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Depois, não será esta revisão da concepção do jurídico e das suas
intencionalidades metodológicas algo de inteiramente novo e sem precedentes.
Antes na história do Direito são já discrimináveis pelo menos três dessas
profundas revisões. O que o jurista romano - referimo-nos apenas ao jurista
clássico, o jurista cidadão revestido de uma auctoritas
pessoal, a quem socialmente se reconhecia jus respondendi - via no Direito e como o realizava não se
confunde com o sentido jurídico e a metodología do jurista medieval - o jurista
do "direito comum", um universitário, um acadêmico que exibe uma qualificação,
e que ao método empírico-indutivo dos romanos, dirigidos por uma social
invocação da aequitas e da fides , opoe um método racional-dedutivo
louvado numa sapiência doctoral de leges,
rationes , autoritas e communis opinio doctorum.
De igual modo, ao jurista medieval se recusa á identificação com o jurista da
Idade Moderna, muito embora do Direito como pressuposto, como "dado" e conteúdo
lógico, naturalmente se tenha inferido aquele outro postulado metodológico
fundamental que haveria de decidir acerca da concepção do jurídico até o nosso
tempo: o Direito concebido como uma norma, uma regra geral (uma premissa) que
fundamenta o realizar de um mero exercício semântico ou lógico-dedutivo da
própria norma jurídica.
Em realidade, pouco há o que se dizer para recordamos o que trouxe de "novo" á
concepção do Direito e a seus métodos o jurista moderno, isto porque, no atual
esquema abstrato e processual, o operador do direito , na grande maioría dos
casos, é instado a receber as soluções do chamado direito positivo, sem nenhuma
contribuição crítica, multidisciplinar e criadora ao mesmo. Ao operador
jurídico parece não caber a responsabilidade ética de contrastar a
razoabilidade (ou a justiça) da norma jurídica interpretada, mas sim de
aplicá-la , ainda que ilegítima, inadequada , ultrapassada ou arbitrária. Em
síntese, ao invés de legítimo mediador da convivência ética, o operador do
direito ainda insiste em limitar sua atividade ao exercício da função de um
mero técnico dos dispositivos cogentes, onde a lei é uma normação
autosuficiente sobre a qual caiba um conhecimento objetivo e a partir do qual a
sua aplicação constitua um processo de mera subsunção.
Seja como for, se há em tudo isso uma lição a aprender, não vemos outra senão a
de que cada época histórica deu ( e dá ) ao problema do Direito, que a si mesmo
se pôs, uma resposta que era (ou é) a sua. Em cada uma delas o homem se
transcendeu á autopressuposição de um novo sentido espiritual porque iluminou e
fundamentou a solidariedade da sua convivência ética na sociedade - que otra
coisa não é, nem outro objetivo se propoe o Direito. E este transcender foi
sempre crítico num duplo significado: enquanto reagiu em superação de um
sentido já exangue e enquanto refundamentou um sentido novo.
Não resta dúvidas de que a sua atual e inegável desvinculação com relação ás
outras áreas de conhecimento , á realidade social e suas práticas tem gerado
como consequência o reforço da crise de legitimação do próprio Direito. Pode-se
dizer, inclusive, que o Direito vai anunciando um ponto crítico de que ele
poderá sair subvertido ou resgatado. Ou conserva o isolamento teórico e o
racionalismo formalizante que sempre o tem vindo a constituir , e dele não
restará mais do que uma carcaça ressequida e fria de um dispositivo
serventuário da autoridade estatal; ou ouve e faz seu o apelo de afirmação da
natureza humana, de liberdade , igualdade e emancipação que o homem dirige ao
mundo humano , e será também dele o futuro, pois neste caso o Direito mais não
será que o Direito que ao homem compete cumprir e reconhecer a sua humanidade
na "multidao dos homens", isto é, que permitrá a cada um viver com o outro na
busca de uma humanidade comum.
