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António Faria & Norton de Matos (página 2)

Maria Estela Guedes

Nós, hoje, não sabemos o que se passou. Aqueles que já não sofreram a censura, nem as perseguições, não têm conhecimento cabal dos factos. Não é a presença dos testemunhos históricos, nem dos papelinhos castradores, não é sequer a visita aos pavilhões do Tarrafal, que nos faz ter a consciência do passado. O nosso saber é livresco, por isso distanciado, como se o Império Colonial Português tivesse sido uma fábula, ums série de televisão. Não é possível viver a vida dos outros, o conhecimento real só o temos daquilo que nos afectou a nós. E porque de facto não fomos censurados, não recebemos papelinhos, não estivemos presos no Tarrafal nem em Peniche, há uma dimensão da História e da própria vida que nos escapa, entre outras, claro: essa é a dimensão da resistência, da oposição subreptícia, da guerra movida clandestinamente contra o regime de Salazar, e, de resto, de todas as guerras movidas contra regimes opressores, ao longo da História.

Este problema é o que me tem ocupado há anos, embora só o vá descobrindo a passo e passo. Ele implica que o discurso não é o que parece, ou não é apenas a sua aparência. O que os autores escrevem, em situação de risco, não é exactamente igual ao que estou a escrever agora, em que não preciso de me proteger a mim, nem a companheiros, nem ao próprio artigo. Os textos publicados em situação de clandestinidade precisam de ajudas para a sua compreensão, pois estão cheios de códigos segundos e terceiros.

A dado passo, António Faria refere-se ao "fabrico de factos históricos", e evoca situações que são familiares aos que me costumam ler. Remetem para a presença de erros deliberados nos textos científicos. Varrer ilhas do mapa (2), deslocar rios de São Tomé para Angola (3), situar Coimbra na região do Douro (4), são máscaras vulgares na geografia dos naturalistas, entre manobras de outros tipos, como é a teatral ocultação da identidade de certos autores (5). Escreve António Faria:

"A noção de Império Colonial Português atinge proporções fantásticas. Desde a menção criteriosa e indesmentível a cidades que não existiam, contudo, marcadas com grossos círculos nos mapas coloridos, até á encenação que envolveu uma cenografia feérica surpreendente á beira do Tejo em 1940 e uma catarata de lições por insignes académicos que exibiram provas históricas igualmente indesmentíveis e criteriosas, que enchem dezenas de grossos volumes, quando a Europa se debatia nos estertores do holocausto e na 2ª Grande Guerra (1939-1945), torna-se ainda hoje muito difícil ser claro e sereno sobre o que significa o fabrico dos factos históricos. Em relação a essa realidade existe uma «filosofia» portuguesa tão mística como a fantasia política produzida nesse período, onde se torna difícil distinguir o que é «poesia» e o que é teoria ou doutrina original."

António Faria chama "poesia" ao erro deliberado e revela que a esse respeito há um comportamento social que designa por "filosofia". Da minha parte, embora compreenda que em tempo de guerra todos os meios se usam para derrubar o adversário, e embora saiba que os intelectuais toda a vida combateram com as suas armas, as do intelecto, entendo que chegou a hora de revelar os factos, de pôr ponto final nesta subversão crónica, ou a população continuará a ser deseducada. Textos em que existam cidades-fantasma, ou mapas cujas localidades estejam erradas, ludibriam os leitores. Ludibriam de várias maneiras, e não apenas por o leitor, face a um corpus histórico fantasioso, assimilar como falsa, por exemplo, a informação de que S. Frei Gil estudou Magia numa universidade subterrânea em Toledo. Dias depois de ter posto em linha o artigo em que divulgo esta informação (6), piamente convencida de que a universidade subterrânea era uma fantasia, venho a saber que existe de facto uma Toledo subterrânea, cuja superfície supera a da Toledo construída em cima da terra. Essa é a cidade dos perseguidos pelos cruzados, pela Inquisição, pelos déspotas de todos os tempos. Na Toledo clandestina há mesquitas e sinagogas, ambas com função idêntica á dos mosteiros, em tempos em que o clero monopolizava o ensino.

