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O significado da efetivação dos direitos políticos e humanos em Marx (página 2)

Rosalvo Schütz

Marx contrapõe-se a essa argumentação, dizendo que Bauer pensa que a abolição política da religião significaria a abolição de toda a religião. Assim, Bauer quer alcançar condições que não se baseiam na natureza da emancipação política. Aliás, segundo Marx, Bauer nem se pergunta a respeito do tipo de emancipação que ele almeja. Quer a emancipação política, mas põe condições para a emancipação humana, esta muito mais ampla que aquela.

"Bauer pergunta aos judeus: Tereis vós, do vosso ponto de vista, o direito de pedir a Emancipação Política? Nós fazemos a pergunta oposta: do ponto de vista da emancipação política, existirá o direito de exigir ao judeu o abandono do judaísmo, ao homem a abolição da religião?"3

Essa questão põe-se como sumamente importante, porque, logo em seguida, Marx vai identificar a situação do judeu alemão como sendo uma questão teológica de cristãos contra judeus. Ao mesmo tempo, identifica Estados onde as relações entre judeus e Estado não são religiosas, mas puramente políticas, como modelos de emancipação política. Diz que onde o Estado deixa de ter uma atitude teológica, pode surgir a relação de qualquer homem religioso, o judeu inclusive, com o Estado, sem problema algum, uma vez que a "emancipação política do judeu, do cristão - do homem religioso em geral - é a emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo e à religião em geral,"4 e não do indivíduo particular em relação à religião. Marx cita os Estados Unidos, como sendo um país com plena emancipação política onde, no entanto, as religiões continuam existindo e de maneira até mais intensa e viçosa. Demonstra-se assim

"que a existência da religião não se opõe à perfeição do Estado. Mas, uma vez que a existência da religião constitui a existência de um defeito, a fonte de semelhante imperfeição deve procurar-se na natureza própria do Estado. A religião já não surge como base, mas como manifestação da insuficiência secular"5.

Dessa forma, Marx propõe transformar as questões teológicas em seculares e não o contrário. Faz isso ao dizer que a contradição do Estado com a religião é a mesma que ocorre na contradição entre o Estado e elementos seculares particulares, entre o Estado e os seus pressupostos. O Estado pode, pois, ser emancipado da religião sem que os indivíduos alcancem esta em nível pessoal. O Estado assume, assim, um status semelhante ao da religião. Logo adiante aparece o argumento da crítica feurbachiana da religião aplicado ao Estado:

"Daí se segue que o homem se liberta de um constrangimento através do Estado, politicamente, ao transcender as suas limitações, em contradição consigo mesmo e de maneira abstrata, estreita e parcial. Além disso, ao emancipar-se politicamente, o homem emancipa-se de modo desviado, por meio de um intermediário, por mais necessário que seja tal intermediário.

Por fim, mesmo quando se declara ateu através da mediação do Estado, isto é, ao proclamar que o Estado é ateu, encontra-se ainda envolvido na religião, porque só se reconhece a si mesmo por via indireta, através de um intermediário. O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade humana. Assim como Cristo é o mediador a quem o homem atribui toda a sua divindade e todo o seu constrangimento religioso, assim o Estado constitui o intermediário ao qual o homem confia toda a sua não divindade, toda a sua liberdade humana." 6