é esta, pois, a crise interna do Direito, aquela que não apenas no futuro , mas
já hoje o atinge. Crise das mais graves que o jurídico alguma vez já sofreu: o
Direito a correr o risco de ser negado como Direito; o pensamento jurídico a
recusar o Direito enquanto tal, como a sua intenção problemática e
essencialmente humana, e a diluir-se por isso em intencionalidades ilegítimas e
dogmáticas em que apaga a sua autonomia e, portanto, a si mesmo se anula. E
neste momento em que o velho está morto ou morrendo e o novo ainda não pôde
nascer ou impôr-se em sua integralidade, vem surgindo uma variedade de sintomas
mórbitos , decorrentes, fundamentalmente, da quase completa desconexão do
Direito com o resto das ciências e o seu inconsequente e mais displicente
descaso com as características (cognitivas , morais e emocionais) que procedem
da admirável natureza humana .
A abertura a novas perspectivas parece ser imperiosa e incontornável . O tempo
é, nas palavras de Morin, de invasões e migrações interdisciplinares. Há
determinadas questões tão fundamentais, tão essenciais á subsistência da
humanidade , que não podem estar confiadas a um encarceramento disciplinar. O
tema problemático do direito precisa merecer a ingente contribuição de outros
conhecimentos para manter sua vitalidade. Esse o próprio caminho do direito.
Sua intromissão na vida de todos e no cotidiano dessa vida, faz com que já não
seja legítimo entendê-lo como objeto da exclusiva atenção de juristas
empedernidos.
De fato, ao significar para o pensamento não apenas o repúdio dos
jusnaturalismos teológico e racionalista ( formas de dogmatismo
acrítico-sistemático e ahistórico que havia sem dúvida de se superar ) , mas
igualmente por envolver ainda um agnoscitismo axiológico, uma deliberada recusa
da intenção axiológica ( que teria como resultado uma cegueira metodológica
para o normativo, o próprio sacrifício intencional da dimensão normativa, a
essencial dimensão axiológico-normativa do jurídico e , assim, uma total
incompreensão dos problemas do fundamento e da validade da juridicidade
enquanto tal ) , o positivismo, confundindo Direito com o "direito posto" (pelo
Estado), a legalidade vigente com a legitimidade jurídica e sobrevalorizando
não só o método algoritmo como também a segurança em detrimento do comunitário
projeto axiológico-jurídico, foi ( e ainda é) responsável por graves aberrações
que acabaram por atentar contra a pessoa humana .
Pode-se argumentar, é verdade, que esta situação é excepcional e não deve, por
isto, ser tomada em consideração. Mas engana-se quem assim pondera! A vida
social despenca do normal para o excepcional com mais facilidade do que se
pensa e com maior rapidez do que seria imaginável. E a história está aí para
demonstrar não somente a necessidade de uma revisão teórico-metodológica do
Direito como também de um adequado preparo do operador jurídico para fazer face
ao emocional , ao irracional, ao valorativo e ao imprevisto, advindos tanto do
hemorrágico processo de elaboração de leis quanto do ensandecido entorno
sócio-cultural.
Muitos são, sem dúvida, os fatores de que dependem o cumprimento de um ou outro
dos dois destinos antes mencionados para o Direito, mas qualquer deles
dependerá fundamentalmente do papel que no drama venha assumir o operador
jurídico, na medida em que esteja comprometido com a tarefa de manter uma
unidade de critérios de valoração, em um esforço de busca de discursos
jurídicos com potencial capacidade de consenso e que, sobretudo, atendam ao
princípio ético segundo o qual o Direito deve ser manipulado de tal maneira que
suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar
ou diminuir a miséria humana : que não se produza sofrimento quando seja
possível preveni-lo, e que o sofrimento inevitável se minimize e afete com
moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos.
Neste particular , estamos firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso
do Direito depende em grande medida do modo como os operadores jurídicos que
interpretam e aplicam as normas sejam capazes de incorporar uma adequada
concepção acerca da natureza humana em princípios, valores, métodos e decisões
jurídicas. Compreender a natureza humana , sua limitada racionalidade , suas
emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa
formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento
humano, permita a cada um viver em uma comunidade de homens livres e iguais unidos
por um comum sentimento de legitimidade e de submetimento ao Direito e em pleno
e permanente exercício de sua cidadania.
Agora, para que se possa definir e delimitar esse papel a ser assumido pelos
operadores do direito, parece razoável analisar, antes de tudo, em que consiste
a função do Direito. E neste particular a resposta não pode ser outra : o
direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa ( cada vez
mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente ) empregada para articular argumentativamente
( de fato, nem sempre com justiça ) , por meio da virtude da prudência , os
vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens contróem
estilos aprovados de interação e estrutura social. Um artefato cultural que
deve ser manipulado para desenhar um modelo normativo e institucional que
evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a
dominação e a interferência arbitrária recíprocas e, na mesma medida,
garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure a
titulariedade e o exercício de direitos ( e o cumprimento de deveres) de todo
ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como
indivíduos plenamente livres1 .
