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"O Estado [que surge da emancipação política, o Estado "político"] anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem como diferenças não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças, coparticipante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sôbre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade (Allgemeinheit) em contraposição a estes elementos seus." (Marx, 1969:25-6)
A emancipação política retira da esfera do Estado a vida concreta – o que inclui a propriedade privada – dos indivíduos, liberta a propriedade privada das amarras da "feudalidade" e, assim, remove os obstáculos à sua plena regência sobre a reprodução social. O Estado que brota da emancipação política, "longe de destruir a propriedade privada, a pressupõe".(Marx, 1969:25-6)
"Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo do negócio (Gewerbe), obteve a liberdade de negociar (Gewerbefreiheit)." (Marx, 1969:50; Marx, 1956:369)
A plena regência da propriedade privada faz com que, tanto no plano da subjetividade quanto objetivamente, a vida social se converta no destino coletivo da infindável disputa no mercado por um lugar ao sol. A vida coletiva de cada um e de todos nós é, tanto subjetiva quanto objetivamente, uma afirmação coletiva da propriedade privada de cada um, ou seja, uma afirmação coletiva da "particularidade" alienada [2]de cada indivíduo que se converteu, para utilizar uma expressão de O Capital, em "guardião da mercadoria". E, enquanto guardiões de mercadorias, as vontades das pessoas se convertem na necessidade de a mercadoria ir ao mercado para ser trocada, ou seja, a vontade daspessoas se identifica às necessidades inerentes à reprodução da mercadoria. É esta desimpedida (frente ao Estado) determinação da vida social pela mercadoria que compõe a essência da emancipação política. E é este mesmo fato que faz com que, frente à fragmentação da vida coletiva por meio da concorrência de todos contra todos, o Estado que emerge da emancipação política seja a única generalidade (Allgemeinheit) possível.
Ora, se a generalidade apenas pode comparecer como Estado, a individualidade apenas pode comparecer como cidadania. Todavia, como o cidadão apenas pode ter sua existência plena sob o Estado "político" (isto é, que surgiu da emancipação política) o qual, por sua vez, tem na propriedade privada seu "pressuposto", segue-se necessariamente que o indivíduo burguês deve ser, ao mesmo tempo, "politicamente" genérico e "materialmente" um "guardião da mercadoria" e, por isso, é portador de uma personalidade egoísta, privada e mesquinha. Daqui, para Marx, que a individualidade burguesa seja ontologicamente cindida entre uma porção citoyen (o "politicamente genérico") e uma outra porção bourgeois (o "guardião da mercadoria" cuja vontade é a vontade da mercadoria):
"no plano da realidade, da vida, [somos portadores de] uma dupla vida, uma celestial e outra terrena, a vida na comunidade política, na qual ele [o indivíduo] se considera um ser coletivo, e a vida na sociedade burguesa (bürgueliche Gesellschaft), em que atua como homens privados (Privatmensch); considera outros homens como meios, degradase a si próprio como meio e converte-se em joguete de poderes alienados (fremder Mächte)." (Marx, 1969:26-7; Marx, 1956: 355)
Marx precisa o que ele entendia, já em 1843, por "poderes alienados "(Marx, 1969:35-6):
"A venda é a práxis da exteriorização (Entäusserung). Assim como o homem -enquanto permanece sujeito às cadeias religiosas -só sabe expressar seu ser (Wesen) convertendo
o num ser fantástico e dele alienado (indem er es zu einem fremden phantastischen Wesen macht), assim também só poderá conduzir-se pràticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser alienado (fremden Wesens) e conferindo-lhes o significado de uma essência alienada (fremden Wesens), do dinheiro (...)."(Marx, 1969:62-3, Marx, 1956:376-7).
A relação do homem com o mundo em que vive, sua "exteriorização", é a "práxis" da "venda". Nesse contexto histórico em que impera a concorrência de todos contra todos, ele só pode participqar da "comunidade" convertendo-se em um "ser fantástico", o cidadão. E apenas poderá produzir colocando o "seu produto" sob o "império" do "dinheiro", este "ser alienado" que confere ao "produto" da "práxis" humana uma "essência alienada". Resultante desta "exteriorização" alienada, o indivíduo humano "se transforma (...) em sua prática acabada" no "egoísmo concreto" do cidadão, isto é, o burguês emancipado politicamente. (Marx, 1969:62-3; Marx, 1956:36-7) Por isso, diz Marx, "A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada." (Marx, 1969:42-3) Essa liberdade
"faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta." (Marx, 1969:42-3)
E tudo isso apenas é possível na medida em que:
"O dinheiro é (...) o valor universal de todas as coisas, constituído por si mesmo. (...) [Ele], despojou o mundo inteiro de seu valor peculiar, tanto o mundo dos homens como a natureza, o dinheiro é a essência do trabalho e da existência do homem, alienada deste, e esta essência alienada o domina e é adorada por êle." (Marx, 1969:59)
O "império" da "cidadania" e do "Estado político", ao emancipar politicamente a propriedade privada burguesa, "despojou o mundo inteiro" ("tanto o mundo dos homens como a natureza") "de seu valor peculiar", e o converteu em um "universal" abstrato (abstrato, no sentido que cancela o "valor peculiar" de todas as coisas) que é o "dinheiro". Desse modo, com a emancipação política, o "dinheiro" se tornou a "a essência do trabalho e da existência do homem". Enquanto universal que cancela o "valor peculiar" de cada indivíduo e de cada produto do trabalho, o "dinheiro" assume a função social de "essência humana", uma essência "alienada" que o "domina" e a qual ele "adora". A emancipação política, ao converter o dinheiro na essência alienada do homem, "num só e mesmo ato" (Marx, 1969:50) abstraiu os "indivíduos concretos, historicamente determinados" (Lukács) em cidadãos e, igualmente, projetou a generalidade humana, no Estado "político". Este complexo de alienações que articula como determinações reflexivas a propriedade privada burguesa, a cidadania e o Estado "político" é o que deverá ser superado pela emancipação humana. Nas palavras de Marx, a "emancipação (...) do dinheiro (...) seria a autoemancipação de nossa época"(Marx, 1969:55), a superação da "suprema expressão prática da auto-alienação humana."(Marx, 1969:56) A superação da existência alienada requer, necessariamente, portanto, a superação da propriedade privada, do Estado, da cidadania --e Marx e Engels acrescentariam em seguida --do casamento monogâmico.
