Sumário - Para o autor, toda profissão é o resultado de um processo de redução pelo qual saberes se transformam em disciplina. Com isso o aperfeiçoamento profissional constitui um empobrecimento, e não há formação integral que elimine ou atenue tal condição ambígua; mas, paradoxalmente, é ela que vai permitir ao profissional construir e fixar sua identidade. O profissional sabe que não pode saber tudo; por isso mesmo, sabe que pode mais do que qualquer curioso. Como não somos nada, o melhor é ter um canudo. Quando, porém, os títulos já não significam grande coisa, é preciso verificar se a idéia mesma de formação profissional sobreviverá. Pois o que se questiona é se as profissões serão capazes de absorver esse espírito trans, ou até anti disciplinar, que caracteriza boa parte da cultura contemporânea.
Em um texto de 1967 Roland BARTHES assinala, com uma pitada do seu habitual humor negro, que todas as universidades dispõem de uma relação oficial de ciências cujo ensino é legítimo, relação pela qual se estabelecem os títulos e diplomas possíveis de outorgar. Através delas pode-se aprender que é factível ser doutor em estética, em psicologia, em sociologia, em arquitetura, mas não em heráldica, em semântica ou em vitimologia:
Assim é, pois, que a instituição determina diretamente a natureza do saber humano, impondo seus procedimentos de divisão e de classificação, exatamente da mesma forma pela qual uma língua obriga a pensar de uma determinada maneira, por meio de suas rubricas obrigatórias (e não em função de suas exclusões).1
A relevância ou a validade de determinado saber não precede a sua eventual institucionalização ou reconhecimento: o que o coloca em situação de ser transmitido não é a sua importância intrínseca, mas é precisamente o fato de ser ou não ensinado que lhe irá conferir valor. Em outras palavras: um saber não se ensina porque seja importante; é importante porque é ensinado:
O que define a ciência /.../ não é seu conteúdo (muitas vezes mal delimitado e lábil), o método (que varia de ciência para ciência: o que podem ter em comum a ciência histórica e a psicologia experimental?), nem sua moralidade (seriedade e rigor não são propriedade exclusiva da ciência), nem seu método de comunicação (a ciência se imprime em livros, como tudo mais), mas apenas seu estatuto, ou seja, sua determinação social: qualquer matéria tida como digna de transmissão pela sociedade será objeto de uma ciência. Em uma palavra: a ciência é aquilo que se ensina.2
Creio que com isso podemos introduzir nosso tema. Cada profissão compõe-se de um certo número de partes públicas, estipuladas curricularmente e avaliadas institucionalmente; entretanto, também é integrada por um feixe, ás vezes bastante denso, de manhas e segredos mais ou menos conhecidos e transmitidos por seus teóricos, praticantes e mestres-de-cerimônia. Na superfície, uma profissão, qualquer profissão, constitui-se do cruzamento de diversas disciplinas e da superposição de distintos campos temáticos, interesses e vocações que nem sempre se mantêm em plácida concordância. Mas, se cada ciência reclama seu serviço público, isto é, seu exército profissional, não se pode esquecer que, pela mesma razão, não existe ciência monádica. Os objetos científicos não costumam ficar passeando despreocupadamente á espera de que, um belo dia, alguma disciplina em busca de intérprete venha apossar-se deles e conduzi-los até o cartório de registro de patentes mais próximo. Cada ciência luta contra as suas vizinhas ou antecessoras a fim de construir, conforme seu modo particular de compreender a realidade, um campo de conhecimentos que lhe possibilite juntar-se á corte dos saberes legítimos e receber as bênçãos da instituição educativa. Ignorar seus pares, dentro da agitada democracia das disciplinas, não confere maiores oportunidades de desenvolvimento áquelas ciências construídas de costas para ou muito por cima do campo de batalha. Uma profissão não o é se não for uma militância frente ao resto; é preciso, a respeito, ter em conta a maneira pela qual as múltiplas disciplinas não se restringem apenas ou principalmente á exploração de um determinado território de saber. Uma disciplina - e sob este rótulo cabe desde uma dietética até uma estética, passando por ciências, hermenêuticas e artes marciais - é fundamentalmente um modo peculiar de formular e aplicar questões, de delimitar, classificar e recortar objetos, e de constituir, nesse mesmo movimento, os sujeitos que interrogam, manipulam, demarcam, ordenam ... e respondem. As disciplinas são - e quem quer que tenha passado por alguma escolinha poderá comprová-lo sem entusiasmo exagerado - um poderoso instrumento feito para obedecer e para, eventualmente, fazer-se obedecer. As disciplinas regulam e dosam os rumos, os ritmos e as fases que devem ser cobertos por uma dada atividade, seja reflexiva ou corporal, até que ela alcance as tíbias e eficazes praias do automatismo. Pois é provável que uma disciplina não atinja um êxito cabal se não logra dissolver-se nos músculos ou no cérebro daqueles que a exercem. Uma disciplina não se pensa: se imprime, se incorpora, se encarna até quase converter-se em instinto. Nenhum método é bom enquanto não sejamos capazes de esquecê-lo, por força de petições e repetições: é preciso parar de pensar nele para que funcione.
O sentido de um método ou de uma disciplina se estabelece, de fato, nesse trâmite reiterado que o faz circular pelo sistema invariavelmente na mesma direção. As veredas transformam-se pouco a pouco em caminho real, a senda efetivamente não conduz enquanto não se converte em rodovia dotada de pedágio com inserções pagas na televisão. O sentido das disciplinas, sem querer substantivá-las demais, consiste em (e na prática restringe-se a) provar e comprovar sua própria eficácia, da mesma forma como o sentido das profissões reside, essencialmente, na capacidade que demonstram de medrar e reproduzir-se. A disciplina, a despeito do seu abuso, é um meio: nunca poderia substituir os fins que, freqüentemente na contramão, ela ajudaria a alcançar.
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