Como em Feuerbach a religião era fruto da alienação do ser genérico do homem em contraposição à vida individual de cada um, aqui aparece o Estado em contradição à realidade pessoal e individual como também em relação às realidades particulares, como a propriedade privada, a posição social dos indivíduos, a educação e a profissão. No entanto é somente pressupondo essas realidades que o Estado pode existir. "Unicamente assim, por cima dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como universalidade"7. Como em Feuerbach a religião não passava da objetivação da vida genérica humana em contraposição à realidade individual, aqui o Estado não passa disso. Como a religião acontece em oposição à vida individual e concreta, assim o Estado se dá em oposição à esfera civil, onde o homem continua sendo egoísta. Tanto na realidade da religião quanto na realidade do Estado, o indivíduo tem uma dupla existência, uma celeste e uma terrestre. "O Estado político, em relação à sociedade civil, é precisamente tão espiritual como o céu em relação à terra"8. Enquanto o ser humano em sua realidade íntima da sociedade civil é um ser profano, no Estado é olhado como ser genérico: membro imaginário de uma soberania imaginária. À medida que o homem se vai projetando nessa realidade abstrata, que é o Estado, a sua soberania, sua universalidade, não assume essa condição na realidade cotidiana. Ou seja, existindo o Estado, a sociedade está liberta de qualquer condição genérica do homem, o individualismo e a luta de todos contra todos estão legitimados e permitidos.

A consolidação do Estado moderno torna-se, assim, a condição para a radicalização do individualismo, da legitimação da exploração e da indiferença frente às desigualdades sociais reais. A exteriorização indireta da essencialidade genérica humana no Estado possibilita a inversão dessas potencialidades.

A partir dessas observações, pôde Marx indicar com mais precisão o erro de B. Bauer, pois o Estado político, enquanto vida genérica alienada e contraposta à vida particular da sociedade civil, não pode pedir a abolição desta, dos seus pressupostos. E não só a religião em geral bem como todas as religiões particulares encontram-se agora nesse espaço, a dizer, o da sociedade civil, elas não podem ser abolidas por exigência política; ao contrário, são seu pressuposto, à medida que o homem, levando a vida que leva na sociedade civil, não pode realizar aí suas potencialidades genéricas, precisa exteriorizá-las de uma forma indireta no Estado. Marx compara essa oposição entre o homem particular e o cidadão, como sendo a mesma que existe entre o homem religioso e o cidadão, o indivíduo e o cidadão, o interesse geral e o privado.

Portanto a emancipação política é o deslocamento da religião do Estado para a sociedade civil, não abolindo, porém, a religiosidade real do homem, pois a sociedade civil é o espaço para as particularidades, inclusive religiosas. Ao invés de "abolir estas diferenças efetivas, ele só existe à medida que as pressupõe; apreende-se como Estado político e revela a sua universalidade apenas em oposição a tais elementos."9 Esse formalismo abstrato e genérico que não inclui a realidade da sociedade civil é inerente à própria constituição da sociedade moderna10.

Esses nexos entre a alienação do Estado e a alienação da religião e, portanto, também dos nexos possíveis quanto à crítica, Marx pôde encontrar inclusive na própria teoria de Hegel. Para mostrar como isso se deu, Marx cita um parágrafo dos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel:

"Para que o Estado surja como a realidade ética autoconsciente do espírito, é essencial que se distinga das formas de autoridade e de fé.

Mas tal distinção só emerge à medida que há divisões no interior da própria esfera eclesiástica. Só assim é que o Estado, por cima das igrejas particulares, alcançou a universalidade do pensamento - o princípio da sua forma - e a traz à existência".11

O Estado ocupou, pois, o lugar que antesera apenas da religião. É nesse espaço, e não mais na religião em geral do homem, como fazia Feuerbach, que Marx situa agora a vida genérica alienada. Vejamos: "O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do homem, em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos da vida egoísta continuam a existir na sociedade civil, fora da esfera política, como propriedade da sociedade civil."12 Por isso, no pleno desenvolvimento do Estado político, a alienação não é mais percebida e expressa apenas em nível de consciência e de pensamento, como no caso da alienação religiosa criticada por Feuerbach, mas em uma outra realidade, onde o homem continua tendo uma vida dupla (uma celeste e outra terrestre!). Assim, temos, por um lado, o Estado político, que assume, de forma desviada, o seu ser comunitário e, portanto, sua essência genérica e, por outro, a sociedade civil, onde o homem continua indivíduo egoísta e privado, "tratando os outros homens como meios, degradando-se a si mesmo em puro meio e tornando-se joguete de poderes estranhos."13

