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Historiografia, totalidade e fragmentação (página 2)

Nildo Viana

A definição de método como recurso mental heurístico para analisar a realidade concreta é o ponto de partida para o nosso próximo passo, que é o da existência de vários métodos e de seus elementos constituintes. Existem métodos que se tornam verdadeiros modelos de análise, perdendo a flexibilidade e se tornando normativos. Este é o caso do método funcionalista, bem como do método estruturalista. Ao invés de serem uma forma de expressão da realidade, tais métodos se tornam modelos para o pesquisador encaixar a realidade. O método ganha primazia sobre a realidade. Assim, temos o fetichismo do método.

A partir desta percepção, podemos compreender duas formas de conceber o método: a forma normativa do modelo e a forma flexível do recurso heurístico. Ambos são utilizados para expressar a realidade, mas um assume a forma de modelo que a priori já aponta para os resultados da pesquisa; o outro é um caminho, um recurso hipotético que somente após a pesquisa concretizada permite a sua reconstituição. Neste segundo caso temos o método dialético. Obviamente que aqui se trata do método dialético elaborado por Marx e desenvolvido por Lukács (1989), em seus escritos de juventude, por Korsch (1977) e alguns outros e não a dialética positivista criada por Lênin, Stálin e outros (VIANA, 2003a).

Em todos os métodos nós temos a formação das categorias, isto é, instrumentos mentais que nos ajudam a analisar a realidade. As categorias são instrumentos mentais produzidos pelos seres humanos para que possamos compreender a realidade e isto independente dos métodos. Tal como coloca o sociólogo Durkheim (1996, p. XV-XVI):

Na raiz de nossos julgamentos, há um certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual; são aquelas que os filósofos, desde Aristóteles, chamam de categorias do entendimento: noções de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade, etc. Elas correspondem às propriedades mais universais das coisas. São como quadros sólidos que encerram o pensamento; este não parece poder libertar-se deles sem se destruir, pois tudo indica que não podemos pensar objetos que não estejam no tempo ou no espaço, que não sejam numeráveis, etc. As outras noções são contingentes e móveis; concebemos que possam faltar a um homem, a uma sociedade, a uma época, enquanto aquelas nos parecem quase inseparáveis do funcionamento normal do espírito. São como a ossatura da inteligência.

Estas categorias do pensamento são produtos mentais que os seres humanos criam e que estão presentes de forma exemplar nos métodos de análise da realidade. As categorias são instrumentos mentais e por isso não se referem a nenhuma realidade concreta e por isso elas se distinguem dos conceitos. Os conceitos são expressões da realidade e as categorias são instrumentos para analisarmos a realidade. A categoria espaço, por exemplo, não se refere a nenhuma realidade concreta, existente de fato, e por isso é uma categoria. O conceito de espaço urbano, por sua vez, se refere a uma delimitação concreta e por isso existente de fato. Assim, temos a transformação de uma categoria em um conceito mas isto só foi possível devido ao fato de que a categoria passou a ser acompanhada por algo concreto, existente de fato, no caso, o urbano (VIANA, 2002a).

Se a mente humana cria as categorias para compreender o real, o método também o faz e de forma articulada num conjunto de categorias. Cada método específico produz suas categorias específicas. O método funcionalista trabalha com as categorias de função, totalidade, organismo; o método estruturalista com as categorias de estrutura, oposição binária etc.; o método compreensivo de Weber trabalha com as categorias de compreensão, tipo ideal, possibilidade objetiva, etc.; para citar apenas alguns exemplos. Além disso, métodos diferentes podem utilizar uma mesma categoria, embora sua estruturação seja diferenciada. É o caso da categoria totalidade, utilizada tanto pelo método funcionalista quanto método dialético, entre outros. Neste caso, o sentido da categoria totalidade é diferente em métodos diferentes. É por isso que o filósofo Karel Kosik (1987) apresenta quatro concepções diferentes de totalidade, pois ela é concebida de forma diferente em métodos e concepções diferentes.

Podemos, após esta definição de método e seus instrumentos básicos, as categorias, analisar a importância da totalidade. Vários pensadores ressaltaram a importância da categoria totalidade. G. F. Hegel apresentou uma metáfora extremamente feliz ao afirmar que ao se ver apenas a árvore se perde de vista a floresta ou então quando afirmou que "o verdadeiro é o todo" (HEGEL, 1992; VIANA, 2002b).

