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Coleccionar com F. Frade. Especialmente na Guiné-Bissau (página 2)

Maria Estela Guedes

Após a morte de Fernando Frade, a família entregou os seus livros á biblioteca do Museu Bocage, no Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Eis outra colecção de palavras, na qual assume valor maior uma série de volumes do Grassé. Julgo que Fernando Frade foi até agora o único português a colaborar no monumental "Traité de Zoologie", na origem dirigido por P.-P. Grassé, colecção de muitos volumes que continuam a ser publicados. Isso aconteceu por Fernando Frade ter sido, no seu tempo, a máxima autoridade mundial em elefantes africanos. Apesar de os ter observado no terreno, sobretudo em Moçambique, o seu estudo foi feito mais directa e longamente a partir dos indivíduos que integravam as colecções vivas do Jardim Zoológico de Lisboa.

Outra importante colecção de palavras é o conjunto de decretos e leis conservacionistas, publicados na esfera da acção desenvolvida por Fernando Frade. Em meados do século XX, manifesta-se na ciência o interesse pela conservação, não só na Europa como nas colónias, com a correlata vontade de criar parques e reservas. Entre nós, o facto assume relevo político singular, ao contrariar a clausura do governo de Salazar, em que Portugal estava voltado de costas para o estrangeiro. A conservação das espécies ultrapassa as fronteiras políticas, exigindo trabalho conjunto por parte dos países que partilham uma mesma região biogeográfica. Neste domínio como noutros, a ciência cria meios privilegiados para troca de informações entre diversos países e instâncias de poder. Considerando a Guiné, os principais interlocutores eram a França e a Inglaterra, dada a proximidade com o Senegal, a Gâmbia e a Guiné Francesa. A legislação previa que Fernando Frade e sua equipa, na Guiné, escolhessem e delimitassem as fronteiras de um território onde pudesse criar-se o Parque Dr. Vieira Machado. Tal Parque, receio, não chegou a transitar da colecção das palavras para a colecção dos estabelecimentos reais, o que aliás retira ainda mais da sombra a circunstância de a ciência promover espaços de comunicação nos quais as colecções de palavras, ao cruzarem o nacional com o estrangeiro, podem assumir um estatuto supra-nacional.

Colecções vivas

Reservas, parques, jardins zoológicos e botânicos, etc., são lugares onde abrigamos colecções vivas. A Missão Zoológica da Guiné tinha objectivos muito práticos, mais empenhados nas colecções vivas do que nas destinadas á frascaria e gavetas de peles do Centro de Zoologia. A apicultura e a pesca assumiam entre estas colecções a maior importância, havia necessidade de estabelecer colmeias e sistemas de pesca eficazes.

O decreto que cria a Missão Zoológica da Guiné é bastante minucioso, ao declarar que "a missão promoverá na colónia, sempre que possível, a captura de animais vivos destinados a estudos biológicos e a exposição no Jardim Zoológico de Lisboa" (Frade, 1946). Não temos conhecimento de estudos biológicos realizados com os animais vivos, aqui bem separados dos que se destinavam ao Jardim Zoológico. Porém, como já vimos, as colecções de leis falam da instalação de tanques piscícolas na fazenda Experimental de Fá. Pensamos que a captura de outras espécies de animais vivos, não mencionadas, se destinaria, tal como a dos peixes, á selecção e apuramento de raças.

Nas colecções vivas ainda é preciso referir a marcação e recaptura de atuns. A Biologia da Pesca, em Portugal, alcançou nível internacional com Fernando Frade, segundo Postel, um dos seus co-autores estrangeiros. Com os atuns temos em cena colecções de animais vivos em liberdade. A técnica de capturar animais para os anilhar ou marcar, devolvendo-os de seguida á sua liberdade, para mais tarde serem recapturados, fornece conhecimentos que de outra forma dificilmente se obteriam. Assim, a recaptura de atuns marcados permitiu a Fernando Frade publicar vários artigos sobre as suas migrações.

