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A tendência afetivista propõe a busca do equilíbrio e do crescimento pessoais por meio de técnicas psicológicas. O que importa é que o estudante fique de bem consigo mesmo, igual a como se submete a terapias psicológicas. A diferença entre afetivismo e cognitivismo é que, em lugar de dilemas abstratos do cognitivismo, na afetivista o conteúdo de ensino vem da própria história de vida dos estudantes.
A tendência moralista é caracterizada por seu objetivo normalizador, prescritivo. Valores e atitudes corretas definidas a priori constituem seu conteúdo de ensino. E, diferentemente das tendências afetivista, cognitivista e filosófica, esta propõe estratégias de formação moral baseadas em um conjunto de valores a ser transmitido aos estudantes.
A tendência da escola democrática não exige momento reservado à aula de ética, preconiza a democratização das relações interpessoais na escola e possibilita a cada estudante participar da elaboração de regras de conduta e tomada de decisões sobre problemas reais. Essas atividades são importantes ao alcance da qualidade das relações escolares. A democracia é um modo de convivência e os aprendizes devem experienciá-la na escola.
O que parece evidente é que a proposta de ensino de ética nos PCN baseia-se no escolanovismo de John Dewey (1973) e em pressupostos de natureza construtivistas. O que o documento exclui é a idéia de ética como uma disciplina filosófica, psicologizando-a abertamente. Aí, a ênfase nas relações interpessoais no interior da escola ganha todo o destaque, uma vez que a pressuposição é a de que a vida escolar democrática serve de treinamento para o grande consenso a ser vivido fora da escola.
Mas, uma análise acurada pode evidenciar que os objetivos propostos no PCN8 se voltam para a moralização do estudante, uma vez que os conteúdos respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade têm de possibilitar a instauração da comunidade democrática, circunscrita ao convívio escolar.
Em contraposição, para possibilitar o exercício crítico por parte do estudante, a sociedade em sua complexidade é que deveria ser objeto de estudo, coisa que o PCN em questão não propõe. Se a proposta fosse nessa direção, haveríamos de notar que, em uma sociedade na qual é visível a prevalência legalista da dimensão civil da vida, esse trabalho pedagógico teria de se encaminhar rumo à desconstrução de nosso ethos, o que não coincide com o que é preconizado nos PCN.
Evidenciar os meandros de nosso ethos é adotar a postura de ver a realidade tal qual ela é. Entretanto, essa radicalidade não foi para esse documento, evidenciando que disciplinas filosóficas, que podem possibilitar criticidade, não lograram cidadania curricular dada a outras. Daí, a pergunta: se é verdade que o estudante tem direito ao exercício da criticidade, por que a filosofia, de que ética é parte, foi banida dos PCN?
Por que, nos PCN, fala-se tanto dos conceitos de criticidade, autonomia, emancipação e felicidade, mas, ao mesmo tempo, nega-se ao estudante o direito de fazer o percurso filosófico que poderia auxiliar na aquisição da compreensão sobre esses bens simbólicos?
Talvez, com base nesse entendimento, a transversalidade poderia ser mais bem encarada, não apenas como uma questão didática, de relação entre as disciplinas. Uma transversalidade diferente da dos PCN pode transcender a epistemologia e abarcar outras áreas da ação humana, inclusive a escola e o currículo.
Transversalidade é um estilo de ser-estar-agir. Por isso, pelo fato de nossas escolas e currículos ainda manterem uma estrutura disciplinar, a ética só fará sentido no currículo se lhe for dado o status de disciplina. Talvez nessa condição, porque fática, e não fictícia, a ética filosófica poderia vir a transversalizar com outros saberes escolares. Problemática é a situação criada pelos PCN que, ao diluírem a ética em todas as áreas, não a coloca em nenhum lugar.
Pelo que pode ser compreendido em uma perspectiva diferenciada da dos PCN, o processo curricular, cuja função não deve ser apenas a de hierarquizar áreas e temas, implica lidar com a parte dos bens simbólicos socialmente produzidos e passíveis de escolarização ao lado da complexidade humana. Nessa linha, será que a escola não deveria ser concebida como local privilegiado de prática social, como ponto de apoio privilegiado à transformação social? Ou a escola pode se contentar em preparar os futuros cidadãos da democracia liberal, o proprietário-consumidor-trabalhador, como, numa perspectiva antropológica, parece ser as finalidades maiores dos PCN?