Depois de Hegel, Marx vai destacar a totalidade enquanto categoria fundamental do método dialético. Para Marx, a totalidade é o concreto.

O processo de reconstituição da realidade no pensamento significa a passagem do concreto tal como visto imediatamente pela consciência para a descoberta de suas determinações, seu processo de constituição, reconstituindo-o enquanto concreto-determinado. Este processo, realizado via abstração, significa o uso do método dialético para reconstituir o concreto enquanto totalidade com suas múltiplas determinações e sua determinação fundamental. Assim, Marx concebe o real, o concreto, como uma totalidade e assim esta categoria assume papel fundamental em seu método.

Outros dois pensadores irão resgatar a importância da totalidade: Lukács e Korsch. Lukács ressalta a que somente a partir do método dialético e da categoria de totalidade que lhe acompanha é possível a inteligibilidade da história:

O problema da compreensão unitária do processo histórico surge, necessariamente, como o estudo de todas as épocas e de todos os setores parciais, etc. E é aqui que se revela a importância decisiva da concepção dialética da totalidade, pois é muito possível que qualquer pessoa compreenda e descreva um acontecimento histórico de maneira essencialmente justa sem que por isso seja capaz de perceber este acontecimento no que ele realmente é, na sua função real no interior do todo histórico a que pertence. Isto é, de o perceber no interior da unidade do processo histórico (LUKÁCS, 1989, p. 27).

Mas Lukács (1989) acrescenta que a categoria da totalidade não abole os momentos constitutivos de um fenômeno numa unidade indiferenciada, criando uma identidade, mas respeita sua autonomia e independência enquanto "momentos dialéticos do todo". Korsch (1977) também vai colocar a necessidade de compreender a realidade social enquanto movimento da totalidade histórica. Tanto Korsch quanto Lukács buscam recuperar a dialética marxista que fora deformada pela social-democracia (o chamado "revisionismo") e pelo bolchevismo (o chamado "marxismo-leninismo") e por isso serão criticados pelos representantes destas duas correntes (SOCHOR, 1987).

No entanto, a categoria da totalidade não esgota o método dialético. Seria necessário um espaço demasiado extenso para abordar todas as categorias do método dialético, tais como concreto, abstrato, determinação, particularidade, entre outras. O nosso objetivo aqui é tão-somente ressaltar a importância da categoria de totalidade para o método dialético e para a compreensão da história. Por isso, para não se pensar equivocadamente a idéia de totalidade aqui exposta, iremos abordar uma outra categoria do método dialético que lhe é complementar e ajuda em sua compreensão. Tratase da categoria da particularidade. Além desta, também iremos nos remeter à categoria de determinação fundamental e autonomia relativa.

A totalidade, o concreto, é resultado de suas múltiplas determinações. No entanto, existe, no conjunto destas determinações, uma determinação que é fundamental. Assim, a categoria de totalidade é complementada pela categoria de determinação fundamental. Tomando o caso da realidade social, o que temos é a sociedade enquanto totalidade. Mas toda totalidade possui elementos constituintes (a não ser na concepção metafísica e não dialética de totalidade). A sociedade, por exemplo, é composta pelo modo de produção dominante e modos de produção subordinados e pelas formas jurídicas, políticas e ideológicas que lhes são correspondentes. Como compreender as relações entre estes elementos constituintes da realidade? Através da categoria de determinação. O modo de produção dominante determina os demais modos de produção e as formas de regularização social (jurídicas, políticas, ideológicas). O modo de produção é a determinação fundamental de uma sociedade. Isto, no entanto, não significa uma concepção mecanicista e monocausal. Os modos de produção subordinados constituem relações sociais próprias e possuem sua especificidade, bem como os elementos das formas de regularização ("superestrutura"). Eles também determinam o modo de produção dominante e fazem parte do processo histórico e influenciam seu processo de transformação ou conservação. É por isso que, de acordo com o método dialético, se diz que eles possuem uma autonomia relativa.

