"E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas idéias, suas concepções." (Paulo Freire, "Pedagogia do oprimido".)
Para a maioria das mulheres e homens envolvidos e sinceramente engajados em um processo libertário, certamente está razoavelmente claro que esse tipo de processo é permeado por contradições, altos e baixos, erros e acertos, dilemas; que pretender reduzi-lo a regras lineares e uniformes é a declaração de seu fim, uma vez que, assim, se perderia o seu caráter dinâmico, que é a fonte dos principais impulsos desse movimento. Abandoná-lo a automatismos, a supostos determinismos seria, pois, a negação de sua existência enquanto processualidade viva. É razoável, por isso, afirmar que somente uma práxis engajada, que conceba a realidade como aberta e dinâmica, seja realmente libertária (Lukács: 1970, pp. 452 e seguintes). Ou seja, que nem o espontaneísmo nem o idealismo levam a reais transformações emancipatórias. Para evitar esses extremos, a elaboração e/ou afirmação de um referencial comum à diversidade de organizações, que sirva como uma espécie de indicador ou espaço de confluência, de elaboração e ação conjunta, tem se mostrado como um dispositivo muito apropriado. Na história das esquerdas, um partido político muitas vezes tem assumido essa função. É preciso reconhecer, no entanto, que os partidos vêm perdendo credibilidade no que diz respeito a esta função. Talvez porque eles tenham, muitas vezes, se revelado como espaços que, de antemão, já estão comprometidos com uma institucionalidade que não se coaduna com as aspirações emancipatórias de muitas organizações. Sem pôr em questão a importância tática dos partidos, a questão em torno da construção de novos referenciais comuns, a partir dos quais as esquerdas poderiam articular suas ações de forma estratégica, sem com isso ter de abdicar de suas aspirações emancipatórias e cair na falta de sentido, parece se colocar como uma tarefa vital. A Economia Popular Solidária (EPS), na forma como vem se desenvolvendo hoje no Brasil e em outros países, está se constituindo num espaço privilegiado de desenvolvimento da práxis libertadora. É uma dinâmica libertária em construção, recém iniciada e com múltiplas possibilidades mas, talvez por isso mesmo, ainda muito susceptível a pressões e objetivos estranhos a ela. No presente texto, procuraremos defender que ela carrega consigo o potencial de ser uma nova referência comum para as esquerdas. Para que isso seja possível, alguns dilemas precisam ser enfrentados. Ao evidenciar alguns desses dilemas, esperamos contribuir, mesmo que de forma provocativa, na afirmação da mesma enquanto possível referência estratégica.
Ingênua e perigosa, no entanto, é a crença mistificada na EPS como sendo uma proposta automática e necessariamente transformadora. Assim como também é um equívoco reduzi-la a um simples objeto sobre o qual podem ser feitas afirmações categóricas ou indicados caminhos a partir de um ponto de vista externo, como seria um suposto ponto de vista "puramente" acadêmico ou governamental. A EPS, hoje, é "utopia concreta" (Bloch: 1977, pp. 258 e seguintes), não se deixa reduzir nem a simples hipóteses de futuro, nem a determinismos do passado: processualidade fundada na realidade viva que perpassa diversos setores e organizações, mas que precisa ser aprofundada a cada instante e reinventada em cada novo contexto.
A postura assumida nos tópicos abaixo quer ser coerente com essa realidade: afirmações que terminam em forma de perguntas. Teses em construção, abertas como a própria EPS, como todo projeto emancipatório. Teses e perguntas que querem se aproximar de dilemas e contradições reais. Certamente, as afirmações provocarão outras perguntas. As perguntas, por sua vez, já estão, de uma forma ou de outra, sendo respondidas pela prática. Importante é que sejam criadas referências apropriadas, tanto para as práticas como para os debates, a fim de que o caráter libertário possa continuar sendo intencionalmente aprofundando, uma vez que persiste a possibilidade, como veremos, de a EPS tornar-se um instrumento de manutenção e justificação da sociedade capitalista.
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