Para que haja emancipação política, portanto, nem o judeu nem o cristão precisam deixar sua religião; ao contrário, o Estado deve garantir a liberdade de culto. Chegar a essas formulações só foi possível para Marx à medida que, ao perceber no Estado (através de Hegel!) o espaço privilegiado da manifestação da essência genérica do homem, relegou mesmo a própria religião para os espaços não genéricos, no caso, para a sociedade civil. Dessa forma, podemos afirmar que, embora Marx conserve a estrutura da crítica da religião, ele não mais a aplica à religião, uma vez que os fundamentos da religião e, de modo especial, da religião cristã parecem estar-se manifestando de forma mais privilegiada em uma forma secularizada, ou seja, no Estado Moderno. No entanto o ser humano continua ainda tendo uma dupla realidade, assim como antes. Porém, agora, a manifestação do seu ser genérico, como que migrou, secularizou-se e, de certa forma, está mais próximo da realidade concreta do homem ao se manifestar no Estado. Porém, "no Estado, onde é olhado como ser genérico, o homem é o membro imaginário de uma soberania imaginária, despojado de sua vida real individual, e dotado de universalidade irreal."14

Portanto, a emancipação política que se dá nesse nível é ainda uma emancipação humana não completa, ainda se dá via um intermediário, e o homem ainda não consegue reconhecer nessa estrutura a manifestação de suas próprias potencialidades genéricas. No dizer de Marx: "A emancipação política representa, sem dúvida, um grande progresso. Não constitui, porém, a forma final de emancipação humana, mas é a forma final da emancipação dentro da ordem mundana até agora existente."15

É assim que acontece, pois, a emancipação política da religião, transferida do direito público para o direito privado. No Estado o cidadão passa a ser visto como um sujeito livre e autônomo.

"A religião já não é o espírito do Estado, em que o homem se comporta, se bem que de maneira limitada e numa forma e esfera particular, como ser genérico, em comunidade com os outros homens. Tornou-se o espírito da sociedade civil, da esfera do egoísmo e do bellum omnium contra omnes. Já não constitui a essência da comunidade, mas a essência da diferenciação. Tornou-se no que era originalmente, expressão da separação do homem da sua comunidade, de si mesmo e dos outros homens. É agora apenas a confissão abstrata da loucura individual, da fantasia privada, do capricho."16

Podemos dizer mesmo que o Estado democrático é a realização profana da base humana da religião cristã, o que não significa que o Estado deva ser religioso. Vejamos: "o Estado que ainda é Teológico, que ainda professa oficialmente o credo cristão e que ainda não ousa declarar-se como Estado, não conseguiu expressar em forma secular, humana, na sua realidade como Estado, a base hu-mana de que o cristianismo constitui a expressão estática."17 Portanto, no Estado que ainda é religioso, ainda não há uma realização genuína da base humana da religião, ou seja, ela ainda se dá de maneira estritamente religiosa. Precisa da religião a fim de se realizar como Estado, enquanto o Estado democrático não necessita da religião para a sua existência, embora continue sendo um dos seus pressupostos enquanto constituinte da sociedade civil, que, por sua vez, é possibilitada e possibilita a realização plena do Estado democrático.

"O espírito religioso só pode realizar-se se o estádio evolutivo do espírito humano, de que ele é a expressão religiosa, se manifestae constitui na sua forma secular. É o que acontece no Estado democrático. A base deste Estado não é o cristianismo, mas a base humana do cristianismo. A religião permanece como a consciência dela, não secular, dos seus membros, porque é a forma ideal do estádio evolutivo humano, que nela se atingiu."18.

