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A segunda tese sobre a universidade veio a público em meados do século XX. Trata-se da concepção do filósofo espanhol Ortega y Gasset. Para ele a universidade tem a função de praticar as atividades que se dividem em quatro perspectivas, sendo as de "transmissão da cultura; ensino das profissões; investigação científica e educação dos novos homens de ciência" (ORTEGA Y GASSET apud SANTOS, 1995: 188).
O terceiro modo de compreender os objetivos da universidade veio se formando desde os anos de 1960. Trata-se daquela tese expressa no relatório da OCDE, de 1987. Este documento atribui uma dezena de funções á universidade, compreendendo a educação geral e pós-secundária, a pesquisa, a preparação de mão-de-obra qualificada, oferecer educação e treinamentos altamente especializados, encaminhar mecanismos de seleção para empregos de alto nível por meio de credenciamento, fazer a mobilidade social dos filhos da classe trabalhadora, prestar serviços á comunidade e á região onde se vê inserida, oferecer modelos de políticas públicas nacionais, além de possibilitar a preparação para o desempenho de papéis de liderança social.
Em decorrência dessas múltiplas atribuições, e assoberbada de problemas causados pelos interesses contrários que a polivalência acarreta ao atravessá-la, a universidade vive uma crise de hegemonia, legitimidade e institucional. Nas palavras do autor:
"A universidade sofre uma crise de hegemonia na medida em que a sua incapacidade para desempenhar cabalmente funções contraditórias leva os grupos sociais mais atingidos pelo seu défice funcional ou o Estado em nome deles a procurar meios alternativos de atingir os seus objetivos. (...) A universidade sofre uma crise de legitimidade na medida em que se torna socialmente visível a falência dos objectivos colectivos assumidos. (...) A universidade sofre uma crise institucional na medida em que a sua especificidade organizativa é posta em causa e se lhe pretende impor modelos organizativos vigentes noutras instituições tidas por mais eficientes" (SANTOS, 1995: 190).
Nesse sentido, ao que indica Santos, a universidade entra em crise pari passu ao desencadear do processo de multiplicação de seus fins, não sendo possível constatar razões que lhe sejam suficientes á sua construção identitária.
Chauí (1999) fala da universidade operacional. Esse tipo de universidade é fruto da modernização e racionalização do Estado. O pressuposto ideológico dessa proposição é o que expressa o entendimento de que o mercado é o portador da racionalidade necessária ao bem-estar da República, o qual deve ocorrer sob o signo da "flexibilização".
"Na linguagem do Ministério da Educação, "flexibilizar" significa: 1) eliminar o regime único de trabalho, o concurso público e a dedicação exclusiva, substituindo-os por "contratos flexíveis", isto é, temporários e precários; 2) simplificar os processos de compras (as licitações), a gestão financeira e a prestação de contas (sobretudo para proteção das chamadas "outras fontes de financiamento", que não pretendem se ver publicamente expostas e controladas); 3) adaptar os currículos de graduação e pós-graduação ás necessidades profissionais das diferentes regiões do país, isto é, ás demandas das empresas locais (aliás, é sistemática nos textos da reforma referentes aos serviços a identificação entre "social" e "empresarial"); 4) separar docência e pesquisa, deixando a primeira na universidade e deslocando a segunda para centros autônomos" (CHAUÍ, 1999: 6).
Em outras palavras, a justificativa para a existência da universidade operacional assenta-se no fato de ela ser concebida e gerida segundo a racionalidade do mercado, em conformidade com as regras do capitalismo. Nessa perspectiva, segundo a autora, a universidade perde o status de "instituição" e se consolida como "organização social", cuja instrumentalidade a coloca na condição de atuar para alcançar fins particulares, voltada para si mesma, ao contrário do que ocorreria se permanecesse como instituição social. Mas isso ela deixa de ser assim caracterizada ao perder sua natureza de instituição e ao ganhar a condição de organismo, uma vez que a "organização pertence á ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo", noção que põe em risco a autonomia universitária.
"Ora, desde o seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber diante da religião e do Estado, portanto na idéia de um reconhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ela, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão" (CHAUÍ, 1999: 7).
A universidade laica, socialmente referenciada, de qualidade, mantida por meio de impostos pagos pelo cidadão só é possível com base na autonomia. Essa condição para que a universidade cumpra seu papel surgiu na Europa, na época em que a Igreja e o Estado, em comum união, mantinham o monopólio da produção e transmissão do conhecimento. Não atender ás vontades dessas instituições significava confusão. Às vezes, morte. Foi o célebre caso de Giordano Bruno. Por causa disso Galileu quase morreu, tendo de fazer de conta que renegava ás próprias idéias, afim de que os homens da Igreja-Estado poupassem sua vida (MORENO, 2004).
E se é certo que hoje não corremos mais o risco de ver algum intelectual perecer na fogueira, aí está a universidade operacional para esvaziar a substância daquilo que entendemos por autonomia universitária, passando a valer uma concepção heterônoma, com base em regras que sequer brotam do mundo da cultura, mas dos diversos mercados que têm interesses diversos voltados para as atividades universitárias.
"A heteronomia da universidade autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de horas/aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios etc. Virada para o próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não age. Não surpreende, então, que esse operar co-opere para sua contínua desmoralização pública e degradação interna" (CHAUÍ, 1999: 8).
