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Os autores e suas idéias: um estudo sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo (página 2)

Adriano Nervo Codato

Cultura Política foi publicada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda durante a maior parte de seu período de existência, de março de 1941 a outubro de 1945.7 Editada por Almir de Andrade, pode ser considerada o principal "órgão teórico" de difusão do regime estado-novista, tendo como propósito "a organização da cultura, com um conteúdo socialmente útil e um sentido de orientação para o bem comum, coerentes e solidários ambos com a orientação geral do Estado e com o próprio ritmo da vida política" (Andrade, 1942a: 9). Apesar de algumas modificações ocorridas na estrutura da revista em 1942, em função do contexto político de alinhamento do Brasil aos Estados Unidos (quando deixa de ter um número fixo de seções, passa a receber uma acentuada colaboração de militares, e assume também o objetivo de conscientizar e mobilizar a sociedade brasileira para a Segunda Guerra Mundial), ela possuía, basicamente, seis seções: a) Problemas políticos e sociais; b) O pensamento político do chefe do governo; c) A estrutura jurídico-política do Brasil; d) A atividade governamental; e) Textos e documentos históricos, e f) Brasil social, intelectual e artístico.8

A literatura acadêmica específica sobre Cultura Política é escassa. Há apenas quatro trabalhos sobre o papel desempenhado pela revista no Estado Novo.9

De acordo com Rodrigues, o periódico não buscava impor uma linha única de pensamento ("totalitária"), e sim a difusão de várias correntes ideológicas autoritárias,

o que explicaria a heterogeneidade de seus colaboradores (indo de Oliveira Vianna, à direita, a Graciliano Ramos, à esquerda, por exemplo). Uma vez definida sua opção política, a revista abria-se a todas as facções compatíveis com o autoritarismo, representando assim uma "tentativa de obtenção do consenso (...), num esforço que levasse em consideração as diferentes correntes (...) suscetíveis de serem cooptadas" pelo Estado (Rodrigues, 1983: 16). Gomes (1996), no sentido oposto, sustenta que a revista desempenhava a função estrita de agência de propaganda ideológica do Estado Novo. Propunha-se a ser um veículo informativo de espectro amplo, mas ao mesmo tempo deveria promover os ideais do regime. Essa interpretação retoma as conclusões do estudo de Velloso. Para a autora, a imprensa escrita era o "lugar por excelência de produção e difusão do discurso estado-novista" (Velloso, 1982: 73). Contudo, é preciso considerar que cada instrumento cumpria aqui uma tarefa específica no campo ideológico, cabendo a Cultura Política a função de produção de um discurso mais elaborado ("acadêmico"), a ser difundido por outros meios em uma linguagem mais pragmática e panfletária.10 Dagnino (1985) enfoca outro aspecto: a revista deve ser compreendida como parte de um projeto sistemático de submissão dos espaços de produção artística e cultural à ação estatal, não se limitando a garantir a subordinação ideológica necessária ao projeto de dominação, e sim desempenhando um papel ativo na construção da "hegemonia cultural do regime", de modo a garantir o consentimento da sociedade civil e a forjar uma "cultura nacional".

As hipóteses de Velloso e Dagnino parecem ser mais convincentes. Os artigos de Cultura Política lançam mão de uma argumentação teórica elaborada, inacessível ao leitor comum – o que torna a revista inadequada à propaganda estrita do regime. É, nesse sentido, uma inversão completa da aspiração de Luís Vergara, para quem, como se viu, não haveria espaço, na pedagogia autoritária, para "digressões doutrinárias e tiradas filosóficas sobre teorias do Estado". Por outro lado, a ausência completa de pensadores de orientação católica (Jackson Figueiredo, Alceu Amoroso Lima) e integralista (Plínio Salgado, Miguel Reale, Gustavo Barroso) permite descartar a hipótese segundo a qual a publicação teria por função a "formação de um consenso autoritário". Aceitá-la seria reconhecer como verdadeira a racionalização dos próprios ideólogos sobre o papel por eles desempenhado, relegando a segundo plano a análise sobre a função real da revista no interior do regime. Do nosso ponto de vista, Cultura Política desempenhava um papel ativo na sistematização do discurso ideológico oficial (isto é, de Estado), buscando fundamentos em autores clássicos do pensamento político e em importantes representantes do pensamento autoritário nacional.

Tomando, portanto, Cultura Política como um "artigo superior" entre aqueles criados para atuar no campo "cultural", o que se pretende aqui é enfatizar certos aspectos inexplorados pelos estudos anteriores. Em primeiro lugar, refazemos, a partir do exame dos textos, o discurso sobre a organização política do regime. São dois os aspectos tratados: a) as justificações – ideológicas – sobre a "organização nacional" nesse período (1937-1945), e b) as formulações "conceituais" sobre a dimensão institucional da política autoritária, o que implica teorizações sobre o federalismo e a unidade nacional, os processos de concentração/centralização do poder e o personalismo do governo. É como ideologia política que a ideologia nos interessa.11 Em seguida, buscamos investigar o tipo de intelectual que a produziu.