No entanto, à medida que, no Estado, persiste o dualismo entre vida individual e vida genérica, na forma do dualismo sociedade civil e sociedade política e enquanto ele trata da vida política como verdadeira vida, separada da vida individual, ele ainda é religioso. Se, por um lado, o Estado é a realização secular da base humana do cristianismo, por outro não é ainda a emancipação humana, porque conserva características que não permitem ao homem concreto reconhecer-se na sua realidade enquanto ser genérico. Vejamos a afirmação de Marx:

"A democracia política é cristã no sentido de que o homem, não só um homem, mas todo o homem, é nela considerado como ser soberano e ser supremo; mas é o homem ignorante, insociável, o homem tal como é na sua existência fortuita, o homem como foi corrompido, perdido para si mesmo, alienado, sujeito ao domínio das condições e elementos inumanos, por toda a organização da nossa sociedade - numa palavra, o homem que ainda não surge como real ser genérico. A criação da fantasia, o sonho, o postulado do cristianismo, a soberania do homem - mas do homem como ser alienado distinto do homem real - é, na democracia, realidade tangível e presente, máxima secular."19

Portanto essa soberania frente ao Estado pode e deve ser concedida a qualquer membro da sociedade civil. Pelo fato de ser religiosamente, ou seja, ser a expressão alienada do ser genérico do homem, ela possibilita a radicalização do isolamento e do egoísmo do dia-a-dia da sociedade civil, e portanto a emancipação política deixa que a religião exista enquanto assunto qualquer da vida individual. Por isso a "contradição em que o adepto de uma religião particular se encontra quanto à sua cidadania é apenas uma parte da universal contradição secular entre o Estado político e a sociedade civil,"20 o que garante os direitos civis a qualquer indivíduo membro do Estado, inclusive ao judeu de ser judeu. O fato de poder haver emancipação política completa sem que necessariamente precise haver uma renúncia ao judaísmo ou a qualquer outra religião, ou capricho particular, significa apenas que a emancipação política ainda não é a emancipação humana. Portanto os direitos civis enquanto expressão da emancipação apenas política devem ser garantidos a todos, independentemente de sua situação particular, inclusive ao judeu.

2 - A natureza do estado burguês e a questão dos direitos do homem

Se os direitos civis podem ser garantidos aos judeus, Marx agora se pergunta quanto aos direitos do homem. Pois, segundo Bauer, também a esses direitos o judeu não pode ter acesso, enquanto não abdicar de sua condição de judeu. Sem abdicar dessa situação, estaria sobrepondo-se à humanidade. Tanto o cristão como o judeu precisariam sacrificar os privilégios de sua fé para alcançar os direitos do homem.

É interessante perceber que os direitos na sociedade moderna são divididos em dois tipos, a dizer, direitos do homem e do cidadão. Ou seja, por um lado os direitos políticos e, por outro, os direitos humanos, o que por si só já denuncia uma dupla realidade da sociedade moderna. Enquanto direitos políticos, fazem parte da "categoria de liberdade política, de direitos civis, que, como vimos, não pressupõe de nenhum modo a abolição consciente e positiva da religião nem por conseguinte do judaísmo."21 Bauer, portanto, no que se refere a essa questão, estava errado. Vejamos agora como Marx aborda a questão dos direitos do homem.

Nesse nível, Marx não encontra dificuldade para provar que também a esses o judeu tem direito conforme os direitos do homem e do cidadão. Marx cita exemplos de constituições e declarações que enfatizam exatamente isso: o privilégio da fé como um direito do homem ou, como conseqüência, do direito à liberdade individual. Se enquanto ser genérico, como integrante do Estado democrático, não pode haver comportamento religioso, no nível da sociedade civil, da qual o homem não passa de um membro isolado e egoísta, esse é um direito até mesmo constituidor. Para definir com mais clareza a questão, Marx cita um por um os direitos fundamentais do homem e mostra que a todos eles o judeu pode ter direito, pelo fato de eles se realizarem em nível de sociedade civil e não considerarem o ser humano como ser genérico, já que essa dimensão se encontra alienada no Estado. Os direitos do homem são de proteção do espaço individual contra a interferência das qualidades genéricas, portanto o espaço individual onde o Estado não pode interferir.