Esta autonomia é relativa e não absoluta. É aqui que há espaço para divergências na abordagem da realidade social. Conceber uma autonomia absoluta a estes elementos significa isolá-los e assim perder de vista a totalidade. O estudo dos fenômenos particulares significa abordar a autonomia relativa e a particularidade de determinado fenômeno. A especificidade deste elemento particular se encontra na forma como ele se relaciona com a totalidade, isto é, a especificidade do direito, por exemplo, está na sua relação com o conjunto das relações sociais. O direito está envolvido na divisão social do trabalho e se manifesta através da categoria profissional dos juristas, advogados, etc., cuja regulação ocorre via Estado (que é a instituição na qual estão os responsável pela produção das leis), e assim por diante. As leis regularizam as relações de propriedade, de trabalho, entre os sexos, entre as empresas, etc., isto é, expressam e atuam sobre as demais relações sociais. Não é possível compreender o direito sem remeter à realidade social em sua totalidade e a compreensão de sua especificidade se encontra em sua particularidade, sua forma particular de se relacionar com esta mesma totalidade.

Apesar de vários pensadores ressaltarem a importância da totalidade, o processo de desenvolvimento histórico da historiografia proporcionou uma primazia para as abordagens que privilegiam o fragmento. O processo da divisão do trabalho intelectual, e sua ampliação com o desenvolvimento histórico da sociedade moderna, se tornam um ponto problemático para o saber científico. A grande divisão entre ciências naturais e ciências humanas e suas diversas subdivisões (as ciências humanas podem ser divididas em historiografia, sociologia, economia, geografia, psicologia, lingüística, entre inúmeras outras; e as ciências naturais em física, química, biologia, astronomia, etc.) se tornam cada vez mais problemáticas, bem como o processo de especialização, que possui uma origem social (VIANA, 2000) e mais profunda, atingindo até mesmo o interior de cada disciplina.

Isto quer dizer que a divisão entre as ciências humanas é em si problemática, pois a realidade social é unitária mas as abordagens são especializadas e artificiais, tomando a aparência da divisão social do trabalho de forma fetichista e assim isola e separa os elementos da sociedade, desligando-os de suas relações concretas com outros aspectos e produzindo assim formas de falsa consciência sobre ela. Isto, no entanto, sempre acompanhou o desenvolvimento das ciências humanas e é uma dificuldade não superada e os apelos à interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade não passam de discursos e paliativos que não resolvem o problema, apesar de reconhecê-lo.

Outro grande problema é a tendência no interior das ciências humanas de isolar o "micro", o cotidiano, o fragmento, em contraposição a uma análise da totalidade. Ou seja, o problema aqui se torna metodológico, no qual não apenas temos uma limitação disciplinar (a esfera especializada de estudo de cada disciplina científica) como uma defesa metodológica do estudo do fragmento e seu isolamento. No campo da historiografia, este posicionamento foi desenvolvido pela chamada "história nova" ou "história das mentalidades". Esta é considerada a terceira geração da Escola dos Annales. Porém, a Escola dos Annales era muito mais uma instituição (com sua sede, publicações, etc.) do que uma "escola acadêmica" (uma corrente intelectual unida por princípios básicos), pela qual passaram não "três gerações" mas na qual se formaram três diferentes escolas, embora elas se empenhassem em manter o crédito da tradição (LE GOFF, 1990), principalmente a dita "terceira geração", pois isto é "legitimante" e permite evitar "conflitos violentos" (BOURDÉ; MARTIN, 1990).

A nova tendência historiográfica se funda numa crítica à "modernidade iluminista", que era marcada pelo racionalismo, otimismo, globalidade, o que é resultado da influência da ideologia pós-moderna (REIS, 2000). O pósmodernismo não busca "verdades históricas", recusam "essências originais".

A fragmentação é levada ao extremo, o universal não é pensável. A subjetividade pós-estrutural é antípoda da subjetividade modernista. Fragmentada e descentrada, marcada por diferenças e tensões, contradições e ambigüidades, pluralidade, nem sonha mais com a unificação (REIS, 2000, p. 183).

Aqui temos uma interpretação pós-moderna (na verdade, pós-estruturalista) da modernidade que não resiste a uma análise crítica. O modernismo, nesta interpretação, é apresentado como globalizante, essencialista, homogêneo. Isto é uma invenção pós-estruturalista, inclusive para se legitimar, pois reconhecer que a modernidade não é um todo homogêneo e que também possui contradições, ambigüidades, pluralidade, não seria coerente com a busca em apresentar a suposta novidade do pós-modernismo, bem como para fazer uma crítica genérica a todos os "modernos", incluindo todos no mesmo saco, e assim aparecer com uma visão superior.