Essa função do jurídico nos permite extrair algumas consequências que podem ser
resumidas nas seguintes fórmulas: "o homem há de sempre afirmar-se ao homem",
nas relações e situações horizontais comutativas; e, "o homem há de sempre
afirmar-se ao poder", nas relações e situações verticais organizatórias e
impositivas. O sentido destas fórmulas é aquele que elas obtem referindo-se
diretamente á idéia de Direito como um artefato cultural que não terá de modo
algum de pensar-se como heteronomia abstrato-alienante, mas antes como algo
que, fundando-se no próprio ser da pessoa, se revela e atua como uma dimensão
necessária e autêntica da ética autonomia humana. Com efeito , a medida do
Direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza
resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão
também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de
nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.
Praticamente significa dizer que, por um lado, jamais alguém poderá ver no
"outro" apenas o objeto de um interesse ou de uma dependência, mas sempre
haverá de ver nele um sujeito2 em uma relação de sujeitos - melhor,
em uma relação de pessoas; e, por outro lado, que o estatuto de direitos e
deveres que se pretenda impor só será válido e legítimo se o indivíduo, como
pessoa, puder reconhecer-se nesse estatuto. Dito de outro modo, que o Direito
moderno segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece ao
princípio de que o ser humano , enquanto ponto de partida e chegada do fenômeno
jurídico, não poderá ser considerado apenas como objeto ou fator fungível num
plano de eficácia política ou econômica, senão que deverá ser sempre
considerado como um valor último, um in-divíduo livre, separado e autônomo , a
implicar isso não somente que ele (o indivíduo) não aceitará nunca ser
preterido (ser calado na voz responsável de sua autonomia) senão que, e muito
particularmente, nenhuma imposição será legítima, quaisquer que sejam as
justificações para ela aduzidas, se não estiver eticamente fundada, isto é, se
não puder fundamentar-se perante as intuições e emoções (morais) da pessoa
moral.
Significa afirmar, em suma, que a idéia de Direito , sendo este a medida do
poder, é a idéia do homem pessoal, ou então não é nada. Aliás , não é outra
coisa que exprimem hoje os proclamados "direitos humanos". Tudo isso a
dizer-nos, numa palavra, que a verdadeira intenção do Direito , que somente
pode ser pensado através da pessoa e para a pessoa , é a de : a) negativamente,
impedir o homem do esquecimento de sí próprio ; b) positivamente, de o afirmar
no seu ser e, assim, no seu incondicional valor ; e, c) positiva e
negativamente , de plasmar e realizar historicamente as expectativas
valorativas e normativas de uma comunidade de indivíduos (ante a qual o
discurso jurídico deve apresentar-se justificado e cuja qualidade será medida
por sua humanidade, pela precisão de sua adesão á natureza humana) que, como
estratégias sócio-adaptativas, sirvam para iluminar , fundamentar e constituir
determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente ética.
Todavía esta intenção, para poder ser cumprida , envolve exigências
específicas. Pois se essa intenção (o Direito) não deve ser concebida como um
"dado" que o jurista tenha de receber, mas uma praxis social ou tarefa
problemática que o concita a um esforço e a uma responsabilidade, não pode ela
prescindir de um mediador que, assumindo essa intenção axiológica , haja de ser
o sujeito qualificado deste ato , isto é, da tarefa concreta a realizar
historicamente e que é projetada no contexto econômico, político e
sócio-cultural segundo as expectativas e as necessidades humanas de cada época.