O universo da análise compreende 124 artigos publicados em Cultura Política, escritos por 73 colaboradores. Na seção seguinte, analisamos a formação e o perfil socioprofissional desses intelectuais. A ausência de informações mais sistematizadas impediu que se fizesse uma análise padrão dessa "elite" (origem social, formação escolar, ocupação profissional e carreira política). Ainda assim, considerando os dados disponíveis, pudemos determinar a característica específica desses escritores. Na terceira seção, resumimos as principais linhas de argumentação do pensamento político autoritário. Na conclusão, pretendemos indicar as relações existentes entre essa elite intelectual e suas idéias.

2. Os intelectuais de Estado

Como publicação oficial do governo, Cultura Política é o veículo que melhor reflete o caráter complexo da incorporação dos intelectuais ao regime. Apesar da diversidade de seu quadro de colaboradores, a homogeneidade do discurso se mantém: suas coordenadas são fornecidas por intelectuais de renome, vinculados ao aparelho de Estado ou com participação efetiva na montage m do projeto ideológico autoritário (Velloso, 1982: 78),12 devendo ser ressaltado o papel ativo do editor – Almir de Andrade – na unificação das propostas (Gomes, 1996: 131). Esse papel é mais óbvio quando se lêem os resumos dos textos publicados: eles direcionam a leitura e advertem o leitor sobre o que é importante e o que é descartável nas matérias.13

Dos 73 autores selecionados, 41 são ligados diretamente ao Poder Executivo, quatro desempenham funções judiciais, cinco são estudantes de direito (alunos do próprio Almir de Andrade), sete são professores universitários (quatro professores de direito, um de economia e dois professores cujo curso não é mencionado), três são militares, sete são "profissionais liberais" (identificados como jornalistas, advogados, escritores, poetas e críticos literários), além de cinco autores cujas referências biográficas não foram encontradas (Quadro I, abaixo). Estes dados tornam ainda mais reveladora a origem do discurso político – o aparelho do Estado e não a "sociedade civil" – se levarmos em conta que os 42 funcionários do Executivo contribuem com 81 artigos no total, enquanto em todos os outros campos de atuação a quantidade de artigos é quase equivalente ao número de colaboradores.14

Quadro I: Atuação profissional dos colaboradores de Cultura Política (universo selecionado)

 

Quantidade de colaboradores

Porcentagem do total de colaboradores

Quantidade de artigos publicados

Porcentagem do total de artigos selecionados

Poder Executivo

42

57,53%

81

65,32%

Profissionais liberais

7

9,58%

12

9,67%

Universidades

7

9,58%

8

6,45%

Estudantes

5

6,84%

5

4,03%

Funções judiciais

4

5,47%

7

5,64%

Militares

3

4,10%

6

4,83%

Sem informação*

5

6,84%

5

4,03%

Total

73

100%

124

100%

* Cláudio Martins, Getúlio Monteiro Jr., José Getúlio Monteiro, José Vicente Paya e Severino Uchoa.

Se levarmos em consideração que na classe "funções judiciais" foram incluídos um procurador da República (Ademar Vidal), um procurador da Justiça do Trabalho15 (Valdo de Vasconcelos) e dois juízes do Distrito Federal (Aloísio Maria Teixeira e Oscar Tenório), e que os professores universitários bem podem ser considerados integrantes do "aparelho de Estado", 16 é ainda maior a contribuição percentual da burocracia estatal nos artigos de Cultura Política. Esse número aumenta se considerarmos que o tenente-coronel Sérgio Marinho mantém forte ligação com o aparelho de Estado, tendo se tornado membro, em dezembro de 1930, do Conselho Administrativo do Estado do Rio Grande do Norte, e que, sendo secretário-geral do estado em 1933, assumiu interinamente a interventoria federal de abril a junho desse ano. O mesmo vale para o coronel aviador Lísias A. Rodrigues, que ocupou cargo no Ministério da Aeronáutica. Finalmente, os cinco estudantes,17 colaboradores da seção "Página Acadêmica", 18 também podem ser considerados difusores da ideologia oficial da burocracia estatal, com a qual tinham entrado em contato através de Almir de Andrade. Considerando que a ideologia veiculada por esses estudantes e pelos demais acima referidos tem origem direta na burocracia, teríamos a seguinte distribuição:

Quadro II: Origem social do discurso veiculado em Cultura Política (universo selecionado)

 

Quantidade de colaboradores

Porcentagem do total de colaboradores

Quantidade de artigos publicados

Porcentagem do total de artigos selecionados

Burocracia estatal

60

82,19%

105

84,67%

Profissionais liberais

7

9,58%

12

9,67%

Militares*

1

1,36%

2

1,61%

Sem informação

5

6,84%

5

4,03%

Total

73

100%

124

100%

* Sem ligação direta com o Executivo.

Mais de 80% dos autores dos artigos sobre "política" estão, de algum modo, vinculados à burocracia estatal e colaboram com quase 85% do total de matérias. Portanto, a maior parte da ideologia política do regime difundida em Cultura Política é formulada pela burocracia do Estado Novo.