Face aos textos históricos ou científicos em que existem códigos clandestinos, o leitor é apanhado numa armadilha em que deixa de saber distinguir a realidade da fantasia. Por muito que esses métodos tenham servido para proteger heróis e os seus livros, há necessidade urgente de criar dispositivos de alerta que evitem a deseducação. é preciso ver claramente todas as cidades clandestinas debaixo das que não passam de máscaras de Carnaval. Sem isso, a História é uma ficção.

Nos anos 30-40 do século passado, o Império Colonial Português empreendeu iniciativas da mais faustosa propaganda, talvez por se sentir ameaçado, porque ia começar o fim dos impérios coloniais europeus. Aliás essa é outra linha do pensamento de António Faria: Etiologia de um Estado e Fim do Império. E então temos a Exposição do Mundo Português, congressos, outras exposições, etc.. No Congresso de Ciências Naturais, em 1935, estiveram em Lisboa centenas de cientistas estrangeiros, entre os quais é notória a presença dos alemães. Experimente consultar os índices dos livros de actas (7) para ver como se fez, nos anos trinta, um congresso espectacular, que não se destinou a proporcionar currículo a uma maioria de principiantes, sim a épater le bourgeois com a nata da Zoologia mundial. Se esta nata fez de facto ciência ou se andou a fantasiar cidades nos mapas, para subverter o regime ditatorial e alertar os confrades de todo o mundo, é o que resta saber.

Também foi para épater le bourgeois que se realizou, cinco anos depois, a Exposição do Mundo Português. A respeito desta, já mostrei que, pelo menos no capítulo da Zoologia, ela resultou numa bofetada ao Império Colonial (8). Na Sala do Museu Bocage, ao contrário do que se esperaria, nada do que é importante ainda hoje para a ciência foi exibido, nada de português nem específico das colónias se mostrou. A exposição só continha insignificâncias e a maior parte das espécies que apresentou estavam concentradas dentro de uma redoma ornamental: colibris do Brasil. A língua das aves fez no caso uma execelente profecia da queda do Império Colonial: tal como o Brasil já se tinha perdido, assim as outras colónias viriam a tornar-se independentes.

Resumindo: nem todos os intelectuais que participaram nestas festividades de que fala António Faria o fizeram de cara á mostra. Eles usaram máscara, o próprio espectáculo está ainda mascarado, num grandioso desfile de Carnaval. Desde tempos remotos, o discurso produzido em situação de censura e opressão, que nós assimilamos como se fosse uma face, é na realidade um duplo, uma máscara. E nós não a vemos, estamos desarmados pela falta de experiência nas subterrâneas cidades da vida clandestina.

Essa experiência, Norton de Matos teve-a de certeza. Ele soube qual o significado subterrâneo das esplendorosas exposições, pois esteve ligado a elas. Qualquer homem culto, qualquer governador, de quem se exigia diligenciasse para enviar exemplares botânicos, zoológicos e mineralógicos para os museus, sabia que nada do que mandara estava a ser exibido. Ele colaborou na Exposição, pode ter sido um dos agentes da subversão: onde as espécies zoológicas endémicas de Angola? De Angola foi mostrado o que não tem valor para a ciência: o que existe em Angola, em Portugal e em todo o lado.

Como António Faria revela na conclusão do seu livro, Norton de Matos desenvolveu em Angola um notável e vasto trabalho civilizador, norteado pelo catecismo maçónico. Entre outras medidas, promovendo a instrução, ao fundar o primeiro liceu de Angola e ao abrir escolas primárias; mandando construir milhares de quilómetros de estrada; criando uma instituição de assistência social aos indígenas. Este trabalho é reconhecido pelos democratas, razão pela qual o apoiam na candidatura á presidência da República. Mas é subversivo para a ditadura, que pugnava pela ignorância do povo como suporte da sua sobrevivência.