é certo que o sujeito da juridicidade é o próprio homem enquanto sujeito de
vínculos sociais relacionais e membro de uma determinada comunidade ética, mas
esta não será suscetível de realizar-se como tal se o próprio projeto
axiológico não lhe for explicitado e fundamentado críticamente. Se a comunidade
subsiste na sua existência histórica, o projeto e a totalização axiológicos serao
sempre uma intencionalidade críticamente valorativa e espiritual. E esta parece
ser justamente a verdadeira função, papel e tarefa que cabe ao operador
jurídico: a de assumir críticamente a idéia do Direito e de realizá-la concreta
e historicamente em um determinado contexto sócio-cultural , na explicitação
constituinte do próprio Direito e do projeto axiológico que a sociedade a si
mesma se poe , isto é, de uma atividade intermediada pelo iniludível manejo dos
valores que articulam e animam as estruturas normativas , os fatos sociais e a
própria idéia do Direito.
O operador do direito como o chamado a servir o próprio povo, para ajudá-lo a
traduzir e a compor em termos de razão essa instintiva e mesmo indisciplinada
aspiração de justiça que o move para o futuro, e que, por essa razão, não será
o operador do direito apenas um "perito" da técnica jurídica, mas um vivo
vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a sua função
quanto melhor alcance sentir a exigência humana da história e a traduzí-la em
fórmulas apropriadas de uma ordenada e ética convivência (Calamandrei). Ele ( o
operador do direito) deixa de ter apenas uma função técnico-metodológica para
assumir e desempenhar uma verdadeira função transformadora e axiológica
enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da idéia de Direito e da
Justiça que o fundamenta. Em poucas palavras, ele passa a ser o sujeito
qualificado daquele ato em que o Direito terá de ser atuado eticamente para ser
direito justo.
Daí que, sem prejuízo do preceptivo conhecimento do ordenamento jurídico
vigente , o operador do direito deve , antes de tudo, estar apto para
compreender que a atividade hermenêutica se formula precisamente a partir de
uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que
somente situando-se desde o ponto de vista do homem e de sua natureza será
possível ao operador jurídico representar o sentido e a função do Direito como
unidade de um contexto vital, ético e cultural: o homem , ponto de partida e
chegada do fenômeno jurídico, desenhado para a cooperação, o diálogo e a
argumentação , e que, em seu "existir com" e situado em um
determinado horizonte histórico-existencial, pede continuamente aos outros,
cuja alteridade interioriza, que justifiquem a legitimidade de suas eleições
aportando as razões que as subjacem e as motivam.
Por certo que tal função implica inevitavelmente uma grande responsabilidade,
posto que ao operador do direito já não mais lhe será lícito e legítimo elidir
ou dissimular o dever de dizer não ás situações e relações intoleravelmente injustas que os homens entre si ou
o poder perante eles se proponha a criar ou impor3 . E neste
particular, tomo como critério de exemplo o tratamento a ser dado ao problema
da denominada "lei injusta".
é este um problema que aquí não se pode considerar na totalidade de suas
dimensões. Assim que me limitarei apenas a dizer que a lei injusta será toda a
norma positiva que não realize ou não permita realizar concretamente a idéia de
Direito. Assim, não tem qualquer caráter jurídicamente vinculante ( carecem
totalmente de legitimidade e de obrigatoriedade ) tanto as normas que
porventura recusem a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo
ou classe, isto é , que lhes excluam a qualidade de sujeitos autônomos de
Direito ( com os direitos e deveres implicados pela sua válida e legítima
integração na comunidade ) para os reduzirem a meros objetos de coação política
, econômica ou administrativa , como as normas que lhes definam um estatuto de direitos
e deveres que não esteja fundado no sentido axiológico de uma comunidade que a
todos autonoma e totalizantemente integre.
Nestes casos, e ainda que nos encontremos na presença de mandados emitidos por
um legislador formalmente habilitado e acompanhados por uma organizada garantia
coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões do ato de legislar. Não
podem, com efeito, considerar-se de outro modo as normas abertamente contrárias
á idéia de Direito e, portanto, violadoras daquela mesma função
axiológico-normativa em que terao de justificar-se como normas jurídicas
válidas e legítimas.
Assim que parece haver um sentido comum de que o Direito moderno segue exigindo
um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a
moral , ou seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como
pretendem algumas variantes do positivismo jurídico. De fato, é essa pretensão
de correção moral que permite distinguir entre o Direito e a força bruta , que
permite distinguir (ou não) entre a ordem de um delinquente ("a bolsa ou a
vida") e a ordem de cobrança de uma determinada contribuição , enfim, que
permite considerar o Direito como uma estratégia sócio-adaptativa, uma praxis
social destinada a gerar discursos jurídicos materialmente justos e com
potencial capacidade de consenso para a solução de determinados problemas
práticos relativos aos vínculos sociais relacionais elementares através dos
quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.
