Estamos diante de um quadro novo na América Latina, uma vez que diversos partidos de "esquerda", ou ao menos ditos social-democratas, têm conseguido vitórias no campo eleitoral: Brasil (Lula), Argentina (Kirschiner), Bolívia (Morales), Venezuela (Chávez), Uruguai (Vázquez); ou ao menos se configura sua possibilidade, como no Peru ante a possível vitória de Humales, México na possibilidade de López Obrador etc. Seria esse um sinal de amadurecimento e estabilidade da democracia em dito continente, em que, enfim, podemos utilizar a via eleitoral – sempre tão distante do povo a não ser em tantos e quantos anos – para modificar a situação de miséria e penúria pela qual padecem nossas sociedades há tanto tempo?
Acreditamos que o sintoma que se apresenta é um pouco mais complexo do que a primeira vista pode parecer. Sustentamos que esta é uma crise da própria forma democracia nas sociedades capitalistas e antes de essas vitórias eleitorais significarem a ascensão do "povo" ao poder do Estado, ao contrário, perpetua-se sua subordinação em detrimento da forte mobilização que o continente vem apresentando nas últimas décadas sob jugo neoliberal. Na verdade, esses partidos exatamente ascendem ao poder para concluir o trabalho que a direita não teria condições (por falta de legitimidade) para acabar. Mas, faz-se necessário analisar que processos operam em cada situação específica que faz com que as estruturas governamentais sejam impermeáveis às demandas populares, ou que os "governos progressistas", gestados pelas lutas de base, tenham um giro de 180º graus até políticas conciliatórias com o Capital.
Ainda assim, tem-se que salientar as experiências do governo de Chávez na Venezuela, que põe em relevo a vinculação entre os processos de organização dos movimentos sociais populares e uma progressiva democratização social, além de novas formas de gestão do político, com as mudanças da Constituição de 1999, que combina as tradicionais formas da democracia representativa liberal com outras formas, como a democracia direta, a participativa e a protagônica[1] (LANDER, 2006). Outro elemento a complexificar a análise atual é a eleição de Morales, que resulta, desde distintos pontos de vista, num processo de democratização societal com as recentes medidas no sentido de nacionalização das empresas petrolíferas, do gás e das terras bolivianas.
A "abertura democrática" na América Latina, não deve ser entendida apenas como fruto das reivindicações e luta dos trabalhadores e setores populares, mas como um imperativo da própria lógica de desenvolvimento atual do capitalismo. Passamos de um governo-Estado-popular ou ditatorial, para um capitalismo democrático, em que a "democracia" (em sua face liberal-parlamentar) tem sido esvaída de canais efetivos de participação popular e o mais importante, de formas e possibilidades efetivas de mudança social.
É interessante salientar como nestes lados do mundo a hiperinflação serviu (e ainda serve) como equivalente funcional ao trauma da ditadura militar como mecanismo para induzir "democrática" e não coercitivamente um povo a aceitar as mais drásticas políticas neoliberais (BORON, 2004). Logo, a democracia-parlamentar (e sobretudo a dívida externa e o controle da inflação) tem sido utilizada como substituto de dominação pelas elites e interesses do capital transnacional e financeiro. A eleição e permanência de partidos "de esquerda" têm servido como válvula de escape das crescentes insatisfações populares no continente, visto que esses governos não possuem margem de atuação fora da ordem das coisas dadas e por vezes nem interesse em seguir outro caminho.
A alternância dessa pseudo-esquerda no poder de forma pacífica, só é possível pela própria hegemonia do programa neoliberal e seu "combate a hiperinflação", austeridade fiscal e outros discursos ideológicos, e o fato do "capitalismo democrático" e suas eleições não serem mais instrumentos de superação da situação econômico-social. No México, por exemplo, o NAFTA, serve também como dispositivo para diminuir a ameaça de uma abertura democrática, um mecanismo para garantir a democracia ao estilo estadunidense, de cima para baixo, e para facilitar diversos acordos bi e multilaterais implementados no continente.
A globalização financeira se contradiz com o avanço das democracias nacionais, ameaçando sua consolidação ao mesmo tempo em que fecha as possibilidades de legitimidade e governabilidade. Hoje os presidentes podem ser "esterilizados" por meio dos programas de ajuste da economia que são do interesse do grande capital internacional e se apresentam acima dos governos. Cria-se, assim, um ambiente em que praticamente não haja incertezas e mudanças nas regras e instituições econômicas, restringindo a autoridade política dos governos destas nações, bem como sua governabilidade.
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