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Na esteira dessas compreensões gerais que o estudo aqui em debate me possibilita, chego a outras certezas provisórias:
De modo geral, parece que esse currículo ainda se faz tributário de certa concepção de ser humano que, se não me engano, começou a se formar ainda no Renascimento, quando as letras, as artes e a filosofia tentaram valorizar elementos até então secundarizados "na" e "pela" cultura dominante, entre eles: a idéia de natureza governada por uma racionalidade universal, em oposição a certezas sobrenaturais advindas das luzes fideístas da revelação, bem como o conceito de imanência centralizante do humano racional e "indivíduo", imerso no mundo natural, em contraposição á centralização da transcendência divina preternatural.
Na linha do desenvolvimento histórico dessa visão sobre o mundo das coisas e sobre o mundo humano, á medida que a burguesia ia instaurando uma ordem diversa da medieval e antiga, parece que o corolário a que assistimos foi o da consolidação dessas concepções nos termos que podemos nomear de individualismo antropocêntrico-narcísico, no qual o humano figura centralizado em si mesmo e soberano plenipotente com relação aos outros seres, harmonizado com as necessidades históricas da burguesia, a qual pugnava pelo modelo de sociedade formada por indivíduos pretensamente livres, iguais, autônomos e que estariam em progresso contínuo rumo á paz e á felicidade perpétuas, desde que conhecessem, dominassem e controlassem a ordem do mundo natural e do mundo humano.
Hoje, quando o currículo peceenista refere-se á formação do trabalhador e do consumidor, para que, por meio desses estilos existenciais, formem uma identidade e uma subjetividade que desemboquem naquilo que entende por cidadania, os sinais daquele individualismo antropocêntrico e narcísico parecem visivelmente identificados.
Sob a aspiração de que o homem e a mulher se humanizassem pela via da particularização daquela racionalidade universal e deixassem a razão desenvolver-se naturalmente em si mesmos, vimos aparecer ao longo da história pensadores como Descartes, Rousseau e Kant, de um lado, e Bacon, Newton e Galileu, de outro. Eles trouxeram contribuições ao encaminharem a revolução científica? Sim, mas com efeitos deletérios altamente destrutivos, pagos a um custo social e humano altíssimo e sem precedentes, como estamos podendo contatar no dia-a-dia de nossa vida hodierna.
Pelas contribuições desses filósofos e cientistas, critérios como os de evidência, análise, síntese e enumeração racionais passaram a dar as cartas na produção do conhecimento, potencializando uma postura racionalista radical e fragmentadora da realidade. A ordem era dividir e classificar.
Na perspectiva empirista, não menos radical que o racionalismo, fez-se crescer o apego ao experimentalismo indutivista e a sanha pela matematização quantificadora dos dados da experiência, muito na crença de que o objeto bruto "fala á razão", de que ele é regular, estável e fixo, regido por leis naturais permanentes, invariáveis e eternas, motivo pelo qual a pequena parte do todo pode nos afiançar generalizações e universalizações certas, seguras e absolutas. Se existe uma essência intrinsecamente natural em todas as coisas, captar parte dessas coisas significa captar a totalidade do que elas são. O mandamento era o de tomar o singular pelo universal por meio de expedientes precisos, tais como o de quantificar para objetivar, experimentar para estabelecer regularidades, generalizar para prever, visando a explorar á exaustão os recursos passíveis de transformação em mercadoria, imprescindível a toda riqueza material.
Essas operações epistêmicas, impossíveis sem uma concepção antropológica que lhes corroborem os fundamentos, fizeram com que a razão e a experiência dessem as mãos em benefício do cienticismo, pai da tecnologização da vida, do desencantamento do mundo e da atividade intervencionista no real nunca antes imaginada. À essa altura, então já se falava de um método científico e de uma concepção de ciência fundada na linearidade estanque da lógica disciplinar.