Essa inerente pretensão de correção formulada pelo Direito compreende uma
pretensão de justiça que, em essência, nada mais é do que a correção com
respeito a liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, com a eqüitativa
distribuição e equilíbrio entre essas três grandes virtudes ilustradas. Com
efeito, o operador do direito, em toda sua cotidiana atividade, não pode
prescindir dessa dimensão axiológica. E porque as perguntas sobre a justiça são
perguntas morais, o operador jurídico que realiza distribuições e equilíbrios
incorretos comete, por essa via, uma falha moral e a pretensão de correção
transforma essa deficiência moral em deficiência jurídica : as normas perdem
seu carater jurídico se sobrepassam certos limites de injustiça.
Quando as normas negam conscientemente a vontade de justiça, quando os
princípios, os direitos e as garantias consagradas são arbitrariamente
violados, carecem tais normas de legitimidade e validez, pois não se pode
conceber o Direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não
esteja destinado a servir a justiça. E quando a injustiça não é oportunamente
eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a
coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico das
normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao operador do direito
na sua praxis hermenêutica.
Dito de outra forma, parece ser que a única atitude legítima em face de uma lei
injusta é a de recusar a sua aplicação: a lei injusta faz surgir no pensamento
jurídico em geral o poder e o dever de lhe recusar validade e aplicação
automática, de interpretá-la e decidir de tal modo que ela acabe por ter uma
finalidade justa, isto é , cada norma sendo submetida a um critério de justiça
material de sua aplicação em cada caso concreto . Afinal, querendo ou não, as
normas são, em muito boa medida, manifestações de intuições e emoções morais
(de raiz biológica e culturais) compartidas por um determinado grupo, partindo
não da idéia de "imperator", mas sim da comunidade ética na qual se inserta o
sujeito-intérprete .
A lei ( essa ferramenta cultural e institucional "cega", virtualmente neutra e
com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento
humano ) não é simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou
formalizadas que as pessoas seguem. Em vez disso, a lei representa a
formalização de regras comportamentais, sobre as quais uma alta percentagem de
pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem
benefícios potenciais áqueles que as seguem : quando as pessoas não reconhecem
ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as leis são, com frequência, não
somente ignoradas ou desobedecidas ( pois carecem de legitimidade e de
contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual e
intuitiva concepção de justiça ), senão que seu cumprimento fica condicionado a
um critério de autoridade que lhes impoem por meio da "força brura". (M.
Gruter,1991)4 .
Com efeito, dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem
predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito a reação dos
membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte
de nossas intuições e emoções morais, não podem ser construções arbitrárias,
senão que devem servir ao importante propósito de, por meio de juizos de valor,
tornar a ação coletiva possível - e parece razoável admitir que os seres
humanos encontram satisfação no fato de que as normas sejam compartidas e
cumpridas pelos membros da comunidade, porque legítimas.
Mas podem operadores jurídicos educados no positivismo jurídico até aqui
dominante, na aplicação do Direito, ter a pretensão de não desprezar a
vinculação necessária entre Direito e Justiça?
Parece que sim, desde que se considere que essa vinculação ( entre o Direito e
a Moral) está fundada na idéia de que toda a atividade do sujeito-intérprete
deve estar permeada pela pretensão de que seus discursos jurídicos sejam
moralmente corretos e justos. A ela (atividade) lhe corresponde a intenção e o
dever jurídico de decidir corretamente, de que embora necessário , não é
suficiente para resolver um problema jurídico o simples recurso a artifícios
legais , ao muito limitado esquema de silogismo interpretativo ou de coerência
lógico-formal. A virtude e a independência do operador do direito não é outra
coisa que a manifestação da autonomia do Direito, comprometido eticamente com a
criação de um modelo sócio-cultural e institucional livre, justo e solidário
que permita a cada cidadão, frente a qualquer interesse espúrio do Estado ou de
qualquer outro agente social, viver com o outro na busca de uma humanidade
comum.
