucionários aos reformistas, a necessidade de adoção de uma plataforma de lutas claramente comunista (que tenha a luta contra a propriedade privada por seu núcleo) não decorre de vivermos em um período revolucionário. Pelo contrário, decorre do nosso momento histórico peculiar que articula um período contra-revolucionário com a crise estrutural do capital.

IV-A carência de vanguardas

Uma última questão em se tratando das teses centrais de As esquinas perigosas da história. Da perspectiva história proposta por Valério, há importantes questões que não podem receber uma resposta cabal: 1) a carência de direções revolucionárias não pode encontrar sua explicação última, o máximo a que se chega é constatar que não há vanguarda revolucionária porque os revolucionários não se constituíram em vanguarda; 2) a distinção entre crises políticas e crises revolucionárias vai sendo abolida em favor da hipótese de que viveríamos a sexta onda revolucionária, o que significa desconsiderar determinações fundamentais das crises contemporâneas ao se colocar no mesmo patamar crises muito distintas como, por exemplo, o impeachment de Collor e a Revolução Espanhola; 3) a dualidade de poderes, uma categoria central das crises revolucionárias, deve ser matizada de tal modo a que não mais se apresente na sua forma clássica de um poder revolucionário constituído vis-à-vis os poderes contra-revolucionários, mas sim como a presença das massas nas ruas. Todas estas três graves dificuldades teóricas, a nosso ver, têm no esquema proposto por Valério Arcary a sua raíz comum e poderiam, as três, serem enfrentadas com maior sucesso a partir da constatação de que vivemos um período contra-revolucionário.

Clássico, em um período marcado pela contra-revolução, é a inexistência de vanguardas e partidos revolucionários – pois tal como as classes sociais não estão historicamente maduras para a revolução até a eclosão da crise revolucionária, também as vanguardas revolucionárias precisam da crise para se amadurecerem e se explicitarem enquanto tais. Tal como a revolução é um processo histórico dos mais complexos, que articula a subjetividade das classes, suas consciências de classe, com as tendências históricas mais universais, também o é a gênese histórica de uma vanguarda operária. Sem uma luta de classes que possibilite a educação das massas e dos militantes, sem o amadurecimento histórico das classes que apenas pode ser resultante do longo processo histórico no qual a toupeira faz o seu trabalho, não há qualquer possibilidade da consolidação de um partido revolucionário. O que exclui a possibilidade de que um partido revolucionário esteja já pronto para a revolução antes de a mesma vir a ocorrer. Por isso, a nosso ver, reduzir a questão da vanguarda à dimensão da subjetividade – ao mesmo tempo em que identifica o "objetivismo" ao reformismo – é uma impropriedade. E tal impropriedade se manifesta, quase imediatamente no próprio texto de Arcary, ao lhe deixar na impossível posição de explicar a inexistência do fator subjetivo com base, apenas, na evolução da subjetividade.

Por outro lado, a hipótese de que reconhecer o peso objetivo dos fatores históricos contra-revolucionários hoje predominantes conduziria ao reformismo, não nos parece necessariamente correta. Tentamos demostrar exatamente o contrário: buscar nos fatores históricos objetivos as causas predominantes do momento contra-revolucionário em que vivemos não conduz, necessariamente, ao reformismo. Antes pelo contrário, no caso de Mészáros, conduz a uma postura muito distinta da frente única com setores democráticos que é, entre outros, a proposta de Arcary. E o fundamento desse fato reside na constatação de que, com a conjunção da crise estrutural do capital com a contra-revolução, a única alternativa para retirarmos a classe operária do domínio ideológico burguês é apresentar a ela um projeto histórico viável de superação da crise contemporânea. E o único projeto histórico viável, alternativo ao sistema do capital, é a revolução comunista (ou seja, aquela que visa a superação do Estado, da propriedade privada, do casamento monogânico e das classes sociais).

A necessidade da radicalização da luta, do abandono de todas as ilusões democráticas, de se dirigir ao movimento de massas com a bandeira do socialismo e não com uma postura democrático-radical, de travar combates tendo em vista a necessária clivagem entre os que querem a reforma do Estado e os que querem aboli-lo, decorre do caráter peculiar da crise em que estamos metidos. Não decorre do fato de estarmos vivendo um períoco revolucionário ou pré-revolucionário, muito pelo contrário. Aqui, talvez, resida, a meu ver, o nódulo tático mais problemático da concepção defendida por Valério Arcary. Ao contrário do que decorre de sua concepção, não estamos em época de buscar uma frente única com as forças democráticas para acumularmos forças para a revolução. Antes, pelo contrário, precisamos aglutinar as forças socialistas, anti-democráticas, promover a clivagem pela crítica radical da concepção de mundo de inspiraão reformista e democrática para, nessa difícil quadra histórica, acumularmos as forças socialistas-comunistas imprescindível à humanidade.

Por fim, não deixa de ser, de algum modo, curioso o fato de que um lukácsiano se encontra à esquerda de um trotskista. Os lukácsianos, historicamente vinculados aos antigos PCs de linha soviética, sempre estiveram politicamente à direita do campo trotsquista. O fato de, hoje, a posição que aqui defendemos talvez possa ser tratada como "ultra-esquerdista" por Valério Arcary, não deixa de ter lá seus aspecto inusitado. Será isso apenas manifestação da enorme confusão ideológica trazida pela contra-revolução ou será indicativo de um processo ideológico mais profundo? Será interessante saber como o futuro responderá a essa questão.

Bibliografia

Arcary, V. (2004) As esquinas perigosas da história. Ed. Xamã, S. Paulo.

Marx, K. (1969) A questão Judáica. Ed. Lambert, Rio de Janeiro.

MEW (1956). Band I, Dietzverlag, Berlim.

Marx, K. (1983). O Capital. Livro I, tomo I. Ed. Abril Cultural, São Paulo.

Paniago, C. (2001) "A Incontrolabilidade Ontológica do Capital -um estudo sobre o Beyond Capital de I. Mészáros". Pós Graduação Serviço Social, UFRJ, Rio de Janeiro.

Paniago, C. (2003) "As lutas defensivas do trabalho: contribuições problemáticas à emancipação". Serviço Social e Sociedade, n. 76, Ed. Cortez, São Paulo.

Lukács, G. (Vol I, 1976, Vol II, 1981) Per una Ontologia dell'Essere Sociale. Ed. Rinuti, Roma.

Millett, Kate. (1994) Politics of Cruelty. Norton, N. York.

Mészáros, I. (1995) Beyond Capital. Merlim Press, Londres.

Mészáros, I. (2002) Para Além do Capital. Boitempo, S. Paulo.

 

Autor:

Sergio Lessa

sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br

Prof. do Departamento de Filosofia da Ufal e membro da editoria da revista Crítica Marxista.


[1] Mészáros e Para além do capital (2002), novamente, são o autor e o texto fundamentais nessa área.



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