Por fim, a "língua das aves"

É curiosa a actividade científica de Fernando Frade desenvolvida na qualidade de vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Além da análise da flora e fauna das águas de abastecimento, ele promoveu várias exposições de floricultura, e participou numa das mais importantes obras do Estado Novo, em Lisboa, a florestação da Serra de Monsanto, antes disso conhecida como "a peladinha" (Frade, 1940). Uma das exposições de floricultura decorreu durante a campanha Pró-Ave, de protecção ás aves em Portugal. Em palestra proferida na Rádio Nacional, declara Fernando Frade a existência de uma língua das aves, uma vez que, escreve ele, os anjos falam pela boca das avezinhas. Este esotérico tema aflora aqui e ali nos textos do distinto zoólogo, ás vezes mesmo nos títulos. é o caso de "Flores portuguesas, retomai o vosso lugar". Como diriam os Bons Primos da Maçonaria Florestal Carbonária, "Flores portuguesas, retomai o vosso canteiro".

Repetindo o que não longe escrevi, a ciência tem meios para criar espaços de comunicação próprios, que por vezes servem para transmitir informação supra-nacional. Se há diálogos clandestinos no texto normativo é porque não existe liberdade de expressão. Foi o que precisamente aconteceu durante o mais largo período de actividade de Fernando Frade, coincidente com os quarenta anos de governo de Salazar, caracterizados pela ditadura, com inerente repressão do livre pensamento próprio dos cientistas e outros intelectuais, através da censura, do exílio e da prisão.

Para complementar a minha comunicação a este colóquio sobre coleccionismo, também eu reuni uma colecção, a partir de outras, relacionadas com a Missão Zoológica da Guiné. é um catálogo das aves da Guiné-Bissau, em linha no TriploV (http://triplov.com/aves_guine_bissau). Tem a particularidade de as ilustrações das espécies serem selos na sua maioria, o que revela um campo de interacção entre a filatelia e a ciência, que foi atraente analisar, tanto mais que a filatelia da Guiné-Bissau parece conhecer no país mais espécies do que os ornitólogos...

Bibliografia

FRADE, Fernando & DENTINHO, S. (1935) - Marcação de atuns na costa do Algarve. Contribuição portuguesa para o estudo dos movimentos migratórios do atum ( Thunnus thynnus ). Arquivos do Museu Bocage, 6, Lisboa.

FRADE, Fernando (1940) - Flores portuguesas, retomai o vosso lugar. Rev. Municipal, 4, Lisboa.1ª Exposição Nacional de Floricultura, 1940.

FRADE, Fernando (1942) - Protecção á natureza e a regulamentação da caça nas colónias portuguesas. Act. I Congr. Nac. Cien. Nat., I, Lisboa, 1941. Lisboa.

FRADE, F. Amélia Bacelar & Bernardo Gonçalves (1946) - Relatório da missão zoológica e contribuições para o conhecimento da fauna da Guiné Portuguesa. Separata dos Anais da Junta de Investigações Coloniais, Lisboa, Vol. I. Trabalhos da Missão Zoológica da Guiné (1-5): 259-416.

FRADE, Fernando (1966) - Ocorrência, significação e "controle" de seres vivos nos sistemas de distribuição de água. Bolm. Com. Fisc. Águas, 46. Lisboa, 1966.

FRADE, Fernando (1973) - Palestra. In: Livro de homenagem ao prof. Fernando Frade por ocasião do seu 70º aniversário. Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa. XX, 422 p. Instituto de Investigação Científica Tropical.

FRADE, F. (2005) - Lista das publicações e outros trabalhos. Em linha em:
http://triplov.com/hist_fil_ciencia/fernando_frade/index.htm

POSTEL, E. (1973) - Thons atlantiques et chercheurs portugais. In: Livro de homenagem ao prof. Fernando Frade por ocasião do seu 70º aniversário. Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa. XX: 371-381. Instituto de Investigação Científica Tropical.

Comunicação apresentada ao Colóquio Internacional Espírito do Colecionismo: Ciência, Arte, Cultura, realizado de 20 a 31 de Agosto de 2005, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Iniciativa do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do ILEA/UFRGS e de outros centros da Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Trabalho integrado numa viagem a Curitiba patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian.

 

 

 

Autor:

Maria Estela Guedes
estela[arroba]triplov.com

Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade
da Universidade de Lisboa (CICTSUL)



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