O catecismo da liberdade, igualdade e fraternidade entra em luta com o flagelo da época em África, uma escravatura que já não tem este nome mas mantém em servidão os trabalhadores. Na iniciação maçónica, Norton de Matos jurara combater a escravatura, por isso essa será uma das suas prioridades em Angola. Um dos meios de combater seja que flagelo for é a instrução. Por isso ela não é importante só para que os nativos pudessem um dia gerir a sua própria independência, ela também é necessária para aprendermos a vencer os escolhos dos textos escritos em tempos de censura.

(1) http://www.republica.pt/3/nmatos.html

(2) François Leguat, Nuno Marques Peiriço & Maria Estela Guedes, Do Dodó á Fénix. In: "Discursos e Práticas Alquímicas". Vol. I. Hugin Editores, Lisboa, 2001. Em linha no TriploV: http://triplov.com/dodo/alqmeg.htm

(3) "Francisco Newton, Cartas da Nova Atlântida": http://triplov.com/newton/

(4) "Coimbra, no Douro...":
http://triplov.com/hist_fil_ciencia/augusto_nobre/meg.htm

(5) Filhos da mãe, por Miss Pimb. In: Maria Estela Guedes, "Lápis de Carvão", Lisboa, Apenas Livros Editora, 2005. Em linha no TriploV.

(6) Estela Guedes, "S. Frei Gil, um santo carbonário":
http://triplov.com/ista/retratos_de_familia/frei_gil/index.htm

(7) http://triplov.com/biblos/arquivos/congres/index.html

(8) http://triplov.com/newton/polemica/estela.html

Extractos da conclusão, págs. 95-99.
Não incluídas as notas.

In:
ANTÓNIO FARIA
O Real e o Possível
Norton de Matos, Etiologia de um Estado
e Fim do Império
Ed. do Grémio Lusitano
Apoio da Câmara Municipal
de Ponte de Lima
Lisboa, 2004, 118 págs

O relatório (1), concluído em 10 de Fevereiro de 1924, contém o fundamento de todas as intervenções futuras de Norton de Matos. Não se trata de um projecto de salvaguarda do sistema em vigor mas uma proposta de reforço de um poder que hipostasiava o Estado para defesa do indivíduo, cujos interesses se plasmavam nos do Estado. Era uma solução plausível para evitar a desagregação da sociedade portuguesa e a situação de calamitosa miséria que se vivia em Portugal. Seria uma forma poética de negar uma situação de facto para poder afirmar um pensamento autêntico e fazer viver qualquer coisa - uma sociedade - que não existia senão como possibilidade e ao alcance de ser real. Na verdade, a partir de uma «prestação de contas» administrativa, estritamente burocrática, determinante para si e para a República Portuguesa, defendia o papel do indivíduo, da famíia, da propriedade familiar, da tradição portuguesa e africana numa sociedade plausível, onde as desigualdades materiais seriam superadas e necessidade elementares podiam ser satisfeitas a contento desde que devidamente regulamentadas e corrigidas com Justiça. O seu projecto implica total confiança no Estado, o reconhecimento da colectividade como factor de integração e meio de defesa fundamental, mesmo sem que fiquem claramente referidas as instituições para defesa do interesse comum. O Estado é o lugar de defesa do interesse comum e do interesse específico, face a quaisquer contingências. A soberania absoluta do Estado assegura o justo equilíbrio da sociedade civil. Há pois subjacente ao seu projecto uma lógica explícita. Trata-se de uma lógica crítica que revela um estilo de pensamento que transcende o próprio modelo, que vai mais além dos códigos compreensíveis e ao nível dos seus interlocutores. Norton de Matos não inventa noções nem aplica metáforas, serve-se de conceitos definidos e aplicados. Ele é um homem prático que procura dar vida a uma concepção das coisas que vai encabeçar toda a vida.

O relatório transfere para a sociedade, por via da legislação produzida, uma noção de «ordem e progresso» que quer significar mais do que os conceitos do positivismo. Sem estabelecer uma doutrina, pressupõe a existência de um pensamento de um grupo dirigente, quiçá uma elite, produto de uma época revolucionária assumida com as contradições próprias, onde as definições eram violentamente postas em causa, enuncia teoricamente a «construção» ou o «edifício» de Norton de Matos. Contraditoriamente marca também o fim da sua actividade política nas colónias e o início de um itinerário de reflexões a que vai servir de fundamento, com ajustamentos de pormenor relacionados com as leituras a que procede entretanto.