O ato de decidir contra qualquer forma de arbitrariedade ou interferência
injustificada carrega consigo a virtuosa intenção de mudar um estado de coisas
de conformidade com algo que se pretenda justo : com a idéia de que o homem,
mesmo quando se converte em objeto de ordens estatais supraindividuais, sempre
deve ser respeitado como um fim em si mesmo e não como instrumento de
episódicos e injustificados interesses políticos ou de conveniência econômica,
isto é, de que na qualidade de sujeito destinatário do ato imperativo do Estado
(lei) possa participar legitimamente de sua formação por meio de eficazes
medidas de controle, a fim de evitar que o abuso de autoridade ou a falta de
correção moral por parte do operador do direito rompa os limites que asseguram
o âmbito prático da interpretação e aplicação justa.
E assim deve ser porque na grande maioria das vezes estão submetidas a juízo a virtude na aplicação da Constituição, a realização da justiça concreta , a integridade do Direito e a própria idéia de um operador jurídico autônomo e independente. Somente atuando guiado por uma justa e virtuosa pretensão de correção poderá vir o operador do direito a afirmar-se como mediador preocupado com a justiça e com a Constituição de uma República , não somente controlando toda a desregrada maquinária estatal em suas funções administrativas e legais , senão que também assegurando de forma efetiva os princípios , direitos e garantias legítimamente consagrados.
é preciso reconhecer que não somente desde a lex
corrupta insensatamente aplicada provém o injusto real como na
aplicação do Direito intervêm , ademais da razão, os sentimentos e as emoções:
para ser um bom operador jurídico não basta com ter capacidade argumentativa (
com conhecer o Direito vigente) , senão que é necessário ter outras virtudes
como sentido da justiça , compaixao e valentia. Afinal, o que dá sentido ao
Direito não pode ser outra coisa que a aspiração á justiça ou, para dizer em
termos mais modestos e mais realistas: a luta contra toda e qualquer forma de
injustiça.
E nem se objete possa a idéia da segurança ou da certeza jurídica - sempre aqui
invocada- constituir-se em argumento suficiente e necessário de oposição a esta
conclusão, uma vez que não é uma qualquer "injustiça" a que determina o
rigoroso sentido da lei injusta, mas somente aquela que envolva a negação da
própria idéia de Direito. Depois, se a segurança e a certeza jurídica têm
decerto valor apenas na medida em que podem contribuir para a realização da
objetividade e previsibilidade em uma ordem jurídica , deixam totalmente de ser
fundamento de obrigatoriedade quando invocadas somente para encobrirem
situações intoleravelmente injustas ou quando são postas a serviço do arbítrio
, da tirania e dos devaneios políticos.A obrigatoriedade e o valor da segurança
e certeza jurídica cessam onde cessa toda a legitimidade jurídica , isto é,
logo que deixem de contribuir para a concreta realização da idéia de Direito.
Não é, definitivamente, em função da segurança e da certeza que se afere o
direito justo , senão em função do direito justo que se afere a segurança e a
certeza jurídica.
Com efeito, as situações de tensão entre a segurança jurídica e a justiça
constituem um dos aspectos mais dramáticos da experiência jurídica. Por vezes,
são impostas á justiça, pelo menos á justiça estrita do caso singular, certos
sacrifícios em nome da segurança jurídica , como , por exemplo, por força do
princípio da coisa julgada ou do instituto da prescrição. Mas certamente não é
de se admitir que a pretexto da segurança e da certeza jurídica se chegue a um
grau intolerável de sacrifício da justiça, sob pena da ordem jurídica se
esvaziar de legitimidade e se desnaturar. A paz, a ordem estável, a liberdade,
a igualdade , o grau razoável de certeza e de estabilidade, são obras da
justiça, cujo fundamento radica na pessoa humana.
Um puro sistema de segurança e certeza jurídicas , indiferente ou contrário á
justiça, constitui por si mesmo a negação do próprio Direito. Daí porque, no
plano metodológico, faz-se sentir a necessidade de superar os unitelarismos -
quer do legalismo estrito, que privilegia a segurança em prejuízo da justiça,
quer do judicialismo casuístico, que favorece a justiça com menoscabo das
exigências essenciais de segurança -, mediante soluções que atendam
equilibradamente á norma e ao caso, assim como ás reclamações desses dois
valores fundamentais do Direito, isto é, mediante soluções que tratem de
alcançar um estado de coisas onde a justiça e a segurança jurídica em presença
alcancem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível.