A emancipação política, portanto, é a realização histórica da sociabilidade regida pela propriedade privada burguesa na qual os homens não passam de "joguetes" de seus "poderes alienados".
"O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre." (Marx, 1969:23)
Ou seja, "Não obstante, a anulação política da propriedade privada, ao contrário e longe de destruir a propriedade privada, a [emancipação política a] pressupõe." (Marx, 1969:25).
Tornar o Estado laico não significa emancipar seus cidadãos da religião. Pelo contrário, o Estado laico é a melhor condição para o mais pleno predomínio da religião na vida cotidiana porque converte a religião em uma questão não-estatal, o que significa, "dentro do contexto do mundo atual', convertê-la em uma questão privada. Livre dos ordenamentos estatais, a religião pode então se articular plenamente com a vida privada burguesa. O cidadão sente-se religiosamente livre quando o Estado se declara laico. "Donde se conclui que [, na emancipação política,] o homem se liberta por meio do Estado ("das Medium des Staats") (...)"(Marx, 1969:24; Marx, 1956:353).
Liberdade por "meio do Estado" – em se tratando da liberdade, poder-se-ia imaginar uma sua forma historicamente mais limitada que a conquistada "por meio do Estado"? Novamente, não se trata de negar que a emancipação política e a liberdade "política" a ela inerente (Marx, 1969:42-3) sejam um "grande progresso": já é uma liberdade contraposta à "iliberdade" da "feudalidade". Contudo, possui por limite o fato de "pressupor" a propriedade privada. Claro está que Marx, ao fazer a crítica da limitada forma de liberdade burguesa inerente à emancipação política, não está propondo um retorno à "feudalidade", tal como a crítica de Marx à liberdade religiosa burguesa não é a defesa de uma regulamentação estatal da religião. Ele está defendendo a abolição das condições de vida que tornam a religião uma necessidade; está, portanto, postulando a superação das condições históricas que fundam a religião – e, com as devidas mediações, o Estado "político", a propriedade privada e a cidadania. Ele está criticando os limites da emancipação política para assinalar a necessidade de sua superação pela emancipação humana; para propor uma sociedade comunista (nos termos de 1843, uma sociedade "não alienada" e "sem dinheiro") que não necessite nem do Estado nem da religião. Não se trata, portanto, para Marx, de defender o retorno da intervenção Estatal, mas de propor a extinção do Estado[3]4.
É nesse sentido que José Paulo Netto, com precisão, na abertura do ENPESS afirmou ser a emancipação política "funcional" à ordem do capital.
Na "sociabilidade burguesa", o indivíduo é reduzido à mísera abstração de cidadão e, o gênero humano, à não menos pobre "soberania imaginária", "generalidade irreal" (Marx, 1969:26-7; Marx, 1956:354-5) do Estado "político". Propriedade privada burguesa, Estado "político" e "cidadania" apenas possuem existência história real enquanto partes de um mesmo todo, isto é, a sociabilidade regida pelo capital. Só existem na mútua relação um com o outro, não possuem qualquer existência fora desta "determinação reflexiva" (da qual a propriedade privada é o momento predominante). Tal como não podemos ter Estado "politico" sem cidadania, não podemos ter cidadãos sem propriedade privada burguesa, nem esta sem o Estado "político". Por isso o indivíduo burguês é, ao mesmo tempo, "cidadão" na esfera do "idealismo do Estado" (Marx, 1969: 49) e, enquanto pessoa concreta, o "burguês" que é guardião da sua propriedade privada.
Neste preciso sentido, o cidadão para Marx é o proprietário privado, este é o indivíduo cujo ser social (diferente dos indivídudos da "feudalidade") funda-se em sua propriedade. A particularidade da sua propriedade é sua particularidade individual; a alienação desta, a sua alienação pessoal. Ele é, agora, seu "guardião"; sua existência de guardião só tem significado na medida em que é guardião da sua propriedade. O humano pertence à sua propriedade.
A "emancipação humana" – em contraste --se "processa" ao superar a sociabilidade regida pela propriedade privada. Superada esta última, desaparece o fundamento da distinção entre o indivíduo real (o proprietário privado) e o cidadão --e a generalidade humana não mais se consubstanciará como a contraposição "política" entre o cidadão (o "homem real" abstraído de sua essência de proprietário privado) e o Estado "político" (a "soberania transcendental" da generalidade política burguesa). A superação da propriedade privada significa, portanto, a superação da própria emancipação política enquanto tal. Não porque, novamente, Marx apregoe o retorno à "feudalidade", nem porque desconsidere o "enorme progresso" que ela representou para o desenvolvimento da humanidade, mas porque a "emancipação política" é, necessariamente, a mais plena regência da propriedade privada e de todas as alienações que dela decorrem. Tal como vimos ao Marx tratar da liberdade religiosa, não se trata de retroagir destes avanços inerentes à transição do feudalismo ao capitalismo, mas de superar os seus limites históricos essenciais. Trata-se, para retornar a uma expressão marxiana, de conquistar um novo e mais elevado patamar de liberdade que não mais se realize "por meio do Estado (...)". (Marx, 1969:24).
Ou, tal como Marx sintetiza em 1843,
"Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas 'forces propres' como fôrças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana."(Marx, 1969:52).
Em uma das muitas passagens fundamentais de Para além do capital, István Mészáros define nossos dias como uma "etapa de transição" no preciso sentido de que a atual forma de sociabilidade está fadada ao desaparecimento. Se seu desaparecimento dará lugar à barbárie, ao socialismo ou a extinção da humanidade é algo ainda a ser decidido e em futuro não muito distante. José Paulo Netto, na mesa de abertura do X ENPESS, mencionou algumas poucas décadas.