No que diz respeito à sua formação profissional, esses autores estão intimamente ligados a atividades tão respeitadas no "regime demagógico e politiqueiro" da República Velha quanto repudiadas pelo discurso ideológico do "regime científico" do Estado Novo: o direito e o jornalismo. Da análise dos dados obtidos pôde-se caracterizar, apesar da auto-imagem desses intelectuais, a ideologia política oficial do regime como uma ideologia predominantemente de bacharéis e beletristas:

Quadro III: Formação profissional dos colaboradores de Cultura Política (universo selecionado)

 

Quantidade de colaboradores

Porcentagem do total de colaboradores

Quantidade de artigos publicados

Porcentagem do total de artigos selecionados

Bacharéis e beletristas19

41

56,16%

92

74,19%

Sem ligações com direito ou jornalismo20

32

43,83%

32

25,8%

Total

73

100%

124

100%

À primeira vista, a quantidade absoluta de colaboradores ligados a essas atividades (41) pode não parecer representativa – pouco mais da metade do total selecionado. Porém, juntos eles publicam perto de 75% de todos os artigos. Estes dados sugerem que, apesar das intenções sinceras desses intelectuais de Estado de instituir uma "política técnica", e das tentativas de elaboração de um discurso "científico" para a legitimação do regime, ainda não havia no país um sistema de educação capaz de formar os cientistas e técnicos necessários para a tarefa. Inexistindo geólogos, biólogos, psicólogos, sociólogos, economistas, estatísticos, administradores em quantidade suficiente, continuavam os bacharéis e beletristas a dominar a cena política e intelectual – travestidos de técnicos e cientistas.21

É razoável supor, assim, que haja uma forte proximidade entre o tipo de intelectual e a natureza das suas idéias.

3. As idéias políticas

No exame da ideologia veiculada pela revista, selecionamos apenas as idéias pertinentes ao tema enfocado: a ideologia política do Estado Novo (mais especificamente, as racionalizações a respeito da organização política do Estado e do regime). Para facilitar a apresentação do estudo, dividimos essa seção em dois itens: 1) a percepção/apresentação das características da nova realidade nacional, e 2) as categorias criadas para a justificação da nova forma de organização política.

3.1. A nova realidade social

A ciência desempenhou um importante papel na legitimação do Estado Novo. Diversos colaboradores de Cultura Política ressaltam a "mentalidade objetiva e organizadora que passou a dominar o país" (Carvalho, 1944: 50) após o mítico 10 de dezembro. Termos recorrentes no discurso intelectual passam a ser "racionalização", "padronização", "organização técnica" etc. A idéia de uma administração científica do Estado está presente, inclusive, no tipo de representação de interesses defendida pelos intelectuais – o corporativismo, tal como instituído pela Constituição de 37 e consubstanciado no (inexistente) Conselho de Economia Nacional. O conselho seria um órgão consultivo somente para "assuntos técnicos". 22 A nova Carta permitiria a depuração das funções de governo da "politicagem", e os mandatários do povo seriam, no Estado Novo, "especialistas". Para alguns dos pensadores analisados, isso só seria possível graças à unificação do poder político, que permitiria a distribuição das atividades administrativas conforme a lei (natural?) da divisão do trabalho, e não segundo os princípios abstratos da doutrina liberal.

O liberalismo, aliás (ao lado do comunismo), é o principal inimigo da ideologia autoritária. Os políticos liberais, sustenta-se, desconhecem a sociologia, as leis da história e carecem de realismo político, o que os leva a elaborar Constituições em descompasso com os fatos. Essa ignorância se reflete também sobre sua incapacidade para a gestão (técnica) das políticas estatais. Por tudo isso, a ideologia liberal deveria ser vista como um obstáculo à tomada de consciência por parte das elites dirigentes diante da tarefa histórica de organizar a nação.

Mais ainda: as instituições liberais (o federalismo, a separação de poderes, o parlamento, os partidos políticos, o sufrágio universal, o individualismo, o "Estado fraco" etc.) seriam incompatíveis com a formação da sociedade brasileira e as características psicológicas e culturais do "nosso povo". O sufrágio universal não representaria mais que uma participação simbólica dos cidadãos na constituição do poder, além de ser um método de escolha pernicioso (dada a incapacidade inata do povo para discernir, entre as alternativas, a melhor); a intromissão do Parlamento e dos partidos seria igualmente perversa, já que importariam um viés irracional onde só deveria haver debates técnicos; o liberalismo, além de ser uma ideologia "em crise no mundo todo", seria um regime "idealista", inadaptado à realidade nacional. Em resumo, o núcleo de preocupações da ideologia autoritária é a negação da soberania popular e a conseqüente transferência do locus da soberania para o Estado, representado pelas... elites burocráticas.23

O elogio ao Estado Novo vem sempre acompanhado da crítica aos regimes jurídicos anteriores: a Constituição de 1891 é considerada "idealista" (isto é, utópica, irreal) e ignorante da realidade nacional. A tentativa de aplicá-la ao Brasil terminaria, como de fato terminou, numa crise inibidora da política orgânica voltada para as realidades nacionais. A Constituição de 1934 é criticada por ter sido confeccionada em um momento de transição, resultado de compromissos entre os numerosos grupos parlamentares. Refletindo as mais diversas idéias, ela estaria ainda mais distante da realidade brasileira que a Constituição de 91, sendo considerada um "desvio momentâneo" dos ideais da Revolução de 1930.

