Este artigo se limita a levantar questões interpretativas que, esperamos, possam lançar certa luz para a compreensão do papel desempenhado atualmente por alguns movimentos sociais na América Latina. Movimentos que, não esquecendo suas particularidades e especificidades, são inteligíveis nos marcos de uma análise centrada na luta de classes. Trataremos sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional, que tem sua natureza no campo e em comunidades indígenas mexicanas. Atentaremos, sobretudo, para as formas de conflitualidades desenvolvidas contra o sistema social vigente.
Em 1º de janeiro de 1994, numa conjuntura que apregoava o fim das alternativas à ordem social vigente e em que a história testemunhara o fim da "bipolaridade" no cenário mundial, num escondido rincão do sudeste mexicano, na exata data em que entrava em vigor o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, um punhado de indígenas mal-armados desferem um grito de Já Basta! Contra mais de 500 anos de exploração e opressão, contra certas condições de miséria pré-moderna em que ainda vivem e contra a modernização neoliberal da miséria que "os de cima" buscam lhes impor no presente[2].
O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em 14 anos de insurreição pública e 24 de formação, em decorrência das transformações teóricas e práticas pelas quais passou, inovou e questionou diversos cânones das teorias e experiências dos movimentos de esquerda do último século, desvelando novas (velhas) formas de organização e de se fazer política. O zapatismo, pelas suas características organizativas, suas formas de luta e de fazer política, suas inscrições identitárias, suas conceitualizações da ação coletiva, suas formas de linguagem, seus questionamentos em relação ao poder, à política, ao Estado e à democracia, coloca particularidades que o distinguem de outros movimentos precedentes e, sem dúvida, impulsiona a revitalização do pensamento crítico. Com uma capacidade questionadora e de autocrítica poucas vezes vista em movimentos desse tipo, o EZLN se apresenta como antípoda das tradicionais guerrilhas que a América Latina conheceu, sendo um dos despertares mais visíveis de um novo ciclo de protesto social que tomou corpo no decorrer da segunda metade dos anos 1990 na América Latina, de cunho antineoliberal e anticapitalista.
Ao buscarmos entender o EZLN, invariavelmente, temos que considerar a questão étnica que o conforma. No México, os indígenas representam entre 10% a 15% da população, isto é, entre 8 e 12 milhões de pessoas divididas em 56 grupos étnicos[3]. Assim, além da desigualdade e da miséria, outro elemento fundamental a ser analisado para a compreensão das contradições do país é a diversidade étnica. Não obstante o fato de que certos elementos para a apreensão do significativo peso das populações indígenas na conformação mexicana devam ser buscados a partir da colonização e da formação do Estado-nação, não se deve restringir-se a esse momento histórico, pois, se a gênese desse conflito se deu nos primórdios do capitalismo mercantil, essa luta evoluiu e acompanhou o processo de desenvolvimento do próprio capitalismo, transformando-se e adaptando-se.
Com a consolidação do Estado burguês e sua ideologia liberal, se procurou tornar hegemônica a cultura capitalista do ocidente europeu, relegando às outras formas culturais o título de mortas ou arcaicas; buscou-se assim ocultar o "problema cultural", graças à própria pretensão normativa do paradigma liberal que pretende se colocar como civilizatório e mesmo ontológico, como um dever-ser da história, gerando conflitos contraditórios com concepções de mundo distintas, como as indígenas (DÁVALOS, 2005a; 2005b).
A nacionalidade dos Estados latinos não apenas não representa as identidades da grande maioria de sua população, como lhes é contrária. Na prática, a descolonização do continente apenas se realizou de forma incompleta visto que, não obstante a independência dos reinos ibéricos, foi mantida a estrutura interna da colônia e o domínio ideológico capitalista. A maior parte desses Estados se tornou excludente e homogeneizadora, exatamente por não corresponder a uma realidade social complexa e heterogênea, por reconhecer uma só identidade e nacionalidade –e assim tentar escamotear uma radical fragmentação e divisão sociocultural e econômica (CASANOVA, 2003). De tal modo, a busca para a "solução" do "problema étnico" se traduz em um complexo desafio sócio-político contra um projeto centralista e excludente, que tem por base a cultura e a ideologia da classe dominante, que percebe o "outro" como uma cultura inferior, fruto do atraso, que é necessário superar, na medida em que se configura como obstáculo à "unidade" da nação.
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