Não há no mundo em que vivemos nada, rigorosamente nada, que não se encontre em uma profunda crise. Nenhum dos complexos sociais, da família ao clube de futebol, do emprego à culinária, da moda à religião, do Estado às individualidades, da produção de mais-valia ao gênero humano, do complexo da política à medicina – nenhum complexo social está isento de uma crise dos seus pressupostos fundantes. Desnecessário acrescentar que esta crise não comparece da mesma forma, com as mesmas mediações, intensidade e cronologia em todos os complexos sociais; em cada um deles operam as inúmeras determinações de suas particularidades e, também de modo peculiar ao desenvolvimento de cada um, se manifesta o caráter fundante do trabalho e o momento predominante exercido pela totalidade social. Essa desigualdade não deve velar, contudo, o fato fundamental da crises dos pressupostos mais essenciais da sociabilidade contemporânea.
Ao mesmo tempo, vivemos o período contra-revolucionário mais extenso e intenso que a humanidade jamais conheceu: desde 1949, quando o Exército Vermelho entrou vitorioso em Pequim, não temos uma revolução com um impacto histórico de alcance planetário. Some-se a isso o fato de que a domestificação do movimento operário do Primeiro Mundo nas décadas que se seguiram ao pósguerra foi um dos fatores importantes para que a transição do Estado de Bem-Estar para o Estado neoliberal ocorresse sem maiores resistências dos trabalhadores. Nesse mesmo período, as lutas antiimperialistas e de libertação nacional perderam muito de sua força e intensidade até a atual resistência afgã e iraquiana. Toda a segunda metadade do século XX, com maior intensidade no seu final que no seu início, teve esta característica histórica importante: ideologicamente, a vida cotidiana se desdobrou muito mais sob o signo da colaboração de classes (quando não sob a ilusão do desaparecimento das classes sociais) do que sob o conflito entre o capital e o trabalho.
Apenas superficialmente o fato de vivermos sob um período da contra-revolução entra em choque com a noção de que vivemos objetivamente uma "etapa de transição", nos termos acima. A forma historicamente concreta da presente crise é a contra-revolução; a vitória avassaladora do capital nas últimas décadas é o elemento central na condução da humanidade a esta crise sem precedentes. A ilusão e o equívoco é se imaginar que esta crise que se desdobra por décadas em um "continuun" (e não mais por ciclos de alguns anos, como no passado) (Mészáros, 2002) possa ter se convertido na eterna forma de ser da sociabilidade burguesa[4]Todavia, até o presente momento a crise tem se estendido a todos os póros da sociedade, e do modo como o tem feito, também porque o fato de o capital não encontrar a oposição do proletariado, seu antagonista histórico, abre espaços e possibilidades para a crise se aprofundar aparentemente sem quaisquer limites.
Permitam-me um exemplo desse amplo campo de manobras que a ausência na esfera política do antagonista histórico do capital propicia. Produzimos três vezes mais comida do que o necessário para todos na face da Terra se alimentarem de modo a satisfazer todas as suas necessidades. A fome, hoje, não é mais uma dimensão insuperável da vida humana, é uma questão de opção histórica entre distintos modos de produção. Enquanto a produção for uma mediação para o lucro, colocar toda a produção à disposição da população significa ofertar a mais que a demanda, derrubando preços e travando a reprodução do capital. Para que o capital se reproduza nessas circunstâncias históricas é necessário que artificiosamente se mantenha a procura acima da oferta, produzindo-se uma carência artificial. Para tanto é necessário criar-se mecanismos que destruam a produção e, ainda assim, dêem lucro: por exemplo, os "estoques reguladores" dos governos. Eles são "reguladores" do preço antes que da fome e da miséria. Ao o Estado "politíco", isto é, o Estado capitalista, comprar alimentos e destruí-los a partir de um determinado patamar de estoque, está garantindo um preço mínimo ao proprietário da terra para manter a agricultura capitalista girando. Este alimento, artificiosamente retirado da circulação pelo Estado, por necessidade econômica imperiosa deve ser mantido fora do mercado e do alcance das pessoas que dele carecem. Daqui a fome. O mesmo ocorre com todos os setores econômicos: a reprodução do capital requer que a crescente produção propriciada pelo aumento das forças produtivas seja destruída, mantendo-se artificiosamente a demanda acima da procura. As guerras e o complexo industrial militar são os exemplos mais escandalosos desse fato que se generalizou praticamente para todas as atividades produtivas[5]A exacerbação histórica dessas tendências destrutivas levou ao que Mészáros denominou de "produção destrutiva" e é um dos sinais mais evidentes do caráter estrutural da crise na qual nos encontramos. Nesse contexto, a sociabilidade marcada pelo desperdício e pela queda crescente da taxa média de lucros é uma decorrência histórica rigorosamente necessária da "emancipação política" – e, portanto, apenas com a emancipação humana, isto é, com a superação da propriedade privada, poder-se-á evitar o atual binômino desenvolvimento das forças produtivas/intensificação das desumanidades socialmente postas. Para que as necessidades e possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas possam se realizar é imprescindível a passagem de uma produção ordenada pelo trabalho alienado em sua forma a mais desenvolvida (o trababalho assalariado) a uma outra, ordenada pelo trabalho emancipado.
Vivemos hoje uma etapa de transição, para retornarmos à tese de Mészáros, porque a atual sociabilidade ordenada pela propriedade privada entrou em franca contradição com o desenvolvimento das forças produtivas e, com isto, a totalidade social passou a ter o seu fundamento em crise: o trabalho assalariado apenas possibilita à humanidade um patamar de desenvolvimento histórico cuja reprodução é a produção ampliada de desumanidades. Com isto, todos os complexos sociais (afinal, não há complexo social que não seja, "direta ou indiretamente" (Lukács) fundado pelo trabalho) entram em crise a partir de seu fundamento primeiro. E a superação desta crise da "sociedade burguesa" (com seu Estado "político") não pode, evidentemente, ser alcançada por um retorno à "feudalidade", mas apenas pela superação do modo de produção capitalista, pela emancipação humana.