A estratégia aqui é a de uma análise que se torna o leito de Procusto, e isto contra todas as evidências. A modernidade "racionalista" no século 19 produziu obras irracionalistas como as de Nietzsche, o seu otimismo produziu um pessimista como Max Weber (sem falar em Adorno e Horkheimer), e sua "globalidade" produziu uma hiper-especialização no interior até mesmo das disciplinas científicas (para citar apenas o exemplo da sociologia, que desde de Durkheim temos a "sociologia geral" convivendo com as "sociologias especiais", tal como a sociologia da educação, sociologia da arte, sociologia política, sociologia da religião, entre inúmeras outras e os primeiros esboços especializantes dos durkheimianos foi levado ao extremo pela sociologia posterior). Os pós-estruturalistas utilizam o argumento essencialmente "moderno" da divisão temporal e da idéia de que as idéias mais novas são as melhores, mesmo que para isso tenham que apagar arbitrariamente todas as evidências em contrário.

Ainda segundo Reis (2000), a história nova é próxima do pós-estruturalismo e de Foucault, abandonando a abordagem globalizante e a "história-todo", mas não a "história-tudo". Para a visão da nova historiografia, o "todo é inacessível", e a realidade só pode ser abordada por partes e "sem juízos de valor" (REIS, 2000, p. 203). O último tópico, bem moderno e positivista, revela que a nova historiografia não é tão nova assim, pois retomar o surrado discurso da neutralidade não deixa de ser cômico.

É neste contexto que a influência da antropologia se tornará central na nova historiografia. Enquanto Marc Bloch e Lucien Febvre sofriam forte influência da sociologia e Fernand Braudel da economia, a dita "terceira geração" dos Annales se inspiraram na antropologia e enfatizaram o cultural (DOSSE, 2003). É assim que surgem as novas temáticas, com ênfase no cultural e no cotidiano, abordando temas como batismo, casamento, mor-te, o imaginário, o medo, as bruxas. A nova historiografia realizou a "decomposição da história", que deixa de ser História para ser "Histórias". Torna-se "história de tal fragmento do real e não mais história do real" (DOSSE, 2003, p. 269).

Ao abandonar a totalidade, a nova historiografia abandona qualquer possibilidade de explicação, se refugiando na descrição (Reis, 2000; Dosse, 2003; Gorender, 1990). Isto pode ser visto na obra de P. Áries (1986) que descreve a evolução do vestuário das crianças mas não fornece nenhuma explicação sobre as razões das mudanças, e isto é reforçado por sua posição explícita de recusa da explicação (DOSSE, 2003). Tal posição foi justificada epistemologicamente por Veyne (1995)1, que defende o abandono da explicação em favor da subjetividade da interpretação.

Obviamente que dentro da Escola dos Annales (da instituição e não da tendência intelectual) existiam posições diferenciadas, pois negar isto seria a mesma estratégia dos ideólogos pós-modernos para desacreditar os adversários. Porém, não estamos nos referindo à referida "terceira geração" e sim a tendência intelectual que elege a fragmentação e não aqueles que possuem posições mais ou menos diferenciadas, tal como no caso de Duby (1980; 1977), Vovelle (1987; 1990), Bois (1990), entre outros.

Para encerrar esta apresentação da tendência "fragmentista" é interessante citar a chamada "micro-história", ou seja, a versão italiana da tendência pós-estruturalista em historiografia. Esta tendência, que tem como principal representante, Ginzburg, buscam, no contexto italiano, superar a influência do "idealismo croceano" e do "marxismo", que, segundo Revel (apud PESAVENTO, 2000) ficou famosa por ser uma versão da moda pósmoderna. Assim, tal tendência é semelhante à Nova Historiografia e reforça a posição pós-moderna no campo da história.

Após esta breve apresentação da nova historiografia, passemos para uma análise de conjunto de sua produção e o seu processo histórico de constituição. Em primeiro lugar, é necessário desfazer a ficção criada pelos pós-estruturalistas a respeito de sua novidade radical. Tanto o pós-estruturalismo quanto sua versão historiográfica, a nova historiografia, não são uma novidade radical. A crítica da totalidade, da essência, da razão, é muito anterior ao modismo "pós-moderno" e autores como Nietzsche, Simmel, Weber, entre outros, já haviam lançado várias teses que depois seriam recuperadas pelos pós-estruturalistas e novos historiógrafos. O irracionalismo de Nietzsche, Spengler, Weber, entre outros, data do século XIV e do início do século XX. Na verdade, a modernidade sempre teve duas tendências básicas, o iluminismo – a tendência hegemônica – e o romantismo, ou, em outras palavras, o racionalismo e o irracionalismo. A tendência dominante do pensamento burguês mudou de um para outro e nesta mutação teve que apagar o seu passado (no discurso, pois bebe na fonte do irracionalismo do século 19, principalmente de Nietzsche, bastante citado pelos pós-estruturalistas) e apresentar a modernidade como um todo homogêneo para através de uma concepção evolucionista do saber declará-la "ultrapassada" e "superada".

