O princípio da dúvida como legado de Antonio Gramsci – 70 anos de sua morte

Enviado por Claudio Reis


Na manhã de 27 de abril de 1937, morre na Itália Antonio Gramsci. Até aquele momento, um indivíduo sinônimo de militância política claramente contrária ao regime fascista. No período que ficou preso, sob ordens diretas de Benito Mussolini, Gramsci se tornou símbolo da luta contra a opressão em várias partes do mundo. Diversos movimentos político-culturais saíram numa ampla campanha pela sua libertação. Até o momento de sua morte, pouco se sabia da sua extensa produção teórica efetivada nos quase 11 anos de reclusão. Somente a partir de 1948, com a primeira edição italiana dos Quaderni del Carcere, o mundo começa a conhecer de fato o trabalho intelectual do, agora sim, importante teórico das Ciências Humanas. Ainda que Gramsci tenha produzido exaustivamente no período pré-carcerário, em diversos jornais e revistas, será somente com a publicização de suas reflexões desenvolvidas na prisão que seu nome passará a ser sinônimo de um respeitável autor das diversas áreas do conhecimento.

E uma interessante característica é que seu arcabouço teórico foi acolhido e publicado, tendo como cenário a divergência. Como Gramsci não desenvolveu nenhuma questão visando a sua publicação, e por esse motivo não existiu a preocupação de sistematizar todo seu trabalho para tal fim, logo de início surgiu a questão de como se publicar os cadernos. Como sistematiza o conjunto dos 33 cadernos preenchidos na prisão? A interrogação surge porque Gramsci, muitas vezes, escrevia ao mesmo tempo em vários cadernos. E nem sempre o 1º terminava antes do 2º. Por exemplo, o caderno de número 10 foi escrito entre 1932-35, enquanto o de número 11 entre 1932-33, ou seja, o 11° foi concluído antes do 10°. Além disso, os temas abordados, com algumas exceções, não apresentam sistematizações típicas para publicação. Tudo isso, fez com que o texto gramsciano fosse alvo de inúmeras polêmicas. Afinal, era preciso organizá-lo respeitando o máximo possível o raciocínio do autor.

Como se sabe a primeira edição dos Quaderni, iniciada em 1948 e terminada em 1951, efetivada pelo interlocutor pessoal de Gramsci, o também fundador do Partido Comunista da Itália, Palmiro Togliatti, logo foi substituída por uma outra. Conhecida como "Edição Temática", a organização togliattiana dos cadernos efetivada por meio de temas específicos, apesar de ter sido fundamental na difusão das idéias do autor nascido na Sardenha, não se sustentou diante do texto original. Era preciso interferir o menos possível nos escritos deixados por Gramsci. Com esse intuito, o estudioso Valentino Gerratana, juntamente com uma equipe de pesquisadores, organizaram a "Edição Crítica", respeitando a cronologia das notas carcerárias. Esse novo trabalho de edição dos Quaderni somente foi efetivado e tornado publico em 1975. No entanto, essa organização também já está sendo questionada por outras propostas, com destaque para a apresentada pelo filólogo Gianni Francioni.

Portanto, o trabalho deixado por Gramsci já nasce ao publico como um elemento cercado por divergências, debates, teses, etc. E todo esse processo para se encontrar o melhor caminho de análise sobre os Cadernos, está inserido não apenas no âmbito da filologia, mas também em cenários históricos e políticos diversos.  

Muito desse "espírito" que marcou as primeiras edições dos cadernos gramscianos, sem dúvida, foi estendido a própria compreensão dos conteúdos conceituais presentes na obra. Do mesmo modo que houve, e ainda há, o debate sobre como se organizar a "estrutura" dos cadernos, também existiu, e certamente ainda existe, diversas visões sobre as idéias do italiano. Então, ao sair de um espaço de debate, o pensamento de Gramsci acabou se inserindo em outro, não necessariamente sobre como se deve ler suas anotações, mas também como se deve entender política e ideologicamente suas concepções. O giro que seu pensamento deu pelos vários países - no momento de sua internacionalização, em muitos casos significando a sua desnacionalização - foi acompanhado por absorções intelectuais múltiplas. E mesmo dentro de cada espaço nacional, as "traduções" político-ideológicas também são bastante heterogêneas. Exemplo claro disso é o próprio Brasil.

Na sociedade brasileira, suas anotações são utilizadas por inúmeros setores que passam pelos membros do Partido dos Trabalhadores até por duros críticos do atual governo. Conceitos como "hegemonia", "sociedade civil", "guerra de posição", "guerra de movimento", "Estado", "intelectual orgânico", "intelectual tradicional", "nacional-popular", "moderno príncipe", "senso comum", "reforma intelectual e moral", entre muitos outros, são constantemente utilizados por sindicalistas, professores, religiosos, membros de governos, jornalistas, sociólogos, pedagogos, cientistas políticos, antropólogos, filósofos, etc. Em alguns casos, Gramsci é "traduzido" como um defensor da "democracia liberal", em outros como um "comunista defensor da classe operária e da revolução social". Também aparece, ora como um criador de uma "filosofia da práxis" - completamente nova e original, distante de Marx - ora como um dos principais autores da história do marxismo. Ora como "idealista", ora como "criativo materialista histórico".


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