É esse esgotamento histórico do modo de produção capitalista a raiz de um aparente paradoxo. As democracias mais avançadas, cada uma a seu modo e a seu ritmo, estão, digamos, democraticamente revogando muitos dos seus direitos democráticos. Além disso, a "comunidade internacional" não se sente ameaçada quando da criação da excepcionalidade jurídica da estrutura mundial de torturas criada pelo imperialismo estadunidense, com bases secretas na Europa e que tem em Guantánamo sua face mais visível. Vivemos hoje a mais plena regência do Estado de Direito e este não é incompatível com a redução dos direitos democráticos, nem com a criação de territórios (as prisões secretas na Europa, Guantânamo, etc.) nos quais não vigora nenhuma legislação que não a vontade do Estado na figura do carceireiro, torturador ou verdugo. Do ponto de vista filosófico, é ainda pior do que o absolutismo de "o Estado sou eu" de Luíz XIV. Pois, agora, é a ordem democrática a base tanto para a revogação de direitos democráticos como para a criação de prisioneiros para os quais, tal como párias, não há qualquer direito reconhecido. Se o "eu" de Luíz XIV o tornava responsável pelo poder absoluto, agora não há sequer responsabilidades que possam ser apeladas. Isto não representa, desnecessário acrescentar, o retorno ao Estado absolutista superado pelo Estado "político", mas, ao contrário, representa o Estado "político" levado até as suas últimas conseqüências. A "sociedade burguesa", em seu momento de crise estrutural, leva às últimas conseqüências históricas a essência do Estado "político": instrumento para a mais plena regência da propriedade privada burguesa sobre a reprodução social. Se, hoje, os fundamentos da própria propriedade privada estão em xeque, lança-se mão de todos as mediações possíveis e imagináveis para a manutenção da ordem do capital, até mesmo Guantânamo e a extra-judicialidade de seus prisioneiros. É assim que os mesmos mecanismos jurídico-políticos que ordenam a democracia estadunidense regem a CIA e Guantânamo; os mesmos princípios jurídico-filosóficos que embasam o Estado de Direito dos países da Comunidade Européia tornam possíveis os sequestros, vôos e celas clandestinas para tortura no coração dos Estados "políticos" europeus. Estado "político" e Guantânamo se relacionam enquanto um universal e um seu particular e jamais comoantinomias. É assim que, aparente paradoxo apenas, democraticamente abole-se planeta afora os direitos democráticos sem que isso represente uma reversão ou revogação da "emanciapação política"; pelo contrário, é a realização histórica possível da própria "emancipação política", da cidadania e do Estado "político" (nos termos de Marx de 1843) em tempos de crise estrutural do capital.
Disto decorrem duas conclusões:
1) Emancipação política e emancipação humana, como esperamos ter indicado, são categorias marxianas precisas. A primeira é o "enorme progresso" de constituição constituição histórica da sociabilidade regida pela propriedade privada burguesa. A emancipação humana, por sua vez, é a superação da propriedade privada e a constituição de uma sociabilidade comunista. A cisão entre o "burguês" e o "cidadão" será superada por uma nova individualidade que não mais se relaciona com o gênero humano pela alienada mediação do Estado "político" e do "dinheiro", a cidadania terá desaparecido tal como terá desaparecido a propriedade privada. Será, no dizer de Lukács, uma "autêntica" conexão ontológico-histórica entre o indivíduo liberto das alienações que brotam da propriedade privada burguesa e o gênero humano emancipado da regência do capital. Portanto, a única relação possível entre a emancipação política e a emancipação humana é a relação de negação histórica. Elas sequer podem coincidir no tempo: o reino da emancipação política é o da propriedade privada burguesa plenamente explicitada, a emancipação humana é a superação histórica a mais completa e radical do mundo da emancipação política. Somente podemos pensar que a emancipação política é uma etapa histórica no caminho da emancipação humana no preciso sentido de que o comunismo apenas pode vir a ser a partir do patamar do desenvolvimento das forças produtivas possibilitado pelo capitalismo. Mas não há qualquer sentido, nos termos colocados por Marx, considerar que a radicalização da emancipação política possa realizar o milagre de convertê-la em mediação para a emancipação humana. A radicalização da "cidadania" só conduzirá a uma cidadania mais radical, mas jamais à superação do Estado, da propriedade privada e do casamento monogâmico – que é a plataforma histórica da emancipação humana.
2) Em segundo lugar, a realização mais plena da emancipação política, em Marx, não se refere necessariamente à forma democrática do Estado. Se refere, certamente, ao Estado "político", isto é, ao Estado burguês cuja essência está em (diferente do Estado da "feudalidade") possibilitar o mais livre predomínio da propriedade privada na reprodução social. Todavia, se este Estado assumirá a forma de uma democracia sueca, uma democracia estadunidense ou uma ditadura militar, não altera em nada a questão. Um Estado autoritário ou autocrático pode ser uma realização tão plena da emancipação política quanto o Estado mais democrático. A essência da emancipação política, em Marx, é a mais plena realização da propriedade privada sob sua forma burguesa, em tudo o que implica na transformação das antigas relações características da "feudalidade" para as novas relações típicas do mundo burguês. Isto significa que o Estado deve se relacionar com a "sociedade burguesa" de tal modo a propiciar as melhores condições para a reprodução do capital, o que implica a dissolução de todos em uma cidadania abstrata que, ao fim e ao cabo, nos contrapõe a um Estado que se converte na única possível dimensão genérica da vida cotidiana. E isto pode se dar sob um Estado ditatorial ou democrático, a depender das circunstâncias históricas (pensemos em Bismarck na Alemanha do século XIX, o nazi-fascismo mais recentemente ou, ainda, a referência de Marx aos Estados Unidos que ainda não conheciam nem o sufrágio universal nem a abolição da escravidão como "Estado político plenamente desenvolvido" (Marx, 1969:20)).
A emanciapação política, por isso, não é sinônimo de democracia --e cidadania não se contrapõe às diferenças reais "dos indivíduos concretos historicamente determinados" (Lukács), diferenças estas que são, no limite, fundadas pela propriedade privada. O que significa que cidadania e miséria, cidadania e exploração do trabalho pelo capital, cidadania e desemprego, cidadania e ditadura são rigorosamente compatívies. A plena "cidadania" é o indivíduo burguês, seja ele proletário, desempregado ou capitalista, seja ele parlamentar da democracia sueca ou um prisioneiro político em Guantânamo. O Estado é burguês precisamente porque é uma mediação para o predomínio do capital sobre a reprodução social. E ele não é mais ou menos burguês – isto é, "político" – pelo fato de ser uma ditadura ou uma democracia.