Resulta daí que um "conceito" importante para a caracterização do Estado Novo – como regime político – é o seu "realismo". Procura-se ressaltar o caráter realista (oposto aqui de quimérico, imaginário) do novo modo de organização política, estando o regime alinhado às tendências mundiais, mas adaptado à realidade do Brasil – o que o contrapõe, no essencial, à República Velha (idealista e desligada das condições reais da vida nacional). Segundo Oto Prazeres (1941b: 64), "uma Constituição não é um código teórico, e não deve estar nem adiantada nem atrasada para o momento do povo a que vai servir". Esse realismo (contra as ficções jurídicas) é um dos pontos-chave da argumentação – científica – dos ideólogos e a justificativa exata para a maioria das categorias criadas pelo discurso autoritário (o "federalismo centralizador", a "democracia social e econômica", o "governo forte" etc.), como se verá adiante. Tratase aqui de uma ideologia anti-jurídica dos bacharéis.

O caráter nacional do regime político – por oposição ao sentido universalista do liberalismo – e sua atualidade – um governo adequado ao presente, e não atado a um futuro inexistente, nem muito menos romântico e nostálgico do passado – serão os fundamentos desse realismo peculiar, e esses três conceitos (real, nacional e atual) surgem como complementares e indissociáveis na estrutura argumentativa. "Não se pode fazer a apologia de nenhuma forma de governo, isoladamente, considerada em teoria, ou ao pé da letra. Somos obrigados a procurar, dentro de um critério mais conciliador, aquela que maiores vantagens propicia à índole e às circunstâncias do povo que a adota" (Costa, 1943: 26).

O "nacionalismo" é uma das manifestações do "realismo" da organização política: o Estado Novo seria nacional por ser real, adaptado às necessidades do país, uma política "enraizada no espírito e nos hábitos sociais brasileiros" (Barros, 1941: 124). É exatamente esse caráter nacional que confere a singularidade da forma de organização política adotada (distinguindo-se, portanto, seja dos regimes totalitários da Europa Central, seja dos regimes liberais a que o Brasil se havia aliado a partir de 1942).

A atualidade do regime instituído é também um índice importante do seu realismo. A forma de organização política depois de 1937 seria a ideal por não estar nem adiantada nem atrasada em relação às necessidades do país. Ou, como frisou, Azevedo Amaral (1941: 160): "Observa-se nas épocas de intensa atividade criadora e renovadora o propósito dos guias das nações de dar aos povos que dirigem instituições configuradas pelas exigências da realidade social e adequadas às sucessivas mutações do fluxo histórico, mas também coloridas pelos traços do psiquismo particular do período a que correspondem". Daí que o novo regime não teria sido uma questão de escolha (das elites); seria o único que se poderia implantar no Brasil no momento; seria, além de um "imperativo da realidade", uma "inevitabilidade histórica", uma questão de lógica, e não de opinião.

O que é indiscutível e está na base da ruptura promovida pelo pronunciamento de 10 de novembro é a idéia de crise. Para esses "intelectuais de Estado", a crise presente – que legitima e justifica a ação do Estado – é resultado tanto de tendências históricas de longa duração quanto da ultrapassada estrutura institucional e política do país, codificada por um arranjo cuja marca é a separação da política da vida social. Portanto, o golpe de 1937 é considerado "mais uma reclamação imperiosa das classes sociais que um ato de governo"; segundo a ginástica dessa argumentação, pode-se dizer que "veio de baixo para cima, a fim de vir, depois, de cima para baixo" (Figueiredo, 1942: 89). O povo confere ao líder, daí em diante, total liberdade a fim de "salvar" a nação.

Essa argumentação não é novidade e, na verdade, duplica a exposição de motivos que está presente no preâmbulo da Constituição de 37 e no discurso justificatório proferido por Getúlio Vargas em 10 de novembro. Segundo o texto da carta constitucional, o presidente da República dos Estados Unidos do Brasil estaria atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil.

No mesmo sentido, na oração lida em 10 de novembro de 37, Vargas afirmará:

O homem de Estado, quando as circunstâncias impõem uma decisão excepcional, de amplas repercussões e profundos efeitos na vida do País, acima das deliberações ordinárias da atividade governamental, não pode fugir ao dever de tomá-la, assumindo, perante a sua consciência e a consciência dos seus concidadãos, as responsabilidades inerentes à alta função que lhe foi dele gada pela confiança nacional. (Vargas, 1938: 19)

3.2. Os conceitos

A ideologia política veiculada em Cultura Política é bastante influenciada pelo "positivismo", 24 e se manifesta nas concepções de sociologia, direito, história e sociedade presentes no discurso conservador. A sociologia – em que pese sua formação profissional – é a principal disciplina utilizada na argumentação dos colaboradores da revista, e é ela que fundamenta a criação das diversas categorias que justificarão as novas instituições políticas e jurídicas – adequadas à "realidade sociológica" do país. Busca-se, assim, converter o discurso político dos intelectuais de Estado em um discurso sociológico, que, sendo científico, torna-se assim neutro. A partir daí, os colaboradores de Cultura Política estão confortáveis para desenvolver um conjunto de idéias que autenticam, explicam e edificam a nova ordem.