Isto é, que a atividade hermenêutica, da qual não se pode excluir a dimensão
emocional e de subjetividade do juízo, não se configure como produção ex nihilo, que não seja somente uma
circunstância de produção subordinada á lei, senão que deve ser concebida como
uma praxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que ,
garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure que a
titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam
sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas
interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social.
Ocorre que, para exercer esta postura metodológica e principalmente para dizer
este "não" - parece evidente - não será suficiente que o operador do direito
tenha a coragem de declará-lo ; é nessário que tenha o poder de fazer como o
declara. E esse poder somente o terá atualmente o operador jurídico no
desempenho de uma função judicial. é que embora esta seja a função de todo o
operador do direito, este não poderá cumprir (de forma vinculante) essa tarefa
se não lograr ele mesmo impor-se institucionalmente , já que o jus respondendi pessoal dos romanos não é
mais do nosso tempo. Depois, tendo deixado a legislação de poder considerar-se
hoje como uma manifestação de vontade autêntica e exclusivamente comunitária,
para ser mais bem a imposição prescritiva de uma ideologia partidária em veste
de governo, somente a função judicial pode permitir-se ser ideologicamente
imparcial , naquela imparcialidade que a faça tao somente sensível ao apelo do
Direito e da Justiça.
Só que para tanto é decerto necessário que a função institucional do operador
do direito seja verdadeiramente independente. E bem sabemos que esta
independência é em boa parte uma condição sociológica, função das condições que
efetivamente se criem para a sua possibilidade. Mas ela será sempre também, em
não menor medida, o resultado de uma vocação. A função do operador jurídico não
será nunca independente, se não o quiser responsavelmente ser ; dificilmente
deixará de sê-lo ( até porque o exercício da função judicial potencia a organização
das condições favoráveis para tanto) se quiser assumir-se como tal. Um operador
jurídico independente é, pois, um dos mais importantes fatores do poder de que
o Direito necessita para se impor legitimamente.
Mas não bastará somente isto, nem poderá o operador do direito cumprir
validamente sua tarefa institucional se esta não estiver motivada e esclarecida
por uma intencionalidade e consciência crítica, quero dizer, daquela crítica
que explicite e fundamente o próprio projeto axiológico do Direito que deve
ser, incondicionalmente , o seu. Isto é , que no exercício de sua função não
abdique nunca do seu mesmo dever comunitário e que, na mesma medida, não aceite
degradar-se á mera função burocrática que "analisa processos", reduzindo-se a
um mero instrumento público pronto para homologar e dar execução a todo e
qualquer ditame do poder.
Trata-se, sem mais, de uma tarefa ou praxis social que implica na incessante
necessidade de se repensar críticamente a ordem jurídica, no sentido de que se
atribua á mesma ( levando-se em conta que o Direito vive num clima de
permanente revisão de conceitos, valores, principios e normas) , a função
principal de adequá-la para um mundo em constante transformação, cônscios,
sobretudo, da tarefa não somente de interpretar e aplicar as garantias formais
da democracia e nem á simples fiscalização da observância de princípios e
valores inerentes ao sistema positivo, mas, principalmente, de viabilizar a
realização do compromisso ético de utilizar o Direito para ir conquistando
essas pequenas ( e indefiníveis) "parcelas do justo" que justificam nossa
existência e, dessa forma, assegurar o incondicional respeito á dignidade da
pessoa humana.
Cabe a estas parcelas de juridicidade a relevante tarefa de fazer valer e
projetar na legalidade vigente os valores fundamentais do Direito, isto é, de
adotar os meios necessários e adequados que os permitam encontrar a verdadeira
e consistente base de legitimação do fenômeno jurídico, em um mundo onde a
miséria e o desprezo pela dignidade humana convivem com o desperdício da
riqueza producida pelo trabalho social. Enfim, de um operador do direito que
incentive e priorize a implicação do Direito com uma postura republicana e
democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana concepção de
sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade jurídica e
autoinvestido da suposta virtude que faz com que funcionem como "les bouches qui prononcent les paroles de la loi"(Montesquieu).