Por isso, Guantânamo e os centros clandestinos de tortura na Europa enquanto obra de Estados "políticos" é apenas um paradoxo aparente. O mesmo Estado "político" pode ser o substrato[6]da democracia francesa, sueca ou da "extrajudicialidade" de Guantânamo. Guantânamo é a radicalização histórica hoje possível do Estado "político", isto é, o Estado a serviço da propriedade privada burguesa. Guantânamo não pressupõe um retorno a Luiz XIV, mas a mais plena realização do predomínio da propriedade privada em tempos de Bush, Blair e Comunidade Européia, com seu parlamento e sua constituição continentais.
Com a emancipação política as forças produtivas se libertam dos entraves da "feudalidade" pela constituição de uma sociabilidade cujo Deus é o "dinheiro". Todavia, a partir desta nova sociedade, uma nova esfera de necessidades e possibilidades históricas se apresenta para a humanidade. A "sociedade burguesa" coloca os seres humanos em um novo patamar de "alienação", que tem na "venda" a "exteriorização" (Entäusserung) típica e universal dos humanos, o que converte os indivíduos em escravos do "dinheiro". Nessas circunstâncias, carece de viabilidade histórica qualquer proposta de retorno ao passado. Por isso, na crítica ao Estado "politico", da cidadania e da "sociedade burguesa", não devemos propor a re-emanciapação política, ou seja, o revigoramento da cidadania, a democratização da democracia, etc., mas sim a superação da "sociedade burguesa" e do seu Estado "político" pela nova sociabilidade "sem dinheiro" e sem "alienação", para permanecermos com os termos de 1843. Hoje, é incabível propor uma "emancipação política" da emancipação política. Isto é, ao fim e ao cabo, o que significam as propostas de reforma – e não de superação – do Estado "político".
A emancipação política é a conquista de um patamar de liberdade que se dá, por rigorosa necessidade histórica, " por meio do Estado (...)" (Marx, 1969:24) e este, o máximo que pode fazer, é regular a propriedade privada, a exploração do homem pelo homem, --nunca superar a ambos. Por isso, este "grande avanço" que foi a emancipação política frente à "feudalidade" se converteu, com a plena explicitação das alienações fundadas pelo capital, na nossa atual forma de "iliberdade", uma forma historicamente específica de escravidão[7]cuja essência está na conversão do desenvolvimento das forças produtivas (isto é, da condição universal do desenvolvimento histórico da humanidade) em intensificação das desumanidades socialmente postas. E o nódulo desta essência reside na propriedade privada burguesa.
A riqueza dos textos de Marx, mesmo quando ainda em um estágio teórico não plenamente desenvolvido, está em que esclaresse elementos essenciais do modo de produção capitalista. Elementos que, por serem essenciais, tendem a continuar através da evolução desse modo de produção. A relação ontológica que Marx estabelece entre o caráter "político" do Estado e a "sociedade burguesa", pelo qual esta é o fundamento daquele e, o primeiro, uma decorrência histórico-necessária do desenvolvimeto da segunda, permanece tão atual hoje quanto em 1843. Não queremos com isso desconsiderar dois séculos de história. Todavia, como não reconhecer na conversão do Estado de Bem-Estar ao Estado neoliberal, na destruição dos direitos dos trabalhadores (de modo "democrático" e pelas mesmas instituições "democráticas" e pela mesma "sociedade burguesa" que os criou) uma manifestação peculiar daquela determinação mais universal que Marx assinalou estar presente na relação entre a "sociedade burguesa" e o Estado "político"? Como não reconhecer em Guantánamo a obra do Estado "político" que o criou?
A estratégia de radicalizar a emancipação política para superar a "sociedade burguesa" derrota-se a si própria. A radicalização da emancipação política conduzirá a nada mais que uma sociedade mais radicalmente emancipada politicamente o que significa, sem maiores delongas, em uma regência mais radical da propriedade privada burguesa sobre a reprodução social. A emancipação humana não é a radicalização da emancipação política, mas sua negação mais pura e frontal, sua negação mais radical possível na história: sua superação.
Ou, para trocar em miúdos, na luta contra a presente onda histórica de destruição dos "direitos", o o horizonte estratégico adequado não pode ser o luta "por meio do Estado (...)" (Marx, 1969:24) pela "manutenção" dos "direitos", mas sim a luta estratégica por uma sociabilidade na qual os "direitos" e a propriedade privada serão superados tal como o Estado e o casamento monogâmico. E o nome científico desta sociabilidade é o comunismo. A única defesa eficaz dos trabalhadores ameaçados pela forma neoliberal do Estado "politico" está na luta pela superação da "sociedade burguesa" e, portanto, uma luta necessariamente por fora e contra o Estado "político". Daqui a insistência de Mészáros na importância das lutas extra-parlamentares.
Por isso, a estratégia de radicalizar a emancipação política, de radicalizar a cidadania e o Estado "político" como mediação para se chegar à emancipação humana tem conduzido, nas últimas décadas, ao estreitamento do horizonte de luta às esferas institucionais e parlamentares, com todas as conseqüências que estamos colhendo no presente. Entre elas, o fato de que, em um momento de crise estrutural do capital, os "emancipadores humanos" não conseguem encontrar outra alternativa política senão, entra ano e sai ano, optar pelo "menos pior". De "menos pior" a "menos pior" vamos do desastre à tragédia --e deixamos de alargar os horizontes do possível. Afinal, não seria esta a tarefa dos revolucionários: alargar as fronteiras do possível? Qual pode ser o horizonte histórico de uma estratégia centrada no Estado "político" – aquele que "pressupõe" a propriedade privada burguesa – para se superar a propriedade privada, senão a manutenção "do contexto do mundo atual."(Marx, 1969:28)?