Em linha similar, Gallo afirma a idéia de uma escola diferente:
"se desempenha necessariamente uma função ideológica, a escola pode também desempenhar uma ação contra-ideológica, que consistiria no desenvolvimento de um processo de subjetivação autônomo, podendo levar a indivíduos verdadeiramente singulares ou livres" (GALLO, 1995: 66).
Para que essa tarefa seja alcançada a contento, é necessário que a ética vá para a escola como parte dos bens simbólicos a que o conjunto dos brasileiros tem direito. Nessa condição, a ética pode contribuir para propor alternativas de superação da ideologia hegemônica. Entretanto, enquanto continuar sendo tratada como foi nos PCN, a cidadania curricular da ética filosófica continuará a ser negada, o que é lamentável. Paralelamente a isso, nosso ethos real concreto permanecerá incólume e robusto.
A reforma curricular que deu origem aos PCN foi feita segundo os pressupostos da qualidade, eficiência e produtividade. Nesse processo, os professores não foram ouvidos. Ao contrário do que se propala Brasil afora, os estrangeiros é que tiveram voz e vez nesse processo. Dessa maneira, o que acabou sendo curriculizado nos PCN não brotou de nossas experiências, nem das pesquisas do campo curricular feitas no Brasil. O capital internacional e os organismos internacionais falaram mais alto.
Agora, na operacionalização dos PCN, tomara que, na prática efetiva, expressemos nosso pensamento sobre esses documentos, particularmente no que respeita ao tema transversal ética, cujos conteúdos podem, sim, ser buscados na vida cotidiana, em nosso ethos real, para que não venhamos a aceitar uma proposta de currículo reprodutora ou conformadora.
Tomara que nossa prática evidencie que outro currículo, outra ética e outra cidadania são possíveis, fazendo-nos assumir nosso ethos real com o intento de superá-lo, porque outros modelos de educação, de ser humano e de sociedade, diferentes daqueles que os neoliberais propõem, também são possíveis. Sem um currículo que forme o sujeito com base na ética da igualdade, da justiça e liberdade, fortalecidas, pela eqüidade, não capitalistas, como poderemos falar em condições de possibilidade de cidadania?
Em face do exposto, é oportuno indagar: como trabalhar conteúdos de ética, tal como propõem os PCN, senão em uma perspectiva crítico-transformadora? Não há dúvida de que o ensino de ética nas escolas é possível. Mesmo em face de uma sociedade que absolutiza o ter e seus princípios correlatos.
Mas nós, professores e professoras, podemos ficar passivos diante de uma proposta curricular de ética que se contente com a reprodução de valores morais e princípios éticos dominantes? Nosso desafio maior não é justamente o de trabalharmos em um sentido crítico, a começar pela avaliação dos próprios PCN, evidenciando que podemos ir além da redenção e da reprodução para alimentarmos a utopia dos projetos sociais transformadores, incluindo o currículo, a ética e a cidadania?
Se assim for, então somos instados a questionar o ethos sobre o qual nosso modelo de sociedade se baseia, e não adotar a postura de alheamento ou indiferença em face dele. Nessa tarefa, a ética filosófica pode ser um instrumento de grande valia. Contudo, a maneira confusa como o correspondente tema transversal foi inserido nos PCN não cumpre essa finalidade. E isso dá a entender que a confusão dos espíritos de que fala Santos (2001) alcança a escola e o currículo.
Com essa idéia, fica registrada a esperança de que as questões aqui levantadas possam ser entendidas como manifestação de uma profunda preocupação com a problemática relacionada ao ensino de filosofia em nossas escolas. Em especial com o ensino de ética, que, para ser digna do próprio nome, deve ser vista como merecedora de verdadeira cidadania curricular, para além daquilo que os PCN lhe reservaram.
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Autor:
Wilson F. Correia
Desenvolve pesquisa de doutoramento em educação na UNICAMP. É mestre em Educação pela UFU. Cursou especialização em Psicopedagogia pela UFG. Graduou-se em Filosofia pela UCG. É professor universitário. É autor de Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006
Extraido de Revista Espaço Acadêmico Nº 80, Janeiro 2008.
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