Somente pensando assim o jurídico - com o cumprimento da idéia de Direito num
contexto histórico-comunitário e fundado na natureza humana - e assumindo o
operador do direito a função e a responsabilidade ética que lhe cabe,
participará o Direito da própria dialética da história e da eticidade humanas ,
fazendo com que deixe de parecer justa a advertência de Nietzsche de que o
Direito, "o pensamento jurídico está por fundamentar, pois é utópicamente
idealista na teoria e astutamente materialista na prática" .
NOTAS DE RODAPé CONVERTIDAS
1. Neste particular, um modelo institucional e normativo do Direito desenhado a
partir de uma concepção republicana democrática parece ser o mais adequado, não
somente pelo fato de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer a
pluralidade das motivações da vida social humana - o que seguramente já
constitui uma gigantesca vantagem de partida com relação ao monismo
motivacional da tradição liberal -, mas principalmente porque seu peculiar
talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania e de
metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar a lei como um
instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os
câmbios formais e materiais no processo de toma de decisões ante a dinâmica
fluída ( e por vezes enlouquecida) do "mundo da vida" cotidiana.
2. Com efeito, na vida social tudo é possível : o melhor - se houver - e, desde
logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela a
declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de
alguns humanos: a escravidão é a morte do "indivíduo" para todos os efeitos do
trâmite social, sua desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre
formulação do direito romano ( ou "instrumento animado" , para usar a expressão
de Aristóteles).Para existir como indivíduo é, pois, e ao menos , necessária a
liberdade, é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento ,
senão como um fim em si mesmo . Aliás , dito seja de passo, perde-se
habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais
como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e "moderno",
mas que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos morais e
todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos
livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos
("vocais" ou "animados").
3. Ademais, é só por meio dessa linha de raciocínio que surge a real
preocupação de habilitar o intérprete-aplicador a "pensar em conseqüências", permitindo-lhe o conhecimento , a
ponderação e a responsabilidade pelos efeitos de seus discursos jurídicos e ,
na mesma medida, de capacitá-lo a considerar e a não dissimular a iniludível
circunstância de que a vontade do legislador não produz , em definitivo , o
conteúdo material da norma , ou seja , de que o direito já não é algo que "nos
vem dado senão algo que há que ir fazendo incessantemente através da aplicação
de suas normas, entendidas estas como pautas que fazem possível essa busca"
(López Moreno,1999).Em outras palavras, não só esse fazer incessante mas a
longa "sombra do futuro" se estende sobre sua interpretação.Essa, aliás, a
razão pela qual , no processo interpretativo, além da pré-compreensão (dado
passado a influir no resultado da compreensão do texto), existe também um
componente de prognose. Vale dizer, a consideração, pelo intérprete, dos
efeitos futuros da interpretação (jurídica) que tomará diante do texto
interpretado. As interpretações jurídicas, dependendo do grau que assumam no
ordenamento jurídico, constituem inegável instrumento de alteração da realidade
social, de modo que o intérprete tem indisfarçável "responsabilidade social"
com relação ao discurso jurídico que profere. Esta "responsabilidade social"
nada mais é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo
hermenêutico, a fim de serem afastadas as interpretações estapafúrdias,
desconectadas do contexto histórico-social em que são proferidas. O operador do
direito, mais do que qualquer outro agente social, tem elevada á máxima
potência essa exigência de prudência com o teor das suas interpretações. O
direito, como instância da realidade, tem inegável função de promover a
estabilidade social. Sob este prisma, a prognose influi diretamente sobre os
efeitos que uma determinada interpretação jurídica provocará no futuro. A
prognose manifesta a prudência, pois revela a preocupação do intérprete com as
conseqüências futuras de um discurso jurídico sobre a estabilidade do corpo
social. A pré-compreensão (dado passado) e a prognose (dado futuro) ocorrem
rotineiramente no processo de interpretação jurídica. A "boa interpretação" , a
interpretação "satisfatória", entendida como a interpretação cujo componente de
justiça não afeta a estabilidade social, é aquela que considera de forma
equilibrada estes dois aspectos no processo interpretativo (Cunha Pontes,2000).
E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar
diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito
fundamental não somente torna o Direito altamente dependente da compreensão das
múltiplas causas do comportamento humano, como , e na mesma medida, faz com que
quanto melhor for esse entendimento da natureza humana , melhor o Direito
poderá atingir seus propósitos.
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Autor:
Athus Fernandez
Atahualpa Fernandez
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