O direito à liberdade nada mais é que o direito de ser indivíduo circunscrito e separado. O direito à propriedade privada nada mais que o direito a dispor como quiser dos seus bens e rendimentos, onde inclusive os outros seres humanos representam uma limitação da própria liberdade. A igualdade nada mais significa que a lei será a mesma para todos, embora nem todos sejam iguais. A segurança nada mais é que a garantia dada pela própria sociedade do egoísmo, onde cada pessoa pode preservar os seus direitos e propriedades enquanto mônada isolada.

Portanto nenhum direito do homem vai além do indivíduo egoísta que é membro da sociedade civil. Na própria estrutura de organização do Estado liberal, o cidadão acaba sendo servo do homem egoísta, no sentido de que a expressão genérica, da qual, embora de forma alienada, o Estado é, serve como meio para os interesses particulares.22 De forma que o apelo de Bauer no sentido de que o judeu teria que abandonar a sua situação de judeu, caso quisesse ter acesso aos direitos do homem, é uma contradição, já que a dualidade entre sociedade política e sociedade civil é inerente à própria sociedade burguesa, onde ocorre uma abstração do homem político em contraposição ao homem da sociedade civil, ao homem do dia-a-dia concreto.

Se, na sociedade feudal, as condições vitais da sociedade civil permaneceram políticas, no sentido de que o Estado era, de certa forma, também um assunto privado do governante e seus servidores, a sociedade burguesa aboliu esse caráter político da sociedade civil, que passa agora a ser tida como o espaço de manifestação do ser natural do homem. Somente a sociedade política é a autoconsciência do homem, na qual o homem é tido como pessoa alegórica e moral em contraposição ao homem como ele é na sua realidade sensível, individual, imediata e egoísta.

Dizer que o judeu, ou o homem religioso em geral, pode atingir a emancipação política não é nada mais que dizer que houve a divisão e "a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral"23, ou seja, a afirmação da igualdade, embora de forma alegórica e abstrata, perante o Estado e a garantia de ser um indivíduo isolado, egoísta, proprietário etc., em nível de sociedade civil. Como os direitos do homem não passam de garantias para o egoísmo, o isolamento e a propriedade, como vimos acima, todos devem ter direito aos mesmos, inclusive os judeus, provando-se que também nessa questão Bauer estava equivocado.

Certamente Bauer supunha que a emancipação política seria a emancipação humana e que a vida genérica do Estado já seria a abolição total da religião. Não percebia que o Estado ainda é uma forma religiosa, embora secular, de o homem realizar o seu ser genérico.24 O homem ainda não vive, em seu dia-a-dia, a sua essência. Ainda a objetiva num ser fora de si, no Estado. E continua vivendo numa luta de todos contra todos na realidade diária e concreta.

3 - A superação do estado burguês como condição de emancipação humana

Após feitas as reflexões acima, Marx sugere uma caminho para superar a emancipação meramente política, a fim de alcançar a emancipação humana:

"A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política."25

Assim, realiza-se no Estado de modo estranho, em analogia à religião, a própria essência humana estranhada, que, quando recuperada conscientemente pelo homem individual, possibilita a sua própria emancipação, ou seja, não mais apenas a emancipação política, também a humana.26

Interessante notar que a emancipação humana se dará no momento em que o indivíduo particular assumir, no seu dia-a-dia, a generalidade hipostasiada e alienada no Estado. Isso significa dizer que a emancipação humana exige a supressão do Estado na forma como ele se constituiu a partir da modernidade. Nesse sentido, essa emancipação provavelmente se daria a partir dos próprios espaços da sociedade civil, à medida que ali se consigam gestar espaços públicos e comunitários que não sejam estatais, que, à medida que vão fortificando-se, vão substituindo o próprio Estado, ou seja, espaços que possibilitem a vivência quotidiana daquilo que é apenas hipostasiado no Estado. Isso dentre outras coisas, exigiria uma outra compreensão quanto à forma de democracia, na qual os indivíduos possam ao menos decidir efetiva e conscientemente o que antes era apenas decidido pelo Estado. Ademais direitos políticos e direitos do homem passam a fazer parte da mesma esfera, uma vez que essa dupla existência não se torna mais necessária. Uma questão, sem dúvida, da mais profunda importância para a discussão política e social da atualidade. Por outro lado, pode-se vislumbrar, com essa reflexão, também os limites das organizações, movimentos populares, ONGs, e mesmo partidos, cujos objetivos estão estritamente ligados à emancipação política.