Nessa perspectiva, passa a caber ao homem e á mulher a tarefa de usar as potencialidades racionais e formais próprias para fazerem com que categorias ideadas puras se deixassem preencher por conteúdos vindos de objetos brutos, tomando esses procedimentos a essência de uma noção de epistemicidade que garantiria ao indivíduo racional soberano a pressuposta prerrogativa de explorar, conhecer, dominar, intervir e controlar o mundo natural e o mundo humano. Isso seria possível porque o conhecimento das leis naturais implicaria o domínio seguro da ordem intrínseca ao existente, em constante progresso perfectível rumo ao bem supremo, ás vezes identificado com a felicidade perene e com a perpétua paz.
Por conseqüência dessa concepção antropológica e epistêmica, em que há internamente ao homem e á mulher uma razão naturalmente passível de desenvolver-se na direção de um "sempre melhor", sob a ordem progressivamente plasmada no universo, então cabe mesmo pensar o humano como autônomo, livre, igual e que teria justificativas de sobra para empreender projetos existenciais de libertação e de emancipação. Além de fundar a economia capitalista, a política liberal, a democracia, e a ética euóica do individualismo possessivista.
Associando essas idéias aos PCN, na medida que esse currículo transplanta para o âmbito da escolarização a concepção disciplinar de currículo, é a herança cartesiano-newtoniana e rousseauísta-kantiana que ele está a mobilizar para conceber a instituição escolar, os saberes e a prática relativa aos processos de ensinar e de aprender. Por isso, a inserção de temas transversais nos PCN resulta em um anexo curricular de difícil justificação.
Se pensarmos nas conseqüências que esses aspectos fazem chegar até nós, notadamente aqueles que lastreiam a concepção de ordem natural das coisas, com ênfase desmedida na dimensão econômica, tenho a sensação de que me encontro diante da morte da política, ainda que creia, também, que algo da velha fênix a habite. Entretanto, esse óbito é preocupante, sobretudo porque é em meio a esse contexto que se deu o endereçamento dos PCN. Para tentar me fazer entender, recuo um pouco no tempo.
Há aproximadamente 25 anos, passei a assistir e a vivenciar o sonho que era o de um projeto de nação para o meu país - esse Brasil tão desigual, tão injusto, tão excludente, tão autoritário e tão generoso em privilégios para uma mesma e sempre minoria (agora mesmo leio na grande imprensa que os 10% mais ricos entre nós detêm 75% da riqueza nacional, enquanto os pobres brasileiros pagam 44% a mais de impostos comparativamente aos mais ricos).
Pois bem! Aquele projeto de nação para o Brasil por vezes me seduziu, levou-me ás ruas e aos movimentos sociais, particularmente áqueles relacionados á universidade, enquanto em algumas partes do mundo acontecia a queda das experiências socialistas, a qual foi mostrada, á farta, pela televisão. Emblema desses acontecimentos foi a destruição do Muro de Berlim, ocorrida em 1989, ano em que entrei para a universidade.
A derrubada daquele muro significou o fim das barreiras para o rearranjo capitalista em nível mundial; representou o agigantamento do neoliberalismo, a consolidação do globalitarismo econômico e a mundialização dos mercados, agora mais livres do que nunca, mas mais autoritários, mais tirânicos e plenipotentes.
Como lição histórica desses processos parece ter ficado a certeza de que nenhum coletivismo planificado vale a liberdade humana, assim como estamos aprendendo, a duras penas, que a absolutização da liberdade individual não paga o senso do bem comum, a noção de coisa pública, dos direitos sociais e do anseio por eqüinânime justiça econômica, política e cultural.
A segunda lição que a história do fim da Guerra Fria nos lega é a certeza de que ainda não aprendemos a conciliar justiça e liberdade.
A conferência do quanto é plausível essa percepção desafio pode ser feita mediante uma volta aos batidos imperativos do capitalismo neoliberal, sobretudo áqueles consagrados no Consenso de Washington, o qual evidencia a atuação de uma divindade, a economia, e a governança de um novo soberano, o mercado, auto-regulado e indiferente á ação humana. Na minha opinião, esses imperativos ainda gozam de plena hegemonia nos dias atuais e sua pujança é bem mais avassaladora que os politicamente corretos podem admitir.
