"Seria diferente se os sociólogos das ciências levassem em conta a economia dos discursos,em lugar de considerá-los apenas como suportes de informações".
(Dominique Maingueneau)
O pós-modernismo na Antropologia, segundo bibliografia recentemente produzida nos Estados Unidos, tem como característica principal formular uma crítica ao texto etnográfico clássico, considerando questões como suas condições de produção, o papel do autor, os recursos retóricos utilizados e a ausência, no texto, de uma perspectiva crítica mediando a cultura descrita (do informante) em função da cultura para qual se escreve (do autor).
O contato com uma parcela dessa bibliografia da reflexão pós-moderna, apresentada em linhas gerais na primeira parte desse trabalho, sugeriu-me, então, a possibilidade de sua aplicação para alguns dos textos etnográficos da bibliografia religiosa afro-brasileira, com os quais venho trabalhando ultimamente na realização de projeto de dissertação de mestrado, que trata das transformações rituais e simbólicas no culto urbano aos orixás, na cidade de São Paulo. Alguns desses textos, como aqueles produzidos por Roger Bastide, Pierre Verger e Juana Elbein, entre outros, têm sido recentemente criticados em função dos modelos por demais idealizados que propõem para análise do material religioso afro-brasileiro. Além da presença ambígua do autor, que aparece como pesquisador para legitimar a sistematização proposta no texto, e como "iniciado" para garantir uma perspectiva "desde dentro". Contudo, essas críticas frequentemente não focalizam os artifícios da construção textual, os quais, conforme tentarei demonstrar na segunda parte desse trabalho, são elementos importantes (e elucidativos) do fazer etnográfico desses autores.
Um outro aspecto a ser explicado, e para o qual a análise do discurso pode contribuir, é aquele referente ao fato de que alguns textos da etnografia religiosa afro-brasileira vêm se transformando, recentemente, em verdadeiras fontes de consulta para um número crescente de leitores religiosos, que passam a tratar as informações etnográficas como verdadeiros estatutos de regras rituais válidas para todas as comunidades religiosas.
Sobre essa transformação da obra etnográfica em um potencial texto (litúrgico e doutrinário) de uma religião acostumada á transmissão oral dos conhecimentos rituais, é o que trata a conclusão deste trabalho.
A chamada geração pós-moderna de antropologia norte-americana, representada por autores como J.Clifford, G.Marcus, James Boon, Paul Rabinow, entre outros, tem recebido forte inspiração teórica de pensadores europeus como M.Bakhtin, M.Foucault, R.Barthes, P.Bourdieu, o que nos leva primeiramente a considerar alguns dos argumentos destes pensadores, principalmente aqueles relacionados com a filosofia da linguagem e com a epistemologia das ciências.
Inicialmente foi M. Bakhtin quem chamou atenção para alguns determinantes da linguagem; dizia ele que,
"assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos - emissor e receptor do som - bem como o próprio som, no meio social". (BAKHTIN,1988:70).
Para Bakhtin a enunciação resulta da interação de individuos socialmente organizados e a palavra função das pessoas as quais se dirige pois, segundo ele, não pode haver linguagem com um interlocutor abstrato.
O contexto social não se reduz, entretanto, a sobredeterminar a estrutura da enunciação (forma e estilo, por exemplo) enquanto sua causa externa (a situação extraverbal), configurando, antes, um elemento necessário e constituinte da própria estrutura semântica gerada no e através do enunciado.
Colocando-se nessa perspectiva, a filosofia da linguagem de Bakhtin, em que pese a influência marxista em suas formulações, pode desenvolver abordagens mais abrangentes considerando, além do conjunto das regras estruturais que presidem as relações dos termos de uma língua, questões como a natureza dos fenômenos linguísticos, o problema da significação, as bases sociais da enunciação, os gêneros do discurso (direto,indireto,livre etc), e as regras sociológicas que os regem.
As idéias desenvolvidas pela linguística de Bakhtin, principalmente aquelas referentes á análise de discurso, anunciaram de uma certa maneira a pertinência de temas referidos na obra de Michel Foucault e Pierre Bourdieu que trataram, sobretudo, das questões relativas ao discurso científico.
Para Foucault, o que em Bakhtin foi definido como condições de produção do discurso, resvalou para a análise das instituições discursivas (privilegiando seus aparelhos). Para Bourdieu o discurso científico deveria referendar suas condições sociais de produção através da noção de campo científico enquanto locus de disputa pelo monopólio da autoridade científica.
"O campo científico,enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado" (BOURDIEU, 1983:123).
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