Um dos assuntos mais fortemente discutidos em Cultura Política é o federalismo.25 A maioria dos autores prefere não abrir mão do federalismo, mas o federalismo do Estado Novo precisa ser mais bem qualificado (ainda que em prejuízo do seu sentido original) como "centralizador", "unitário" ou "cooperativo". Assim, o federalismo centralizador instituído pela Constituição de 37 teria por objetivo compensar os inconvenientes da autonomia regional através de uma maior centralização do poder, neutralizando o que pudesse ser nocivo à unidade nacional. A descentralização proposta, nesse sistema, é eminentemente administrativa, não política, como no pré-30.

Além de centralizador, esse novo federalismo seria cooperativo. Ao contrário do instituído pela Constituição de 1891, em que os estados membros viviam em constante conflito entre si e com a União, resultando na pulverização dos centros de poder e dificultando a ação do governo, o federalismo instituído pelo regime de 37 levaria a uma coordenação de esforços entre os entes federados, que buscariam, em conjunto, atingir a felicidade social e o bem da nação.26

Além de procurar comprovar o caráter federativo do Estado Novo, há um esforço para explicar a excessiva centralização de poder do regime, resultado da nomeação de prepostos em quase todo o território nacional. Apesar do "sociologismo" recorrente, o discurso jurídico procura justificar a intervenção federal como um "dever" da União e a "verdadeira" garantia de autonomia dos estados membros.

O outro passo da lógica discursiva autoritária é justificar a concentração do poder nas mãos do Executivo. Procura-se afirmar a unificação do poder político em torno do presidente da República, sendo esse, segundo Monte Arrais e Almir de Andrade, um dos princípios fundamentais da Constituição de 37.27 Cândido Duarte (1941: 50) procura explicar a prevalência do Executivo em função das características estruturais dos outros poderes. Segundo Duarte, a unificação do poder político seria inevitável. Sendo os poderes Legislativo e Judiciário pouco propícios, por sua natureza, à absorção de funções, é no âmbito do Poder Executivo que ela deveria ocorrer. Ainda sobre a concentração de poderes, os autores lançam mão da noção de "harmonia de poderes" em contraposição à separação de poderes dos liberais; a separação de poderes deveria ser compreendida como um acontecimento histórico, resultado da luta contra o absolutismo. A "exigência dos fatos", contudo, teria tornado impossível a realização desse ideal, devendo-se substituí-lo pelo princípio de harmonia de poderes, ou coordenação de poderes (Andrade, 1942b: 8).

Um ponto é quase consensual entre os colaboradores de Cultura Política: a unidade nacional é a maior realização do Estado Novo (alguns deles chamam a atenção para o fato de a unidade política ter de ser complementada pela unidade moral e pela unidade econômica).28 Fundamental para o desenvolvimento desse argumento é o mito da "marcha para o Oeste", ou do "Estado bandeirante", inventado por Cassiano Ricardo (1941) e repetido à exaustão em vários artigos: o Estado Novo, atendendo ao espírito bandeirante, continuaria a marcha para o Oeste com o objetivo de promover a união do território nacional. Essa "criação da nação" ocorre de cima para baixo, tendo as elites políticas e técnicas – situadas no aparelho do Estado – como seus principais agentes e fiadores. O Estado assume assim a tarefa de integrar os "elementos dispersos da nacionalidade", e para isso o governo deve ser forte, como antídoto à dominação oligárquica regional, contaminada pelo espírito de facção e alheia ao ideal de nação. O direito dos estados à autonomia não pode sacrificar o direito da nação à unidade, condição essencial de realização de seus destinos.

Os autores procuram sempre caracterizar o regime do Estado Novo como um governo "forte", meio-termo entre o regime liberal e o regime totalitário. Ele teria como principal característica o fortalecimento do Poder Executivo, e representaria (surpreendentemente) a defesa da "democracia" contra a "ditadura".29 Com a ascensão dos totalitarismos na Europa, tornava-se premente estabelecer distinções entre o regime brasileiro e os regimes contra os quais lutava o "mundo democrático ocidental". Repetidas vezes os intelectuais procuram se justificar perante "as nações americanas", afirmando o direito de todo povo à auto-organização, mas refutando o caráter totalitário do regime político (uma "democracia sui generis"), e enfatizando o "caráter pan-americanista" do governo Vargas. Duas entrevistas de Getúlio Vargas a jornais argentinos em que o tema é abordado são publicadas na revista (1941), e há dois artigos inteiramente dedicados à sua análise.30

Nessa linha, os colaboradores da revista também se recusam a abrir mão do caráter "democrático" do novo regime, preferindo relativizar esse conceito a descartá-lo completamente. Segundo a análise desses intelectuais de Estado, o movimento liberal-democrático teria sido apenas uma das tentativas de se realizar a democracia – uma tentativa, aliás, fracassada. O Estado liberal-democrático seria incompatível com a manutenção da autoridade e da gestão científica e eficaz das políticas estatais, além de alimentar facciosismos que levariam à "crise". O Estado Novo instauraria uma democracia social e econômica, essa sim a verdadeira democracia, contrapondo-se à democracia puramente política do liberalismo, e tendo como princípios o respeito à liberdade socialmente útil, ao valor do trabalho, à eqüidade material, à igualdade de oportunidades, à fraternidade e à solidariedade humana, buscando o bem comum, o bem-estar de cada um e de todos, e a felicidade social (Andrade, 1942b: 11). Essa seria uma democracia mais dinâmica e objetiva, que induziria a "relações mais naturais entre o povo e seu chefe" (Dantas, 1944: 68).