Há décadas assistimos ao predomínio estratégico da luta "democrática" pela defesa da democracia e da cidadania, por dentro do parlamento e das outras instituições do Estado. Assistimos à "redemocratização" do aparato ditatorial sem que ele fosse, de fato, removido; passamos pela Assembléia Nacional Constituinte com todos os seus avanços na legislação, sem alterar o fundamental e muito do secundário da exploração dos trabalhadores; "evoluímos" para a eleição do melhor partido reformista que os reformistas jamais poderiam sonhar, com uma base operária e sem os vícios do movimento comunista tradicional, o PT, e assistimos apenas à reafirmação da "miséria brasileira" (parafraseando Marx que falava da "miséria alemã"). Tantos anos, tantas lutas, tantas "esperanças" não correspondidas, já não deveriam ser suficientes para superarmos as ilusões e reconhecermos, na teoria e na prática, a determinação histórico-ontológica predominante no presente? Qal seja, que a obra atual da humanidade está na superação do Estado "político", do "dinheiro" e da "sociedade burguesa" e que, portanto, nem será no horizonte do "político", nem da "sociedade burguesa", nem do mercado que encontraremos as mediações históricas que nos possibilitarão acumular forças para a revolução comunista? Não está mais do que na hora de reconhecermos o que Marx já apontava em 1843: trata-se, agora, da emancipação humana?
Contra esse argumento e a favor da tese de que hoje poderíamos acumular forças "por meio do Estado" para a emancipação humana, menciona-se com frequência o Estado de Bem-Estar. Desde pelo menos a década de 1960, esse "exemplo histórico" vem sendo empregado para "demonstrar" a necessidade de uma estratégia para a revolução centrada na democratização da "sociedade burguesa". Os autores são, literalmente, milhares: desde Serge Mallet e Belleville até a literatura contemporânea assume-se, como um axioma, que o Estado de Bem-Estar seria um salto ontológico na relação entre o Estado e a "sociedade burguesa", pelo qual – de modo diferente nos distintos autores – ele teria se convertido, de "comitê gestor dos negócios da classe dominante", em uma instituição que, de forma neutra, explicitaria a "correlação de forças" da sociedade. Não raramente o argumento avança no sentido de propor que o desenvolvimento do capitalismo em uma sociedade muito mais complexa que a do século XIX teria conduzido a uma nova e mais articulada relação entre a (para manter os termos marxianos de 1843) "sociedade burguesa" e o Estado "civil". Não valeria a pena aprofundar o argumento que a tese da maior complexidade social é de raiz weberiana, nada tendo a ver com as categorias de Marx; todavia, certamente é necessário apontar que a complexidade maior ou menor de um complexo social não necessariamente cancela, altera ou anula seu momento predominante. Que a humanidade no século XX é mais "complexa" que no século XIX é uma obviedade, deduzir daí, contudo, que o Estado "político" teria alterado a sua essência de tal modo a se converter em um "Estado ampliado", isto é, um Estado representante de todas as classes sociais, é algo que é cotidianamente negado pela própria reprodução da sociedade capitalista. Hoje o Estado "político" é ainda mais imediatamente a expressão das necessidades de reprodução do capital do que no passado --, e essa é uma das características importantes do período histórico da crise estrutural do capital que se abriu no início dos anos de 1970. O neoliberalismo é a evidência concentrada deste fato[8]
Todos conhecemos a extensão e a importância das políticas públicas, da implantação dos sistemas universais de saúde e educação, investimentos do Estado em moradias para a classe média e os trabalhadores, etc., que marcaram o Estado de Bem-Estar. O impacto político e ideológico destas medidas não devem e não podem ser substimados. Todavia, na maior parte das análises, apenas esse aspecto limitado, parcial, é considerado. As análises procedem como se nada mais houvesse ocorrido por obra e graça do mesmo Estado de Bem-Estar. Esquecem-se que, nos mesmos anos de 1950 que abriram as "três décadas de ouro", os Estados que pretensamente estavam se democratizando pela adoção das políticas, iniciavam o movimento de implantação no restante do mundo das multinacionais e, das ditaduras, militares ou não, necessárias para "adequar" a periferia do sistema à nova etapa do imperialismo. No seio das democracias européias e estadunidense, nesses mesmos anos tivemos o renascimento da tortura em uma escala desconhecida desde o final do século XIX, segundo o impressionante relato de Kate Millet (1994). Com intensidade variável, em todos os países que conheceram o Estado de Bem-Estar tivemos uma direitização do espectro político (Maccarthismo, gaullismo, etc.). A Guerra Fria foi a política externa do Estado de Bem-Estar e levou ao bárbaro desenvolvimento do arsenal nuclear, com tudo o que ele representa de alienação. E, por fim, é bom lembrar que a implantação do Estado de Bem-Estar não representou, de modo universal e necessário, a melhoria das condições de vida e trabalho dos assalariados mesmo nos países capitalistas centrais, como ainda a real elevação da massa salarial, onde ela ocorreu, não significou uma distribuição de renda consistente, isto é, que tenha perdurado por mais de alguns anos.
Há que se considerar, ainda, que os anos posteriores à II Guerra Mundial não foram anos de vitórias operárias. Pelo contrário. No bloco soviético tivemos a decadência do stalinismo, com tudo o que significou para o desaparecimento do assim chamado "bloco socialista". Os países nos quais a resistência ao nazismo deu origem a um exército guerrilheiro armado e nas mãos dos PCs, este poder foi entregue às suas burguesias nacionais, no contexto dos acordos de Ialta e Potsdam; na Itália a resistência popular e operária foi rapidamente batida e, na Grécia, a invasão da Inglaterra com o beneplácito de Stalin, liquidou o levante armado. Excetuando-se a vitória do Exército Vermelho de Mao-Tse-Tung, os anos do pós-guerra não conheceram nenhuma revolução digna do nome. Do mesmo modo, o movimento operário europeu foi absorvido pelas estratégias reformistas dos partidos e sindicatos sociais-democratas e ameaçaram cada vez menos a ordem do capital. Em linhas gerais, este quadro predominou até os anos de 1970, quando o início do que depois seria o neoliberalismo vai introduzir importantes modificações neste quadro, não no sentido de uma retoma das lutas operárias enquanto o antagonista histórico do capital, mas com uma sua subsunção ainda maior à ordem burguesa.
