O Templo, o Tempo e o Som: sobre a expressão musical da liturgia latina (período medieval)

Enviado por Manuel Pedro Ferreira


  1. A liturgia cristã
  2. Os monges e o clero secular
  3. O tempo cristão e a dicção do Verbo
  4. Hierarquização sonora: leituras sacras
  5. Hierarquização sonora: melodias gregorianas
  6. Hierarquização sonora: opções interpretativas
  7. Formas de expansão cerimonial independentes dos modos de execução
  8. A secularização da arte polifónica

1.1 A liturgia cristã

Suponho que todos os presentes sabem que o núcleo da Missa cristã é a actualização, através da representação ritual, da Última Ceia, ocupando um sacerdote o lugar de Cristo; e também que o ofício divino é o conjunto dos actos de culto de natureza comunitária, com exclusão da Missa, prestados em momentos pré-determinados ao longo do dia, pela comunidade ou por um grupo que a representa.

A Missa inclui diversos textos fixos, alguns dos quais são próprios deste ou daquele dia " constituindo, portanto, o Próprio da Missa " e outros que se mantêm ao longo do ano, o chamado Ordinário da Missa. O ofício divino, largamente baseado na recitação dos Salmos, distribui-se por diversas horas contadas segundo a prática romana: as Laudes (ao nascer do sol), a prima, a tércia, a sexta (ao meio-dia), a noa, as Vésperas (ao pôr do sol), as Completas (ao deitar) e os Nocturnos ou Matinas (já depois da meia-noite).

Tanto o sacerdote que celebra a Eucaristia como o grupo laico ou clerical que celebra o ofício divino julga contribuir com as suas acções para a protecção da comunidade e a salvação espiritual dos seus membros individuais. Numa sociedade que crê na eficácia do ritual religioso e da oração, a liturgia dá uma protecção efectiva, ao estabelecer publicamente a autoridade de modelos de comportamento, ao permitir que os clérigos seus intervenientes desempenhem funções de mediação e promoção da paz social e ao determinar que os lugares de culto possam servir de refúgio em momentos de crise.

Ao tratarmos do culto litúrgico medieval, estamos pois a tratar de uma actividade que congrega, reforça e permite renovar as energias espirituais da sociedade, e na qual a sociedade europeia foi projectando, ao longo dos séculos, as suas capacidades artísticas e intelectuais. é bom não nos esquecermos que as grandes construções monásticas e catedralícias, sinais ainda visíveis desta projecção, eram, não fins em si mesmos, mas invólucros destinados ás práticas litúrgicas nas quais a comunidade se reconhecia, investimentos indirectos no bem-estar espiritual e no futuro das almas. No interior destas construções, ressoava, vindo de uma outra esfera, o canto litúrgico, canto esse que se cristalizou em vários repertórios, dos quais o mais conhecido, correspondente ao rito romano, é o canto gregoriano. Existiam ou existem ainda outros repertórios, como o hispânico (de rito visigótico), o milanês (de rito ambrosiano), etc., repertórios esses que comungam todos dos princípios gerais de que será aqui questão.

1.2 Os monges e o clero secular

A liturgia das catedrais, tal como foi praticada na baixa Idade Média e no Renascimento, foi progressivamente elaborada entre os séculos IV e VIII com base no culto público prestado pela comunidade eclesial, centrado nas Laudes e nas Vésperas, mas enriquecido e modificado pela influência monástica. Devem-se, de facto, á influência monástica o carácter congregacional das horas menores; a proeminência da salmodia, entendida como ruminação mental, em todas as horas do ofício divino; e a institucionalização de uma longa vigília nocturna quotidiana, fisicamente dura e selectiva. Esta fusão do culto público prestado pela comunidade e de práticas devocionais e ascéticas de origem monástica foi sustentada pela constituição de um corpo eclesial permanente enraizado na, e ao serviço da, comunidade urbana, o que, por sua vez, permitiu a emergência de especialistas em canto litúrgico, os cantores da schola, submetidos á autoridade do chantre.

No contexto histórico do Império Franco, foi a partir da corte e das catedrais que se lançou um ambicioso programa de reformas que levou á substituição em toda a extensão do Império da liturgia galicana pela liturgia romano-franca, e também á imposição nos mosteiros da regra beneditina numa versão fortemente ritualizada. Ao longo movimento de interpenetração entre capítulo (ou cabido) catedralício e comunidade de tipo monástico, seguiu-se assim, do século IX em diante, e não obstante a identidade genérica do culto católico, um movimento de afastamento, que se traduziu na estabilização de dois tipos de ordenação litúrgica, o cursus secular, seguido pelas igrejas diocesanas, e o monástico, seguido nos mosteiros (embora no caso da maior parte das igrejas paroquiais, como na maior parte dos priorados monásticos, esse cursus fosse praticado de forma muito parcial e simplificada).

A distinção mais evidente entre estes dois tipos reside no número de lições e de peças de canto que, nos domingos e festividades, se incluem em cada um dos três «nocturnos» que compõem a vigília de Matinas: três lições e três responsórios por «nocturno» na vigília secular; quatro, no caso da vigília monástica. Há ainda outras diferenças, relativas, nomeadamente, á escolha, ordenação e número dos salmos cantados, á variação ou estabilidade dos salmos nas horas menores e á estrutura da hora de Completas; mas estas diferenças não impedem que, por regra, a liturgia de um mosteiro se baseie originalmente na da catedral da sua diocese, com as adaptações necessárias.


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