Gostaríamos de enfatizar que a forma como, de modo geral, são concebidos os direitos políticos e humanos na sociedade moderna é a própria forma como se legitima a indiferença com a miséria e a exploração, uma vez que a sociedade civil é apenas o espaço da individualidade isolada e a democracia é apenas uma ilusão, à medida que a eleição, enquanto ápice dessa forma de democracia, significa apenas uma alienação do ser social na esfera do Estado. Emancipação humana significa, pois, trazer para o dia-a-dia e para todos os momentos aquilo que se atribui como sendo apenas função do Estado. Felizmente, na atualidade, já se visualizam algumas perspectivas nesse sentido que, no entanto, ainda se apresentam de forma limitada, dentre as quais poderemos citar as diversas organizações que atuam na sociedade civil, mas com uma perspetiva pública, social. Ou mesmo, especialmente para nós gaúchos porto-alegrenses, o orçamento participativo, à medida que também este parece estar possibilitando um estrutura de participação que se antepõe e sobrepõe à democracia abstrata e alienada do Estado burguês.

Teríamos, assim, a possibilidade de priorizar o que de fato se coloca como necessidade e interesse dos seres humanos concretos, em vez de realizá-los indiretamente através de estruturas externas, como o Estado, ou mesmo o mercado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Tradução e notas de José da Silva Brandão. Campinas, São Paulo: Papirus, 1988.

FLICKINGER, Hans-Georg. A legalidade da moral: considerações em torno da dupla moralidade da sociedade liberal. Porto Alegre, v. 40. n. 40, p. 25-26. março, 1995.

FREDERICO, Celso. (1843-44): As origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995.

MARX, Karl. A Questão Judaica. In: Manuscritos-Económico Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964

MAZZEO, Antônio Carlos. Sociologia Política Marxista. São Paulo: Cortez, 1995.

NOTAS

1 Deutsch-Französische Jahrbücher, editados por Marx e A. Ruge, Paris, 1844. Apenas se publicou um número duplo da revista, em fevereiro de 1844.

2 Cf. FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Tradução e notas de José da Silva Brandão. Campinas, São Paulo: Papirus, 1988.

3 MARX, Karl. A Questão Judaica. In: Manuscritos-Económico Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964. p. 40.

4 Idem. p. 42.

5 Id. Ibid. p. 42 6 MARX. op. cit. p. 43. Em todas a citações de Marx, os grifos serão sempre do próprio Marx.

7 Id. p. 44.

8 Id. Ibid. p. 45.

9 MARX. op. cit. p. 44

10 Segundo Antônio Carlos Mazzeo, a idéia de democracia na sociedade burguesa também se inclui nessa abstratividade. Vejamos: "A concepção democrática da sociedade burguesa, materializada no contratualismo liberal, tem como centro a universalização da democracia, o que, dentro do pensamento marxiano, eqüivale dizer, uma democracia em abstrato - do mesmo modo que a própria noção de sociedade civil - e que, portanto, manifesta-se ambiguamente, porque essa universalidade aparece generalizada no terreno do formalismo abstrato-genérico. A democracia generalizada contém em seu ser-precisamente-assim uma particularidade que lhe confere a substância formal, dada pelas relações sócio-econômicas burguesas, no plano material e pela cosmologia burguesa, no plano ideal." MAZZEO, Antônio Carlos. Sociologia Política Marxista. São Paulo: Cortez, 1995.