Durante meio século a sua prática administrativa foi sistematicamente posta em causa, combatida em teoria e, curiosamente, convertida a favor da Ditadura e do Estado Novo, em defesa da «pátria una e indivisível» consagrada pela constituição de 1933 e que só teria fim em 1975.

A noção de Império Colonial Português atinge proporções fantásticas. Desde a menção criteriosa e indesmentível a cidades que não existiam, contudo, marcadas com grossos círculos nos mapas coloridos, até á encenação que envolveu uma cenografia feérica surpreendente á beira do Tejo em 1940 e uma catarata de lições por insignes académicos que exibiram provas históricas igualmente indesmentíveis e criteriosas, que enchem dezenas de grossos volumes, quando a Europa se debatia nos estertores do holocausto e na 2.8 Grande Guerra (1939-1945), toma-se ainda hoje muito difícil ser claro e sereno sobre o que significa o fabrico dos factos históricos. Em relação a essa realidade existe uma «filosofia» portuguesa tão mística como a fantasia política produzida nesse período, onde se toma difícil distinguir o que é «poesia» e o que é teoria ou doutrina original.

A história portuguesa de 1926 a 1975 passou por essa ficção que reduziu a nada o ideário republicano, positivista ou socialista, que atravessava a Europa e teve sequelas que ainda hoje persistem.

A Maçonaria foi a alma da República Portuguesa. Todavia, tanto Sidónio Pais, que instaurou uma ditadura contra a República, como Óscar Fragoso Carmona, primeiro Presidente instalado pelo Estado Novo, eram pedreiros-livres, tal como muitos homens que, por razões diversas, colaboraram na apropriação e na destruição da obra republicana em geral e, nas colónias, na obra de Norton de Matos em particular.

Norton de Matos foi eleito Grão Mestre da Maçonaria Portuguesa em Dezembro de 1929 e reeleito em 1931. Nas circunstâncias sociais que se viviam, estar á frente da Maçonaria, como escreve A. H. de Oliveira Marques «significava ser o inimigo número um do regime. Durante cinco anos atribulados, Norton de Matos aguentou o cargo, sendo o responsável máximo pela criação das estruturas que transformaram a Maçonaria, de instituição quase pública e operando á luz do dia, em associação secreta e clandestina, capaz de resistir aos quarenta anos de "Estado Novo" e de lhe sobreviver.

Todas as obras de Norton de Matos decorrem necessariamente de um vasto domínio do pensamento e acção ditado pelos princípios republicanos e maçónicos.

O corpo ideológico inscrito e veiculado no ordenamento jurídico, nas conferências e relatórios que elaborou ou proferiu e a actividade administrativa concreta, visível e invisível, em Angola. Há uma componente efectiva que passa pela instalação da Maçonaria, com Lojas, Triângulos e suas extensões «profanas» nas mais minúsculas e remotas povoações do litoral e do interior angolano que serviram de veículo a um ideal capaz de sustentar a coesão do tecido social tão débil como era o da colónia.

As verbas atribuídas a Angola pela Fazenda Pública e as subvenções orçamentadas eram pagas a contra-gosto e com a irregularidade consequente. As obstruções postas pelos fretes elevadíssimos do transporte marítimo e as dilações do Banco Nacional Ultramarino nos pagamentos criavam forte decepção no território. Havia sectores coloniais que apoiavam Norton de Matos que pretendiam ir até á ruptura com a Metrópole, ao corte de relações comerciais. À cabeça desta tendência surgem os membros da Loja Maçónica Independência Nacional de Benguela que acusava Norton de Matos de transigir demasiado com Lisboa, de ser mais um delegado político do poder central do que um Governador Geral. [...]

(1) Norton de Matos, "A Província de Angola", Porto, Maranus, 1927.

 

 

 

Autor:

Maria Estela Guedes
estela[arroba]triplov.com

TriploV. APE. CICTSUL



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