De acordo com essas idéias, o presidente Vargas deveria ser o centro de gravidade e o princípio de equilíbrio e moderação naquele momento conturbado da história brasileira, sabendo se conservar acima das facções (Belo, 1941: 116) e agir com a responsabilidade do "bom pai de família". O poder pessoal, "herança de Portugal desde os tempos da Colônia" (Arrais, 1941: 62),31 é considerado a principal garantia da unidade nacional. A ação de Vargas é considerada fundamental para a construção do Estado Nacional – "o Estado Nacional representa a getulização do Brasil" (Harnisch, 1943: 37), e ele é o "grande estadista" capaz de perceber os anseios da consciência nacional e pô-los em prática; as características da nova forma de organização política acabarão sendo, de alguma forma, características do próprio Getúlio Vargas, que uniria o espírito brasileiro à coragem do grande estadista.

4. Conclusão

O que se pensa é resultado de quem pensa. Essa constatação simplória ressalta um traço específico do regime autoritário: a baixa autonomia ideológica dos intelectuais (em relação ao aparelho do Estado), de um lado, e do discurso político (em relação à realidade), de outro. Se há uma mobilização importante de "grandes nomes" da literatura e das artes em geral para falar de "cultura", e se esses intelectuais estão na "sociedade civil" (e basta inspecionar os demais autores/artigos mais citados e/ou celebrados de Cultura Política), os assuntos políticos serão especialidade de uma elite intelectual que se confunde com a elite burocrática. Homens de Estado que expressam uma "razão de Estado".

Contudo, esse discurso não aparece como simples propaganda, cuja função seria justificar, através de imagens e idéias simples (ou complexas, pouco importando aqui), o exercício do poder ditatorial; nem seus agentes aparecem como "ideólogos do Estado Novo". Assim como o poder precisa mascarar seu domínio – pois não há política sem "justificação ideológica", frisava em 1938 o secretário ao presidente –, a ideologia não pode, igualmente, prescindir de seus determinantes específicos. Ela tem de se apresentar, também, como "argumentação" sociológica, discussão política (de "alto nível"), "teoria do Estado", em suma. Da mesma maneira, ela deve ser comunicada por escrito através de veículos consagrados – uma revista teórica de "estudos brasileiros" – a um público distinto. Deve mobilizar um conjunto de intelectuais (eles próprios "funcionários" convertidos em "pensadores" ou "pensadores" empregados como "funcionários") e realizar sobre esses intelectuais um segundo processo de conversão: de bacharéis/beletristas em especialistas em temas político-sociais. Eles podem falar assim sobre a organização social como "sociólogos", sobre a economia como "economistas", sobre a história como "historiadores" e sobre o federalismo (ou qualquer tema atinente à organização política) como "cientistas políticos".

Assim, ainda que a ideologia produzida não tenha autonomia – ela é quase o "duplo" da realidade que quer descrever/justificar –, ela não deixa de produzir seus efeitos: em primeiro plano sobre sua audiência (para convencer da superioridade da nova organização "científica" da vida política nacional), mas também sobre seus produtores – os "especialistas" em todos os problemas brasileiros.

Referências bibliográficas

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(Recebido para publicação em julho de 2003)

Notas

1 CPDOC/FGV. LV c 1938.00.00/1, grifos nossos. Pelas referências cifradas que o documento contém ao "integralismo" e a seus militantes, "armados ideologicamente e dispostos à violência material", é provável que ele tenha sido escrito após o putsch de 10-11 de maio de 1938.

2. Todas as passagens entre aspas são do documento citado. As recomendações do autor incluem até a definição das fontes de recursos para custear essa aparelhagem. Além do orçamento da União, deveria haver uma "caixa de contribuições" recolhidas junto às "classes conservadoras, que receberam sem reservas o Estado Novo, porque nele situam o eixo de uma ordem básica indispensável à expansão de seus interesses". CPDOC/FGV. LV c 1938.00.00/1, p. 7.

3 .Criado pelo Decreto-Lei n. 1.915, de 27/12/1939.

4 Mônica Velloso expressou essa idéia nos seguintes termos: "Dentro do projeto educativo [do Estado Novo] há que se distinguir dois níveis de atuação e estratégia: a do Ministério da Educação (dirigido por Gustavo Capanema) e a do Departamento de Imprensa e Propaganda (...) (encabeçado por Lourival Fontes). Entre essas entidades ocorreria uma espécie de divisão do trabalho, visando atingir diversas clientelas: o Ministério Capanema voltava-se para a formação de uma cultura erudita, preocupando-se com a educação formal; enquanto o DIP buscava, através do controle das comunicações, orientar as manifestações da cultura popular" (Velloso, 1997: 58; grifos nossos).

5. Ver, a propósito, Martins (1987) e Miceli (2001). De um outro ponto de vista, Oliveira (1979).

6. Mencionamos aqui apenas as referências obrigatórias para esse tópico: Lamounier (1991), Santos (1978), Medeiros (1978), Diniz (1978), Debrun (1983) e Pécaut (1990). Para críticas aos três primeiros, ver Moraes (1986). Para uma visão geral, cf. Silva (1998).