Sem, portanto, entramos em maiores detalhes, nos parece impróprio, ou pelo menos fortemente questionável, considerar o Estado de Bem-Estar apenas pelas suas políticas públicas, sem considerá-lo em sua totalidade, isto é, sem inseri-lo no contexto de uma nova fase do imperialismo. O Estado de Bem-Estar não pode ser considerado uma vitória dos trabalhadores. Coincide com um momento de refluxo e derrota das lutas operárias e foi algo muito mais complexo e contraditório do que o mero estender dos direitos civis aos negros estadunidenses ou da universalização de algumas políticas públicas em alguns países europeus. A rigor, estes não são sequer os fatos predominantes no desenvolvimento histórico entre os anos de 1950 e 1970.
Assinalamos este problema, ainda que sua discussão não caiba na conclusão deste artigo, ao menos para problematizar a concepção que considera o Estado de Bem-Estar como um exemplo de como seria possível avançar contra o capital "por meio do Estado (...)" (Marx, 1969:24)[9] . A tese do "Estado ampliado", sob as suas diferentes formulações e modulações, é muito mais a generalização da falsa impressão gerada pelas políticas públicas do Estado de Bem-Estar que, isoladas do contexto histórico, pareciam atender antes às reivindicações dos trabalhadores que às necessidades inerentes da reprodução do capital, do que o reflexo teórico de uma efetiva alteração na relação entre o Estado "político" e a atual "sociedade burguesa".
Se, todavia, o caráter do Estado durante a vigência do Estado de Bem-Estar tem sido objeto de polêmica, o mesmo não se pode dizer da avaliação do Estado dito mínimo dos anos de neoliberalismo. Todas as análises do campo marxista coincidem no fato de que ele representa os interesses gerais do capital no sentido da ampliação da exploração do trabalho e que o desmonte do Estado de Bem-Estar tem utilizado os mecanismos democráticos que se consolidaram no pós-guerra, como o voto universal, o parlamento, a imprensa "sem censura", etc. Em praticamente todos os países que conheceram a experiência do Estado de Bem-Estar, em alguma medida fundamental o neoliberalismo foi imposto por governos ditos de "esquerda", como os socialistas na França, o Labour na Inglaterra, os Democratas nos EUA, e assim por diante. Pela "astúcia" da história, os partidos que adotaram as estratégias de colaboração de classes durante os "trinta anos dourados" foram, em medida muito importante, os mesmos partidos que serviram ao neoliberalismo nas décadas subseqüentes.
Que entre o Estado de Bem-Estar e o Estado neoliberal haja uma continuidade é algo difícil de ser negado hoje em dia. Entre eles houve uma tranqüila transição, sem qualquer quebra institucional significativa, possibilitada tanto pela domesticação do movimento operário no contexto da colaboração de classes dos anos do Estado de Bem-Estar que incapacitou os trabalhadores para defender seus direitos quando estes foram democraticamente revogados como, também, pelo fato de que em importante medida os mesmos partidos "operários" e de "esquerda" que estiveram no poder durante o pós-guerra foram aqueles que mais resolutamente levaram avante a agenda neoliberal. Por isso a passagem do Estado de Bem-Estar ao neoliberalismo pôde se realizar sem qualquer ameaça mais séria de ruptura por parte dos trabalhadores e, por isso, foi realizada "por meio do Estado", tal como fora "por meio do Estado" que se estruturou o Estado de Bem-Estar.
É neste contexto que assistimos, nas últimas décadas, mas em especial nos últimos anos, frente à crescente tensão social gerada pelo binômio desenvolvimento das forças produtivas/desemprego crescente, típico do capitalismo em sua fase "destrutiva" (Mészáros), a institucionalização, em nome do combate aos inimigos da democracia, de legislações xenófobas, racistas e antidemocráticas – mesmo nos países de maior tradição democrática. Somem-se a esse quadro as intervenções militares estadunidenses, a criação de celas de tortura clandestinas, inclusiva na Europa (e com o conhecimento de seus governos e legislativos), além da extra-judicialidade do campo de torturas de Guantánamo, e teremos uma noção da difícil tarefa colocada aos revolucionários: defender os direitos democráticos na ausência de um movimento operário que atue como antípoda do capital.
Não se trata, claro está, se devemos ou não lutar contra a abolição dos direitos criados e mantidos "por meio do Estado", já que esta é uma imposição histórica da qual os revolucionários, os "emancipadores humanos", não têm como se furtar. A questão é outra: como devemos travar esta luta, de qual perspectiva devemos defender os direitos ameaçados dos trabalhadores para que consigamos acumular força tendo em vista a emancipação humana. É aqui que reside, a nosso ver, o cerne da questão. Não se trata se devemos ou não defender os direitos ameaçados, trata-se de saber com que perspectiva, com que orientação estratégica, devemos fazê-lo. Ou, para colocar em termos mais apropriadamente políticos, em qual terreno devemos nos colocar para que essa luta possa acumular forças contra o Estado "político" e contra a "sociedade burguesa" que pressupõem, ambos, a propriedade privada?
Nesse difícil quadro histórico, a estratégia parlamentarista e democrática das últimas décadas não tem dado bons resultados. A concepção que se baseia no pressuposto de que seria possível, hoje, acumular forças ocupando posições na sociedade "por meio do Estado" não tem sido capaz de resistir às tendências destrutivas do capital. E, tão grave quanto, impossibilita a crítica radical, não apenas da propriedade privada, mas até mesmo do Estado "político" e da sociedade burguesa. Tal concepção, ao longo dos anos, tem intensificado o seu equívoco politicista (isto é, considerar a política como uma esfera autônoma frente à esfera da produção e que, portanto, seria na esfera da política, e não da produção, que se daria o fundamental da transição para o comunismo) e seu "idealismo de Estado", para permanecermos com os termos marxianos de 1843. Tal concepção, em suas muitíssimas variações, não pode hoje cumprir a tarefa histórica imprescindível de fazer uma dura e radical crítica das experiências passadas e recentes (incluindo aqui o governo Lula) para que possamos, livres de ilusões e preconceitos, nos apoderarmos da história para transformá-la radicalmente.
