Trabalho realizado no âmbito do projecto luso-espanhol "Naturalismo e conhecimento da herpetologia insular" (2002-2003), subsidiado pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC, Madrid) e Instituto de Cooperação Científica e Tecnológica Internacional (ICCTI, Lisboa).
Todos sabemos, excepto a ciência normal, que a objectividade não existe na comunicação analógica, a humana. Este trabalho, não tendo essa finalidade, acaba por mais uma vez demonstrar tal evidência. De muitas maneiras a relação entre o discurso e o referente (Natureza) é liquidada no texto científico. No corpus que habitualmente estudo, textos de História Natural, são principalmente quatro os agentes desviantes: a metáfora, de que a própria ciência se tem ocupado, sobretudo no que toca ao evolucionismo (Sacarrão, 1986), os putativos, o erro e a anáfora. Da sua interferência no discurso irrompe a máscara. Ora a persona não só é um duplo no teatro, como em mil outras situações, caso da heteronimia pessoana e do agente secreto.
Anoto no entanto que a ciência normal - por oposição a extraordinária, na acepção de Kühn, ou ciência profana e ciência maçónica, se preferirem, pois já tive ocasião de mostrar que existe uma ciência maçónica (Guedes, 2002) - classifica ás vezes como metáfora o que nada garante que o seja, exemplo da expressão "laboratório natural", aplicada ás ilhas. Eu aceito o seu significado literal: as ilhas são laboratórios privilegiados para os cientistas desenvolverem experiências, em particular de hibridação. Para se apurar uma raça, é preciso impedir que os indivíduos de raça pura se cruzem com os de outras, e nada melhor do que o isolamento geográfico da isola para proporcionar isolamento reprodutor. A metáfora e outros dispositivos retóricos que conferem categoria ficcional á exposição têm sido estudados também em Filosofia (Regner, 2003).
Por putativos entendam-se as modalizações que conferem á acção expressa na frase um valor condicional, dubitativo ou hipotético - "talvez", "provavelmente", "é duvidoso", "não é certo", "terá evolucionado", "ter-se-ia adaptado", "pode ser que...", etc., e o uso das aspas com função dissolvente do que se afirma entre elas. O discurso putativo tem no TriploV um exemplo admirável, os textos do prudente biólogo E.G. Crespo. Paolo Fabbri atribui grande importância ao papel da anáfora na frágil relação entre o discurso científico e o que se esperava fosse o seu objecto referencial, a Natureza. Com efeito, o texto do naturalista é estrutural e normativamente anafórico, refere-se a si mesmo e a outros textos, mais do que aos seres e fenómenos naturais. Aqueles com que lidamos são em geral catálogos de espécies que habitam dada região geográfica; por isso, sempre que um zoólogo publica novos estudos sobre dado tema, deve citar os seus trabalhos precedentes, se existirem, e os de quem o precedeu. No caso da sistemática - a técnica de identificação de espécies, e por consequência da nomenclatura - a anáfora integra-se num complexo mecanismo de normas, algumas de precedência, na atribuição de nomes científicos aos taxa (ordem, família, género, espécie, híbrido, etc.). Estas normas são emitidas pela International Society of Nomenclature e reeditadas regularmente em várias línguas (Código Internacional de Nomenclatura/Botânica/Zoológica/). Significa isto que não há um texto naturalista, sim uma vasta polifonia, que em regra começa em 1758, com a décima edição do Systema Naturae, de Lineu, e se mantém em processo. Esta polifonia com princípio e sem fim surge ás vezes como paródia, citação intencionalmente satírica, independente do escolasticismo do "Fulano disse que Beltrano disse que Sicrano disse que...", passível de surtir efeito cómico involuntário.
Os meus estudos sobre o naturalismo levaram a concluir que tem havido intervenção da ciência na distribuição geográfica da fauna actual, através da introdução de híbridos na Natureza, como o declarou de resto Bedriaga, considerado na época o maior especialista em Lacertidae, em carta aberta ao Congresso de Zoologia de Moscovo, referindo-se a répteis e anfíbios. Os híbridos não são espécies, sim rebis, coisa dupla: eles acumulam caracteres de duas espécies, e por isso é obrigatório designá-los por duplo nome, que explicite o cruzamento entre os progenitores. Supondo: "Bufo calamita x Bufo viridis", em que o "x" é sinal de cruzamento, na boa tradição do esoterismo, que faz dele o símbolo de Kundalini, o fogo sexual. Esta obrigatoriedade raramente é respeitada, mesmo na literatura sobre as Baleares (incluídas as Pitiusas e alargado o nosso estudo ás ilhas próximas de Valência), em que, desde as primeiras explorações herpetofaunísticas até hoje, o grupo das lagartixas tem vindo a ser classificado como círculo de raças. Não só é explícita a categoria de "rassenkreis" (Eisentraut, 1949; Colom, 1978; Cirer, 1987, etc.), como há notícia de experiências de hibridação: "Antiguamente, se introdujeron en el islote de Es Daus, donde no existían con anterioridad lagartijas, 8 machos procedentes de Escull Vermell y 20 hembras de Ibiza, cuyos descendientes serían híbridos: P. p. maluquerorum x P. p. pityusensis" (Barbadillo Escriva, 1987). Este é o único exemplo que conhecemos de esclarecimento do carácter híbrido de uma população, no laboratório natural das Baleares. As experiências foram levadas a cabo por Böhme & Eisentraut num ilhéu desabitado de lagartixas, Dado Grande, perto de Ibiza. Cinco anos depois, os naturalistas verificaram que a hibridação aumentava a variabilidade e as dimensões do corpo dos animais. Qual a intenção da experiência? - perguntamos nós. Se estas lagartixas são híbridas, as outras também, e a biologia tem meios para o confirmar (já que parece não ter para o negar).
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