A metamorfose das armas do rei de Portugal na dinastia de Avis



Durante toda a história do Santo Império Romano Germânico nunca a Coroa conseguiu impor de facto o seu poder aos príncipes feudais.

António Sérgio, 1961

Pelo que nos ornatos, e mais peças, de que se compuzeraõ as Armas, em que teve principio a Armaria, naõ se lhe encontra mayor antiguidade, em que se possa fixamente assentar, que o decimo seculo.

António Caetano e Sousa, 1738

la naturalisation des structures et du sens est désormais rendue possible par le développement d"une dynamique des formes, c"est-á-dire d"une morphodynamique.

Jean Petitot-Cocorda, 1992

Desde o feudalismo, e de forma geral nas monarquias, as armas reais coincidiam com a representação simbólica dos Estados de que o soberano era titular. O Escudo de Armas é o objecto de estudo da Heráldica, tida como uma estenografia da História e ciência nobre (Slater, 2005) e pode ser definido como um sistema hereditário de cores e símbolos, nascido no escudo de guerra medieval, para identificação pessoal.

A Heráldica principiou no século XII, entendida como a arte de formar e descrever  brasões de armas. O termo símbolo pode ser objecto de alguma contestação, na medida em existe uma corrente de opinião que considera o símbolo arbitrário. Ora todos os elementos constitutivos dos escudos de armas são portadores de significado, e melhor seria designar o Escudo de Armas como um signo, revelando a tricotomia inerente, conforme Peirce enunciou, expressa numa relação sintáctica -o arranjo dos elementos e das suas cores -, uma dimensão semântica -relativa ao significado -e uma dimensão pragmática adstricta a uma função social e política. Neste contexto o escudo de armas também é um significante e podemos ensaiar uma interpretação morfodinâmica, centrada na sua metamorfose.

Durante a dinastia de Avis, iniciada com a eleição e aclamação de D. João I em 1385, e terminada com a morte do cardeal e rei D. Henrique em 1580, o escudo de armas do rei de Portugal sofreu uma transformação notável: a adjunção da coroa no reinado de D. Duarte, inicialmente uma coroa real aberta -ou seja uma coroa ducal elaborada -que progressivamente termina fechada por arcos, encimada pela cruz, simbolizando a coroa imperial. A apropriação simbólica da coroa imperial por parte de reis e princípes da Europa é o assunto que nos propomos contribuir para desvendar, centrando-nos na dinastia de Avis como esteio narrativo, ao longo de um percurso iconográfico na Europa medieval.

Do legado da dinastia Afonsina até D. Duarte

O padrão herdado do final da dinastia Afonsina está bem expresso neste selo de D. Fernando, de 1373, de acordo a História Genealógica da Casa Real Portuguesa de António Caetano de Sousa (1738, 2007), completado com uma moeda da mesma época.

Fig. 1-Selo (1373) de D. Fernando, esboço nº XXXVI de Sousa (1738) e  Meia Dobra do mesmo soberano.

O selo, de chumbo, relativo a uma doação feita á Infante D. Brites em 1373, apresenta o escudo de armas de Portugal, circular, em que o elemento central é a cruz, formada pelas quinas, ou cinco escudetes, onde os laterais estão horizontais; a cercadura de castelos, inserida no escudo desde Afonso III, é encimada pela cruz de Cristo. Conforme se pode ver, numa face da moeda, o soberano ostenta a coroa real, e o escudo com as quinas, enquanto na outra face se encontra outro escudo de armas, substancialmente diferente. A disjunção coroa/escudo dissipa-se com a entrada em cena do escudo de armas de D. Duarte, cerca de sessenta anos depois. O selo abaixo ilustrado, também descrito em Sousa (1738), relativo a doações da casa de Bragança, data de 1434.

Fig. 2 - Selo Real de Abril de 1434, esboço nº LIX de Sousa (1738)

Podemos pois, situar com precisão -entre 1433 e 1434 -no início do reinado de D. Duarte, a entrada da coroa encimando o escudo de armas do rei de Portugal. Vamos procurar contextualizar essa mudança no âmbito da Europa medieval.

Fig 3 - D. Duarte, o Eloquente. O escudo de armas de Portugal está encimado com a coroa real, que o soberano também ostenta, no Trono, entre o Escudo de Armas e a Esfera Armilar.

Sobre a diacronia e a cronologia da coroa na Europa medieval

A coroa imperial germânica tem a sua origem na coroa imperial bizantina, que por sua vez remonta ao diadema imperial romano, por um lado, e á mitra ou chapéu, mais tarde assimilada como mitra episcopal e tiara papal. Terá sido Frederico III, que, cerca de 1442, terá reunido num só objecto coroa e mitra, a coroa fechada por arcos e encimada por globo e cruz.

Fig. 4 - Manuscrito do século XV, onde se mostra o imperador romano-germânico no trono, de coroa fechada encimada por cruz, entre dois eleitores, representando o poder espiritual e o poder temporal.

Anteriormente a coroa imperial germânica era aberta, um diadema formado por oito placas articuladas, a menos de um arco que se unia á cruz. O exemplar ainda hoje existente em Viena, presume-se que remonte a Otão o Grande, datado de cerca de 980, em que a cruz provém de Henrique II (m. 1024), tendo o arco sido acrescentado pelo imperador Conrad II (m. 1039). Carlos Magno, rei dos Francos, coroado imperador dos Romanos em no ano 800 é representado por Albrecht Durer, cerca de 1600, usando essa coroa. Um poeta anónimo, em 799, designou o futuro imperador, como rex pater Europae.


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