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Gramsci é isso: um fomentador de intensos debates e divergências, pouco vistos em um pensador das Ciências Humanas. E a explicação para isso também não é consensual. Uns diriam que o modo como ele escreveu seus cadernos, isto é, por um lado sob a vigilância e a censura do cárcere, por outro com pouca preocupação em uma sistematização dirigida a uma possível publicação, teriam determinado os equívocos de algumas leituras. No entanto, também se pode dizer que Gramsci, em sua prisão, passou a se distanciar do movimento comunista e da revolução socialista, para se preocupar com as "novas realidades políticas" do Ocidente, isto é, a "democracia". Portanto, até mesmo para justificar certas leituras feitas sobre os Cadernos, existem explicações diferentes. Justamente por esse caráter, ou seja, pela sua absorção por várias correntes políticas e ideológicas, Gramsci passou a ser atacado pelas diversas concepções de mundo.
Por esses motivos, o autor italiano parece ser uma fonte de questões inesgotável. Afinal, além da sua complexidade própria, o leitor de Gramsci também tem que estar minimamente inserido no debate dos "tradutores" de sua obra.
Como sair, então, do relativismo que cerca as discussões referentes ao seu pensamento? Aliás, é possível sair dessa situação? Afinal, assim como uma obra de arte não concluída faz com que seus admiradores expressem seus desejos para tal finalização, com os Cadernos é semelhante. Pelo fato deles serem algo não concluído, muitos acabam fazendo prevalecer suas concepções em detrimento do próprio criador. Obviamente que esse processo não chegará a um ponto final. Nunca se saberá como Gramsci sistematizaria e finalizaria seu trabalho carcerário.
Entretanto, mesmo diante disso, é possível sim chegar a algumas conclusões em detrimento do relativismo. Primeiro é provável que, devido ás particularidades do texto carcerário, para se compreender fielmente o pensamento gramsciano seja necessário buscar a sua leitura integral. Sem posicionamentos imediatos e teoricamente corporativistas. Gramsci não é autor de uma área do conhecimento apenas. Suas contribuições, por exemplo, para a educação, devem necessariamente estar ligadas ás suas concepções sobre os "intelectuais", sobre a "cultura", sobre o "Estado", sobre o "nacional-popular", etc. Nos Cadernos, as idéias e os conceitos apresentados numa determinada nota, não podem deixar de ser relacionados com as demais. Isto significa que é necessário ler todo o texto para se ter uma dimensão sólida sobre seu pensamento. Elemento este muitas vezes ignorado. Em muitos casos, retira-se de Gramsci somente aquilo que se determinada como importante para certas áreas do conhecimento. Dessa forma, certamente o autor se torna o que se quiser, independentemente de seu lugar no espaço das ideologias.
Do mesmo modo, como ler as idéias gramscianas, sem levar em conta o período pré-carcerário? Gramsci não escreveu os Cadernos nas condições por ele escolhidas, ou seja, a mudança de linguagem em sua escrita, muito menos "política", não foi produto de sua liberdade de escolha. Então, não se pode concluir que o fato dele ter parado de falar em "socialismo" e em "revolução", tenha sido uma ruptura com o passado. Gramsci não escreveu em seu escritório. Portanto, quando se fala em totalidade do pensamento gramsciano é preciso incorpora organicamente também o seu período de militância política.
é preciso lembrar uma passagem dos Cadernos, quando o autor expõe sua visão critica sobre o debate efetivado pelos diversos grupos de intelectuais da Itália e da Europa, em torno do Risorgimento: as investigações sobre as "origens do movimento nacional do Risorgimento são quase sempre viciadas pela tendenciosidade política imediata, não só por parte dos escritores italianos, mas também por parte dos estrangeiros, especialmente franceses (ou sob influência da cultura francesa)." (Gramsci, 2002, p. 18) Portanto, é preciso ouvir o autor. Certamente, seu posicionamento diante do debate acerca do Risorgimento diz alguma coisa sobre como se pode compreender melhor o seu próprio pensamento.
Então, além da totalidade, é importante ler Gramsci com outros olhos. Menos tendenciosos e mecânicos e mais próximos da sua riqueza teórica e da sua criatividade analítica.
Ainda que na aparência Gramsci seja um autor propício ao relativismo, a "tradução" do seu trabalho intelectual deveria fomentar um outro aspecto de maior importância, isto é, a dúvida - tão necessária para a construção de um conhecimento crítico e livre de preconceitos teóricos.
A sua aversão ao sectarismo e ao pedantismo é um legado muitas vezes deixado de lado. é preciso incorporar de maneira mais profunda o "espírito" da dúvida, tão presente em Gramsci, pois por meio dele se torna mais claro o movimento e a dialética do seu pensamento.
Numa passagem do caderno 11, esse princípio parece ficar evidente. Diz o autor: "As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória. Todas devem ser revistas e verificadas minuciosamente, já que certamente contêm inexatidões, falsas aproximações, anacronismos. Escritas sem ter presentes os livros a que se referem, é possível que, depois da verificação, tenham de ser radicalmente corrigidas, precisamente porque o contrário do que foi escrito é que é verdadeiro." (Gramsci, 1999, p.85)
Aqui fica claro que, mesmo sendo um indivíduo possuidor de grande conhecimento, Gramsci não incorporou a tradição pedante e elitista tão forte entre os intelectuais italianos de sua época. O respeito que tinha pelas idéias e pela ciência, colocou-o distante do sectarismo e da reflexão seca e sem vida. A dúvida sobre seu próprio conhecimento demonstra isso. Então, as convicções cegas deram lugar a uma visão rica sobre a história.
Esta parece ser uma contribuição atual e fundamental do autor para aqueles que, após os 70 anos de sua morte, ainda buscam um sentido em lutar pela emancipação humana.
Referências bibliográficas
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999, V.1.
___________. Cadernos do Cárcere, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002, V.5.
Autor
Claudio Reis
Doutorando em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp. Membro do Grupo de Pesquisa Cultura e Política do Mundo do Trabalho. Revista Espaço Acadêmico - www.espacoacademico.com.br
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