Como chegamos a esse estado? Segundo a autora, podemos identificar na história três tipos de universidades: a clássica, a funcional, e esta que ela discute, a operacional. Enquanto a clássica estava comprometida com o conhecimento, a funcional passou a existir em razão das demandas do mercado de trabalho, voltada para a preparação da mão-de-obra necessária á manutenção da produtividade do sistema capitalista. Já a universidade operacional, na verdade uma organização social, além de se adaptar ao mercado, centra-se em si mesma, constituindo-se em uma estrutura de gestão e arbitragem de contratos.
Desse modo, a universidade operacional está do lado oposto daquilo que assegura a constituição brasileira sobre a autonomia universitária, além de suas três frentes de atividades: ensino, pesquisa e extensão. Dessa última, nem se ouve falar. A pesquisa é outra atividade pouco valorizada, quase nula, no âmbito dessa organização social. Resta, muitas vezes aligeirado, o campo do ensino, mas longe dos processos educativos associados á aquisição de um estilo existencial (SAVATER, 2000).
Desse modo, o sentido dessa caracterização feita por Chauí, preocupada com a instrumentalização da universidade, aponta para a visão que se aproxima daquilo que Santos descreveu como crise da universidade, premida entre uma sociedade de direitos e uma sociedade de mercado, entre a proposta de pesquisa, o ensino e a extensão voltados para a garantia de processos de humanização e outra, cujo escopo maior é o de atender ao mercado.
Se atentarmos então para a lógica que preside o trato da educação na atualidade, vamos perceber que está sendo criado o confronto entre direito versus mercadoria. Caso que O REUNI ilustra, á medida que prevê um tipo de expansão sem investimentos. Desse modo, mais uma vez, a teoria do Estado mínimo prevalece.
Nesse caso, é de se considerar que os propósitos do REUNI até podem ser viáveis. Porém, se não houver um redirecionamento no uso dos recursos públicos para bancar as atividades de expansão que ele assume, corremos o risco de ver o REUNI cair na conta daqueles projetos que, ainda que bem pensados e intencionados, nada puderam alcançar porque, paralelo a eles, o Estado se fez indiferente aos direitos sociais.
Talvez o papel da universidade em uma época como a que vivemos seja exatamente a de fazer com que aprofundemos nossa percepção da história vivida cotidianamente. Nesse sentido, é bastante sintomático o fato de que, quase simultaneamente á divulgação na mídia de pesquisas indicando a diminuição de formandos nas universidades federais, a nós é apresentado o REUNI.
Mas, será esse projeto uma reação ao abandono dos cursos pelos universitários das federais? Será ele mais um paliativo para desviar nossa atenção em vez de discutir nosso ethos constituinte, o qual configura nossa sociedade brasileira como desigual, autoritária, excludente e alinhada aos imperativos da atual fase do sistema capitalista? O REUNI é apenas o PROUNI das universidades federais (e, por analogia, das públicas em geral?).
Essas perguntas não nos parecem fora de lugar. Estão onde devem estar: ali onde a exigência entre uma sociedade de direitos e uma sociedade de mercados pode fazer a diferença na história que estamos a fazer, bem como sobre o legado que deixaremos para aqueles que, depois de nós, também terão de se virar por um lugar ao sol no âmbito da educação formal. Tomara que a brutal desigualdade social que nos golpeia diariamente não seja a única herança que temos a lhes deixar.
Sobre isso, a situação no âmbito de certos setores da academia e nos da cultura parece dramática. Não terá o silêncio tomado o lugar de nossas preocupações e abafado nossa voz, fazendo-nos alheios á tarefa de contribuir para a formação crítica da opinião pública nacional?
Tendo a responder afirmativamente essa questão, pois, enquanto tínhamos um projeto de esquerda para o Brasil, bebemos nele e dele fizemos nossa fonte de material para criticar o projeto do capital. Tão logo essa pretensa esquerda chegou ao poder, a sensação foi a de que ficamos como o menino que perdeu o doce, e, em lugar de reagirmos e denunciarmos a farsa, não, caímos no estracismo voluntário e cômodo em troca de benesses mitigadas do sistema (aí estão as GED da vida para mostrar isso).
Onde foi parar o debate e as ações e as práticas questionadoras dos modelos societários tirânicos alimentados pelo capitalismo? Cadê a mobilização em prol de outro sistema no qual o capital, o mercado e as empresas não falem mais alto que o Estado e a sociedade civil? Em que a mercadoria não valha mais que os direitos sociais? Em que a cidadania não se identifique com o ato de consumir?
Quem dera que agora, com o REUNI, não nos calássemos mais uma vez!
Referências Bibliográficas
ARMIJOS PALÁCIOS, G. Reuni: a hora dos deserdados. Jornal Opção On-Line, de 07 a 13 de outubro de 2007. Disponível em <http://www.jornalopcao.com.br/>. Acesso em: 07.10.2007.
CHAUÍ, M. A universidade operacional. Revista Adunicamp - desafios da universidade pública. Associação de Docentes da Unicamp, ano 01, n. 01, jun. 1999, p. 06-09.
MARIZ, T. F. REUNI: para onde caminha a universidade? Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Disponível em: <http://www.andifes.org.br/news.php#5716>. Acesso: 06.10.2007
MORENO, A. de R. A autonomia universitária e o movimento docente. Revista Adunicamp - reforma ou demolição? Campinas: Associação de Docentes da Unicamp, ano 06, n. 02, set. 2004, p. 16-21.
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
SAVATER, F. O valor de Educar. Trad. M. Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Publicado na Revista Espaço Acadêmico
Autor:
Wilson Correia
Doutor em Educação pela UNICAMP. é mestre em Educação pela UFU. Cursou especialização em Psicopedagogia pela UFG. Graduou-se em Filosofia pela UCG. é professor universitário. é autor de Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006
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