11 MARX. op. cit. p. 44.

12 Idem. p. 45.

13 Id. p. 45. Essa constatação de Marx é confirmada, de uma forma muito convincente e clara, através da análise da Filosofia do Direito, realizada por Hans-Georg Flickinger, buscando a justificação da moralidade na sociedade moderno-liberal, onde essa dupla estrutura social aparece como sendo inerente à própria racionalidade burguesa. Segundo Flickinger, a sociedade liberal, da qual a teoria hegeliana do direito seria a autoconsciência mais aproximada, pressupõe em seu fundamento a divisão acima referida. Vejamos: "a liberdade dos indivíduos particulares revela-se como sendo condicionada pela limitação do campo de influências das figuras jurídicas a sua função de organizar o mútuo relacionamento entre as pessoas. Em outras palavras, as figuras jurídicas da posse, da propriedade privada e do contrato civil deveriam assegurar o livre exercício das vontades individuais sem, no entanto, poder interferir nas condições materiais deste relacionamento. (...) quero apenas sublinhar que sua reconstrução nos mostra uma surpreendente qualidade do direito liberal, a saber, seu caráter abstraidor quanto ao lado qualitativo-material do mundo da racionalidade das coisas, posteriormente identificado como campo da economia." FLICKINGER, Hans-Georg. A legalidade da moral: considerações em torno da dupla moralidade da sociedade liberal. Porto Alegre: Veritas, V. 40. N. 40, p. 25-26. Março, 1995. p.17.

14 MARX. op. cit. p. 46.

15 Idem. p. 47.

16 Id. Ibid. p. 47.

17 MARX, op. cit., p. 48.

18 Idem. p. 52.

19 MARX. op. cit. p. 52.

20 MARX, op. cit., p. 53.

21 MARX. op. cit. p. 54.

22 Idem. p. 58. "O assunto torna-se ainda mais incompreensível ao observarmos que os libertado-res políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem; e que por conseqüência, o citoyené declarado como servo do "homem" egoísta, a esfera em que o homem age como ser genérico vem degradada para a esfera onde ele atua como ser parcial; e que, por fim, é o homem como bourgeois e não o homem como citoyen que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico." Como ressalta Celso Frederico : "Os Direitos do Homem, virando as costas para o ser genérico, tratam de fixar os direitos civis do homem egoísta entregue aos seus interesses particulares na sociedade civil e indiferente à vida comunitária." FREDERICO, Celso. O jovem Marx. ( 1843-44):As origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995. p. 98.

23 MARX. op. cit. p. 63.

24 FREDERICO. op. cit. p. 97: "A interpretação feuerbachiana da religião é mantida integralmente por Marx: na figura do Cristo o indivíduo objetiva a sua humanidade e, graças a essa intermediação, pode reconhecer o seu ser genérico alienado. O mesmo vale para o Estado, o intermediário através do qual os indivíduos vislumbram a sua própria liberdade, as possibilidades infinitas do seu ser genérico. Esse estado, assim concebido, pode sobrepor-se aos particularismos religiosos e conceber direitos iguais a todos. Como Cristo, o Estado passa a simbolizar o homem universal." 25MARX. op. cit. p. 63.

26. No dizer de Celso Frederico: "A emancipação política, portanto, implica uma conservação de interesses particularistas à margem do interesse coletivo, mantendo a cisão entre o homem e o cidadão. O mesmo vale, diríamos nós, para os movimentos sociais de defesa das "minorias" surgidos na segunda metade do século XX. São movimentos progressistas, sem dúvida, mas não resolvem a reivindicação maior da emancipação humana, reclamada pelo jovem Marx, ou da sociedade sem classes, proposta em suas obras de maturidade." FREDERICO. op. cit. p. 100.

 

Autor:

Rosalvo Schütz

rosalvoschutz[arroba]hotmail.com

Mestre em Filosofia pela PUCRS e assessor da CAMP (Centro de Assessoria Multiprofissional - ONG).



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