7. Nos últimos três meses de publicação, deixou de estar vinculada ao DIP, mas continuou sendo mantida por subvenções oficiais.

8. Com periodicidade mensal, era uma publicação bastante difundida, vendida em bancas de jornal no Rio de Janeiro e em São Paulo (Velloso, 1982: 74). Tinha um orçamento de mais de 100.000 contos, e podia pagar o dobro do que costumavam pagar os outros periódicos a seus colaboradores. Era vendida por um preço baixo, 3.000 réis, aceitava assinantes e a tiragem mensal (de 3.000 cópias) geralmente se esgotava. A revista tinha uma apresentação gráfica cuidadosa, que incluía ilustrações e fotografias (Dagnino, 1985: 344).

9. Ver, além do trabalho já citado de Velloso (1982), Rodrigues (1983), Dagnino (1985) e Gomes (1996). Figueiredo (1969) apenas resume o conteúdo dos artigos publicados em Cultura Política. Bastos (2003) faz uma análise de seus textos sob um ponto de vista muito específico, mas não do periódico em si.

10. Segundo o próprio Almir de Andrade, Cultura Política representava um esforço para a "recuperação intelectual da ideologia do governo", devendo ser "um trabalho mais sério", guiado por uma preocupação mais teórica e analítica que propagandística (cf. Dagnino, 1985: 343). Além disso, as coordenadas gerais do discurso político serão fornecidas por alguns poucos intelectuais mais importantes (como Almir de Andrade, Monte Arrais, Oto Prazeres, Oliveira Vianna, entre outros), que serão repetidos e citados por ideólogos menores em outras centenas de artigos da revista.

11. Partimos de uma definição bastante restrita de ideologia. Definimos ideologia como o conjunto das concepções, idéias, representações, teorias, que se orientam para a estabilização, legitimação ou reprodução da ordem social estabelecida.

12. Dos 124 textos analisados, Almir de Andrade e Paulo Augusto de Figueiredo colaboram com um total de 10 artigos cada um; Monte Arraes, nove artigos; Oto Prazeres, cinco. Menelick de Carvalho, Sílvio Peixoto e Oscar Tenório publicaram três artigos cada um; Azevedo Amaral, dois.

13. No artigo de Sílvio Peixoto (1941: 143), o resumo introdutório chega a criticar explicitamente a posição do autor, indicando os trechos que devem ser desprezados e as considerações merecedoras de crédito: "Talvez se notem em seus comentários um tom demasiado apaixonado, que esta Revista não pode esposar, quer no julgamento que faz de algumas figuras políticas de então, quer na descrição que nos dá da ação reacionária do Governo e das lutas e incidentes da campanha em apreço. (...) Merecem salientar-se, na exposição crítica do autor, as passagens em que ele (...) acentua (...) que é a direção das forças sociais que explica o sentido das ações dos homens. (...) Merece ainda especial atenção o final deste artigo, em que o autor salienta a paralisação da vida econômica e social, como conseqüência das inevitáveis agitações políticas que abalavam a nação".

14. Cultura Política não fornece dados biográficos completos de seus colaboradores, limitando-se a informar sua formação acadêmica e atuação profissional. Em consultas ao Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930, do CPDOC, foram obtidas informações referentes a apenas 12 dos autores selecionados (Almir de Andrade, Monte Arrais, Azevedo Amaral, Pedro Calmon, Castro Costa, Lourival Fontes, Gilberto Freire, Celso Furtado, Sérgio Marinho, Leopoldo Peres, Getúlio Vargas e J. A. Vasconcelos Costa), o que torna inviável, nos limites deste estudo, a realização de uma análise exaustiva de suas trajetórias intelectuais.

15. Entre 1941 e 1945, a Justiça do Trabalho foi uma atividade administrativa, prestada pelo Executivo, e não pelo Judiciário, como ocorre atualmente. O Ministério Público (promotores de justiça e procuradores da República) é até hoje, apesar de sua atual autonomia, ligado ao Poder Executivo.

16. Nei Cidade Palmeiro, professor no Colégio Universitário da Universidade do Brasil; Pedro Calmon, diretor da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil; Roberto Piragibe Fonseca, livre-docente da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil; Luiz Antônio da Costa Carvalho, professor na Faculdade Nacional de Direito na Universidade do Brasil; Olavo Oliveira, professor na Faculdade de Direito do Ceará; Mário Casassanta, professor e reitor na Universidade de Minas Gerais; Mário Orlando de Carvalho, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Faculdade do Rio de Janeiro e funcionário do Banco do Brasil.

17. Joaquim de Almeida Jr., Pedro Manes, Vicente S. Porto, Henrique de Carvalho Simas e Murilo Tavares, todos "alunos de Direito Constitucional do 2o ano da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil" nos anos de 1941 e 1942.