Aos pés dessa divindade e desse novo soberano jaz outra velha conhecida, a política, como foi dito. Quando muito, ela se apresenta, metaforicamente falando, raquítica e pigméia. A verdade é que ela está morta. Morta a política, morto o voto, morre aquela cota de poder pessoal e aquele poder coletivo que vem do povo.
O novo modelo de poder não respeita nada, nem ninguém. Daí a sua força para perpetrar a reforma educacional que lhe convier, moldar a escola que lhe aprouver e endereçar o currículo que lhe cair bem. Diante disso, muitos encontram-se de braços cruzados, bocas fechadas, canetas inertes, teclas em indiferente repouso. Por que todo esse silêncio? O que justifica o calar-se dos formadores de opinião? O que está subjacente ao silêncio dos intelectuais? A atual tirania econômica e seu discurso unicizante aniquilaram nossa capacidade de ver, julgar e agir? Matou nossa capacidade de expressão? Estamos todos atordoados? Impotentes? Ou, pior hipótese, vemo-nos ainda iludidos com a crença de que aquele projeto de nação é que está sendo implementado?
Parece-me que enquanto uma pseudo-esquerda lutava pelo poder, tínhamos matéria-prima para nossa ação discursiva problematizadora. Porém, tendo essa aparente força transformadora da ordem capitalista chegado ao poder, caímos num tal desapontamento, que agora nos falta o básico: a fonte da crítica. Se essa minha hipótese se confirma, então a situação é mais grave do que podemos supor e o momento histórico porque passamos é mais delicado do que podemos imaginar.
Em um momento em que nos sobra perplexidade, a divindade econômica continua a cuspir imperativos á própria imagem e semelhança; o soberano mercado segue exercendo o governo; e o Estado, fiel aos entes anteriores, não cessa de administrar a própria minimalização para o social, mantendo nas próprias mãos, qual neoleviatã, as rédeas de todas as grandes, intensas e extensas regulações. Com essa descentralização-centralizante, o Estado visa a manter incólumes os interesses do capital, das corporações e dos serviçais que lhe dobram os joelhos.
Acólito da economia de mercado, o Estado tem administrado o quê? Para quem? Direitos sociais? A "res publica"? O bem comum? Parece-me que a preocupação do neoleviatã é outra.
Enquanto isso, a política como ação do corpo soberano da sociedade segue ignorada. Votar para quê, se o econômico tudo decide? Onde a soberania do povo? No que respeita á educação escolar, estamos de acordo que ela deve "formar para o mercado"? Que ela deve se ocupar com a formação do "consumidor"? "Preparar para o trabalho"? "Formar para a cidadania?"
Pois bem, não fossem os imperativos antes descritos, o endereçamento da ética nos PCN poderia ter sido encaminhado de outra maneira.
Nas reformas educacionais dos anos 1990, o papel da escola, o sentido social do trabalho docente, o significado dos saberes didático-pedagógicos e a razão de ser das práticas avaliativas foram reorientados segundo as regras do neoleviatã que assassinou a política, em meio a uma cultura que deposita no individualismo narcísico e antropocêntrico a crença de que a via para a formação de modelos societários e de estilos existenciais não é outra senão a das regras neoliberais.
Em nome dessas finalidades mais amplas, emissores oficiais (nacionais e internacionais) múltiplos meios, mensagens curriculares diversas e vários receptores desse currículo foram configurados. O poder descomunal do Estado economicamente submisso fez-se presentemente ostensivo para configurar todos esses elementos. Nesse processo, para transversalizar os conteúdos de justiça, diálogo, respeito mútuo e solidariedade, a ética inserida nos PCN ganhou um lastro psicologizado e psicologizante.
Entretanto, a necessidade premente de enfrentar o antropocentrismo individualista, que ao tentar conhecer, dominar e controlar a ordem do mundo acabou perpetrando uma ação predatória incomensurável sobre a natureza, com prejuízos incalculáveis para as sociedades humanas, aos quais a natureza viva vem dando respostas "na mesma moeda".