Trata-se, hoje, mais do que nunca, de pensarmos com amplos horizontes históricos e não nos enredarmos no labirinto do imediatamente dado. Recuperar a contraposição entre a emancipação política e a humana, tal como proposta por Marx, em 1843, significa, hoje, recuperar a perspectiva histórica do esgotamento da emancipação política e, por isso, da urgência e da necessidade históricas da emancipação humana. Significa colocar em primeiro plano a questão da transição para além do capital como a única resposta historicamente viável para a democrática destruição dos direitos democráticos que estamos assistindo.
Não devemos nos iludir. Hoje, o Estado "político" é o terreno mais apropriado para a destruição dos direitos democráticos, não o contrário. Ir para além do "contexto atual" é a única alternativa queresta aos revolucionários para resistir à crescente destrutividade do capital. É este o sentido fundamental da retomada da estratégia ofensiva socialista proposta por Mészáros: enfrentar a intensificação das alienações do capital com uma clara e definida estratégia socialista, que coloque a questão da propriedade privada no seu núcleo. Isso significa não mais privilegiar a participação e a resistência nos terrenos estatal e governista, no parlamento e nos órgãos públicos, nas instituições da "sociedade burguesa" e de seu Estado "político" e deslocar o centro de gravidade para o terreno extra-parlamentar. Como fazer isso, com que mediações táticas implementar essa estratégia, são questões que não cabem nessa conclusão e nem poderiam ser resolvidas fora da especificidade conjuntural de cada momento. Todavia, sem esta mudança de horizonte histórico, não faremos outra coisa senão nos perdermos nas entranhas das próprias forças alienadas que nos devoram.
A riqueza do tema do X ENPESS está, também, no fato de que, ao tratar da crise contemporânea, nos coloca de modo imediato a questão decisiva, hoje, não apenas para os assistentes sociais, mas para toda a humanidade: continuaremos nos agarrando ao horizonte histórico da "emancipação política", do seu Estado "político" e de sua cidadania, ou seremos capazes de dar o salto avante em direção à "emancipação humana". É este o desafio imediato posto aos "emancipadores humanos" nesta difícil quadra história que articula um período contra-revolucionário com a crise estrutural do capital.
Ou seja, como dizia Marx no início de A questão Judáica,
"Não se trata de investigar, apenas, quem há de emancipar e quem deve ser emancipado. A crítica tem que indagar-se, além disso, outra coisa: de que espécie de emancipação se trata; quais as condições implícitas da emancipação que se postula." (Marx, 1969:19)
Hoje trata-se, em uma palavra, da emancipação humana.
Kolko, G. (1994) Century of War. The New Press, Nova Iorque.
Lessa, S. (2005) Para além de Marx? Crítica às teses do trabalho imaterial. Ed. Xamã, São Paulo.
Lipovetsky, G. (1997) O império do efêmero – a moda e seus destinos nas sociedades modernas. Ciadas Letras.
Lojkine, J. (1995) A revolução informacional. Ed. Cortez
Marx, K. (1956). MEW-Band I, Dietzverlag, Berlim.
Marx, K. (1959). MEW-Band IV, Dietzverlag, Berlim
Marx, K. (1969) A questão Judáica. Ed. Lambert, Rio de Janeiro.
Marx, K. (1983). O Capital. Livro I, tomo I. Ed. Abril Cultural, São Paulo.
Marx, K., Engels, F.(1998), Manifesto do Partido Comunista, Cortez Ed., São Paulo.
Mészáros, I. (2002). Para Além do Capital. Ed. Boitempo, São Paulo.
Millett, Kate. (1994) Politics of Cruelty. Norton, N.York.
A José Paulo Netto e Elaine Behring
Autor:
Sergio Lessa
sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br
Publicado na Revista Serviço Social e Sociedade, Ed. Cortez, junho de 2007.
[1] Citamos da edição portuguesa de 1969 e as eventuais correções são indicadas pelo original alemão, segundo Werke, Band 1 (Marx, 1956), nesta passagem á página 369.
[2] Alienação como tradução de Entfremdung.
[3] Marx propõe a superação do Estado, lembremos, porque se a emancipação política significa uma nova relação do indivíduo com o Estado (repetimos: funda a relação cidadão-Estado "politico"), não pode alterar em nada de essencial a função social do Estado. A função social do Estado "político" continua essencialmente a mesma do das sociabilidades pré-capitalistas de classe, isto é, continua a ser o "instrumento especial de repressão a favor das classes dominantes" (Engels, Lukács, etc.). Certamente, para atender a essa sua função sob a regência do capital são necessárias novas mediações entre o Estado e a totalidade social. Uma destas mediações mais importantes é a relação entre o Estado e o indivíduo na qual este é reduzido á cidadão e, o gênero humano, ao Estado "político". (Marx, 1969:26-7; 35-6).
[4] Cf., por exemplo, Lipovetsky (1997). Ainda pela "esquerda", não deixa de ser curioso o modo como os teóricos do "trabalho imaterial" justificam a crise contemporânea, enxergando nela a transição para o comunismo (Lessa, 2005a). Em uma outra vertente, também Lojkine (1995) concebe a crise como a transição para uma sociedade não mercantil.
[5] Kolko, G. (1994).
[6] Aqui no sentido ontológico da expressão: a substância que dá suporte.
[7] Aqui no sentido de servidão, cativeiro, etc., e não no sentido do modo de produção escravista, bem entendido.
[8] Mészáros (2002), novamente, é o autor decisivo.
[9] E, já que a proposição de que seria possível se avançar contra o capital "por meio do Estado (...)" (Marx, 1969:24) está em direto confronto com as teses marxianas (e não apenas com as de 1843), avança-se que o Estado hoje seria distinto do da época de Marx já que, pela crise do capital, ter-se-ia estabelecido uma contradição antagônica entre os valores democráticos e Estado capitalista. Não nos parece que haja argumentos consistentes para sustentar esta tese, muito menos para sustentar a hipótese de que o Estado hoje não seria mais o Estado "político" ou, como Marx e Engels colocam no Manifesto Comunista, "comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa" (Marx, K., Engels, F., 1998:7) ("Die moderne Staatsgewalt ist nur ein Ausschuß, der die gemeinschaftlichen Geschäfte der ganzen Bourgeoisklasse verwaltet". (Marx, K., Engels, F. MEW , 1959:464)) .
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