18 . A "Página Acadêmica" foi inaugurada no n. 9 de Cultura Política, em 1941. Era aberta a estudantes de todas as faculdades do país, para a publicação de artigos que versassem sobre qualquer tema – "desde que seus trabalhos se enquadrem no plano de publicações que nos traçamos" –, "no intuito de aproximar melhor a juventude universitária das esferas culturais e governamentais do Brasil". Os primeiros artigos tematizavam problemas jurídicos decorrentes da nova organização constitucional do Brasil, e os seus autores pertenciam "todos ao curso de Direito Constitucional do Prof. Almir de Andrade" (como nos informa o resumo introdutório ao artigo de Almeida, 1941: 231). Desnecessárias as considerações do editor, uma vez que o conteúdo dos artigos em nada diferia das idéias do próprio Almir de Andrade.

19. De acordo com nossa classificação, "bacharéis" são: estudantes (de Direito), professores, advogados atuantes, juízes, procuradores, e inclusive um militar (Sérgio Marinho), que foi professor de Direito Público da Escola Militar. "Beletristas" são: jornalistas, poetas, críticos literários e escritores. Muitas vezes as categorias se confundem, com bacharéis atuando como jornalistas, publicando poemas etc.

20. Autores para os quais não foi possível estabelecer qualquer tipo de relação com o direito ou o jornalismo (por formação ou atuação profissional). Cultura Política não fornece a formação acadêmica de seus colaboradores, o que torna essa classificação provisória, e dependente de ulteriores pesquisas.

21. Interessante notar, a este respeito, que um dos poucos "cientistas" presentes entre os autores selecionados, o sociólogo Gilberto Freire, teve toda a sua formação profissional nos Estados Unidos, e não em universidades brasileiras. Também o economista Celso Furtado não passava à época de mais um bacharel, exercendo funções no DASP.

22. Segundo Monte Arrais, a Carta de 1934 tratou da questão da representação das classes sociais a partir de "uma compreensão não só incompleta, como até incoerente e prejudicial. Dentro do seu critério de enlaçamento do poder político às forças econômicas predominou não só o espírito de distinção das várias atividades colocadas, por tal modo, ao serviço de uma única finalidade, e sim o baralhamento das duas num só amálgama de poder legislativo". Misturando economia e política, o constituinte teria desvalorizado, às vistas da opinião pública, os mandatários políticos, sem dar, contudo, por isso, maior força e expressão aos prepostos das corporações (Arrais, 1943c: 84).

23. O antiliberalismo dos teóricos do Estado Novo deixava ver uma crítica tão radical à democracia quanto a de seus opositores: "A democracia liberal, romântica e utópica, era, na prática, uma caricatura, a máscara sentimental de uma tirania capitalista, dispendiosa e perigosa, que encaminhava as massas para o desespero e a Nação para a anarquia e a escravidão" (Duarte, 1941: 51).

24. Trata-se do "positivismo filosófico" (comteano), que toma a sociologia como ciência prática de organização da sociedade, por oposição ao "positivismo jurídico", que visa a transformar o estudo do direito em ciência (com o mesmo estatuto das ciências naturais) e preconiza, na prática jurídica, a estrita aplicação dos textos legais – deixando de lado a análise da sociedade à qual eles se aplicam.

25. Cinqüenta e oito dos 124 artigos tratam explicitamente do tema. Somente a título de ilustração, ver Arrais (1943b), Belo (1941), Freire (1941) e Prazeres (1941a).

26. "Em certa ocasião, conversando com um ministro de Estado, de país estrangeiro, fez-nos este a seguinte pergunta: "É verdade que Getúlio Vargas incinerou na praça pública os pendões regionais, para que prevalecesse como única bandeira a auriverde?" Como resposta, lhe relatamos o que havíamos visto com tremenda emoção, e com nossos próprios olhos. Aquele ministro, aliás responsável pela pasta da Educação em seu país, afirmou então, entre mostras de grande admiração: "Esse homem é o melhor estadista da época e o grande iniciador da construção de uma grande potência"" (Paya, 1944: 14).

27. "Delineando a estrutura dos poderes, ela [a Constituição de 10 de novembro] institui, assim, como princípios cardeais: a) a supremacia e independência do executivo; b) a subordinação dos ministros ao Chefe de Estado; c) a determinação da esfera de ação correspondente a cada um dos três poderes políticos – executivo, legislativo e judiciário – que declara coordenados, em vez de separados e distintos" (Arrais, 1943a: 13). No mesmo sentido, "no que toca à sua estrutura jurídica, às suas bases constitucionais, o regime de 10 de Novembro assenta em três grandes princípios: I) a unificação do poder político; II) o federalismo centralizado; III) a democracia social e econômica" (Andrade, 1942b: 7).

28. Cf. Belo (1941: 114), Freitas (1942: 215) e Carvalho (1941: 84).

29. "O fortalecimento do Executivo é a única solução para atender aos problemas sociais e econômicos do momento e impedir o advento de ditaduras. (...) O fortalecimento do Executivo é um recurso para a própria salvação da democracia" (Almeida Jr., 1941: 239).

30. Ver Andrade (1941) e Oliveira (1941).

31. Segundo Cândido Duarte (1941: 49), "por forças históricas e atávicas, ou quem sabe se por forças telúricas, somos profundamente personalistas".

 

Autores:

Adriano Nervo Codato

adriano[arroba]ufpr.br

acodato[arroba]terra.com.br

Walter Guandalini Jr.



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