Orientações teóricas dessa ordem requerem, por si sós, o esforço de compreensão para além de crítica sobre o currículo peceenista e o envidamento de recursos no sentido de esclarecer a que ele se presta e a quem ele serve.
Em face do exposto, considerando o que os PCN nos apresentam, somos levados a algumas indagações:
Essas questões, entre outras possíveis, que apontam para contradições, ambigüidades e paradoxos presentes no currículo dos PCN, além de assinalarem que suas fontes teórico-metodológicas se constituem de expressões da pedagogia liberal, evidenciam as razões pelas quais o currículo em questão já nasceu em xeque, talvez para que possamos, pela via da ressuscitação da política, reavivar, também, uma nova proposta curricular para o ensino da ética endereçada aos estudantes da educação básica.
Além disso, mais do que aquilo que se pensa sobre o currículo, ele não é outra coisa senão aquilo que fazemos dele, mediatizados pelas ações programáticas e pragmáticas levadas a cabo no exercício docente. Nesse sentido, o desejo é o de que a escola, socialmente referenciada, possa ser o palco de enfrentamento desses desafios, se é que o compromisso primeiro do professor e da professora é o de viabilizarem caminhos á humanização do homem e da mulher, desde os primeiros anos de escolarização.
Diante da ética tirânica do capital, nosso trabalho docente talvez possa ser encaminhado na direção de uma ética propositiva, não apenas resistente, mas que mostre, já para os estudantes da educação fundamental, que outro modelo societário é possível, assim como é possível uma outra maneira de ser-estar-e-agir no mundo. Isso, porém, não se dará sem o resgate do sentido do "fazer política" e sem a reapropriação do sentido social da escola, do currículo e do ensino dos saberes escolares. Isso não ocorrerá sem a retomada do sentido social de ser professor e professora.
Em nome dessas diretrizes, o direito á política deve ser reinventado, como deve ser requerido o controle da economia pela política, entendida como o exercício da soberania pela sociedade civil. Isso parece ser básico para pensarmos em uma outra escola, em uma outra ética e em uma outra proposta curricular, condições de possibilidade para o estabelecimento de uma razão de ser conseqüente para o exercício do magistério.
Uma prática assim concebida implicará, seguramente, a mobilização do entendimento de que o humano, na perspectiva ôntica, é, antes de um soberano, um ser inter-relacional; que, nessa condição, dele é esperada a postura de quem se sente socialmente co-responsável pela vida própria e coletiva; que, para tanto, a pluralidade epistêmica, em que a consideração dos saberes, todos eles, deve ser feita conforme a igualdade complementar; que, baseados nessas diretrizes, o homem e a mulher possam ver significado na participação política, de modo a fazerem com que a injustiça e a instrumentalização do humano por outro possam ser superadas; que esses entendimentos gerais, concebidos no interior de uma outra ética possível, confluam para um estilo humano solidário ao nível práxico.
Parece-me que essas aspirações afiançam-nos que não podemos nos calar.
Então, diante desses desafios, que o silêncio não vença nossa vontade docente de lutar por mais justiça, menos controle, mais liberdade e mais democracia, e de maneira que respeitem a justiça, os direitos sociais e a dimensão pública da vida em sociedade.
Por fim, que nenhum silêncio se transforme em covardia.
Obrigado!
[1] Versão ligeiramente modificada do texto apresentado perante Comissão Julgadora na Defesa da Tese "O Ensino de Filosofia e o Problema do Endereçamento da ética nos PCN: Controle ou Democracia?", dia 05/06/2008, na Faculdade de Educação da UNICAMP.
Autor:
Wilson Correia
Doutor em Educação pela UNICAMP. é mestre em Educação pela UFU. Cursou especialização em Psicopedagogia pela UFG. Graduou-se em Filosofia pela UCG. é professor universitário. é autor de Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006
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