Mas o pós-estruturalismo, tal como a nova historiografia, também recuperam e deformam o pensamento crítico que lhe antecedeu. O tema do cotidiano, que parece ser uma grande novidade, na verdade foi desenvolvido por pensadores marxistas. Este é o caso de Lefebvre (1992) e Debord (1997). Lefebvre escreveu vários livros sobre a questão do cotidiano, abordando as suas mutações no mundo moderno e Debord também buscou, juntamente com os demais integrantes da chamada Internacional Situacionista (GOMBIM, 1974), realizar a crítica da vida cotidiana. A crítica da ciência e da razão também já estava expressa em Debord, Marcuse (1982), Horkheimer (1976) e Habermas (1987). Estes pensadores criticaram a razão instrumental e a ciência e a técnica, enquanto formas de ideologia (no sentido marxista do termo, isto é, enquanto "falsa consciência").

Estas teses e concepções tiveram influência no desenvolvimento das lutas do final da década de 1960, principalmente na rebelião estudantil de maio de 1968. A partir do final dos anos 1950, o capitalismo começa a enfrentar dificuldades em sua reprodução, sendo que os Estados Unidos começam a entrar num período de crise (GRANOU, 1974) e isto se reforça nos anos 1960, o que ocorre também na Europa, onde a taxa de lucro sofre uma forte queda (HARVEY, 1992). A crise do regime de acumulação (BENAKOUCHE, 1981) marca a emergência de um período de transição para um novo regime de acumulação. Neste contexto, ocorre a passagem do regime de acumulação intensivo-extensivo para

o regime de acumulação integral (VIANA, 2003b). É neste contexto que emerge a contracultura, o movimento hippie, as lutas operárias e estudantis, e sua derrota é marcada pela reação conservadora expressa pela contra-revolução cultural do final dos anos 1960 e início dos anos 1990.

Não é por mero acaso que a ideologia pós-estruturalista e a nova historiografia emergem neste período. Segundo Burke (1991, p. 79), "o surgimento da terceira geração tornou-se cada vez mais óbvio nos anos que se seguiram a 1968". O surgimento oficial é de 1969: "em 1969, Fernand Braudel, Charles Morazé e Georges Friedmann confiam os Annales a uma nova equipe: André Burguière, Marc Ferro, Jacques Le Goff, Emannuel Le Roy Ladurie e Jacques Revel" (LE GOFF, 1990, p. 37). Assim, o pós-estruturalismo e sua versão historiográfica são produtos da contra-revolução cultural que segue as derrotas das lutas sociais da década de 1960, tal como colocou um historiador, sem perceber a real importância disso:

Pode-se ver também, nessa influência da etnologia no discurso histórico dos anos 70, a resposta a maio de 68, a vontade de exorcizar o risco, o acontecimento-ruptura que pode estar na origem dos descarrilamentos, mas também a recuperação da contestação da sociedade de consumo, que todos interrogam na materialidade concreta do seu passado (DOSSE, 2003, p. 251).

Esta contra-revolução cultural recupera a temática já presente em Lefebvre, Debord, Marcuse, entre outros, mas busca a sua despolitização. Ao abandonar a totalidade e tomar o cotidiano isoladamente, realiza-se uma continuidade e ao mesmo tempo uma ruptura com a abordagem do cotidiano de Lefebvre e Debord, entre outros. A estratégia é relativamente simples: recupera-se o tema (o cotidiano) mas o isolam, abandonando a totalidade e a explicação, e, assim, realiza-se a sua despolitização. A crítica da vida cotidiana e sua relação com a sociedade capitalista é substituída por uma visão descritiva e isolada do cotidiano, o que não só possui demanda por parte do mercado consumidor editorial como também permite a aparência de novidade. A critica da razão instrumental e suas relações com o poder são substituídas por críticas irracionalistas da ciência e da razão em geral, ou seja, a crítica de Marcuse e Horkheimer que remete à totalidade e ao problema do poder é substituída por um irracionalismo generalizante que despolitiza, pois o problema não é a razão instrumental a serviço do poder e sim a razão em si. Assim, é correta a afirmação de que a nova historiografia abandona a história-problema promovendo uma pulverização dos temas e proporcionando "uma despolitização do fazer histórico" (LARA, 2000).

Esta estratégia pós-estruturalista, presente na nova historiografia, permite que a nova ideologia se apresente como novidade radical, sendo que, na verdade, apenas retoma e deforma questões colocadas há muito tempo. A evolução de alguns representantes da nova historiografia reforça esta interpretação. François Furet, por exemplo, vai do pseudomarxismo do PCF – Partido Comunista Francês – (que se posicionou contra o movimento de maio de 1968) ao liberalismo, bem como Le Roy Ladurie, que adere a uma organização antimarxista (DOSSE, 2003). Na verdade, estes dois exemplos apenas revelam uma característica comum de ex-stalinistas (e, portanto, pseudomarxistas, e de posições políticas conservadoras e teórico-metodológicas positivistas) de partir de uma forma de conservadorismo para outra. Esta mudança política ocorre dentro de uma posição conservadora, sendo formal. A mudança de posição política é acompanhada por uma mutação epistemológica: "em 1969, François Furet apontava para uma compartimentação da história, propondo a abandonar a um longínquo futuro a ambição de uma síntese global - exatamente como os velhos positivistas!" (CARDOSO, 1988, p. 93). Esta mutação epistemológica também ocorre dentro de uma posição conservadora, sendo também formal. Ocorre a passagem de uma visão positivista totalizante para uma visão positivista particularizante.

O sucesso da nova historiografia se valeu não somente da hegemonia pós-estruturalista mas também das estratégias mercadológicas dos seus representantes, que conseguiram um conjunto de alianças no interior da indústria cultural, tal como as editoras Gallimard, Flammarion, Hachette, bem como jornais e televisão, tendo até mesmo um programa televisivo (BOURDÉ; MARTIN, 1990). A mídia foi uma forte aliada da nova historiografia (DOSSE, 2000).

A explicação do sucesso da nova historiografia nos remeteria a analisar também a competição entre a ciência historiográfica e as demais ciências humanas, bem como as próprias disputas internas, mas deixaremos para outra oportunidade o desenvolvimento desta análise, apesar de sua importância, pois nosso objetivo aqui se limita a analisar a determinação fundamental da gênese da nova historiografia.

CONCLUSÃO

Após esta trajetória analítica na qual apresentamos da importância metodológica da categoria totalidade e seu abandono pela nova historiografia ("nova história"; "história das mentalidades") e suas motivações, demonstramos, simultaneamente, a força da análise baseada na totalidade e a fraqueza da concepção "fragmentista".

Ao analisarmos a nova historiografia, não nos limitamos a uma história das idéias isoladas e sim no interior de uma totalidade, o que nos per-mite perceber a gênese desta tendência historiográfica. Assim, as transformações do capitalismo e as lutas sociais, ao lado de outros elementos que deixamos de lado mas que também tiveram um papel na formação da nova historiografia (meios de comunicação, competição na comunidade científica), permitem compreender a gênese e significado da nova historiografia, bem como, tomando como exemplo esta mesma análise, a importância da categoria da totalidade, ressaltada no início deste texto.

Por conseguinte, temos também que perceber a re-emergência do ponto de vista da totalidade no interior das ciências humanas, bem como uma retomada do método dialético. No primeiro caso, temos a retomada da categoria da totalidade, embora sob perspectivas diferentes, e, no segundo caso, temos um ressurgimento do marxismo em suas tendências mais críticas e fecundas. Isto não é produto do mero acaso e sim do próprio desenvolvimento histórico, e sua explicação remete, novamente, a abordar a totalidade. No entanto, não é este o objetivo do presente trabalho e sim demonstrar a importância da categoria totalidade e as razões que motivaram seu abandono e o significado deste acontecimento. Assim, esta é uma contribuição para se repensar e reforçar a abordagem que parte do ponto de vista da totalidade.

Nota

Para uma crítica a esta posição, veja Viana (2001) e Gorender (1990).

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Autor:

Nildo Viana

nildoviana[arroba]terra.com.br

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professor na Universidade Estadual de Goiás.



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