Situar o problema acerca da função do operador do direito no nosso tempo implica, de nossa parte, uma análise menos descritiva e mais prospectiva, tendo como objetivo oferecer linhas de reflexoes que convirjam num consenso possível. Não se trata simplesmente de descrever o que aí está - ou ainda está -, mas do que está por vir, do que parece possível vislumbrar esboçar-se no horizonte anunciador do futuro , e que nem por essa razão é menos do nosso tempo, pois se são as coordenadas de nossa vivência atual as condições de possibilidade do futuro, só a assumida intencionalidade anticipante dá sentido e direção ao nosso caminhar.
De uma maneira geral, ao tratar-se do tema, é comum analisá-lo tendo em conta
três questoes, dirigidas tanto ao direito como ao operador jurídico: pela
primeira, pergunta-se diretamente pelo fundamento, pela validade e legitimidade
do Direito, enquanto tal ; em outra, interroga-se sobre a função humano-social
do jurídico e, finalmente, a última das questões coloca-nos perante o problema
metodológico de seu processo de realização. Assim, pois, o operador do direito
terá um papel a desempenhar e o desempenhará bem, se o direito for uma intenção
válida e legítima que ele assuma na sua verdadeira e indispensável função
humano-social, para o realizar em termos metodologicamente adequado na sua
relação com o fazer viver uma norma jurídica na prática.
Pois bem, a perspectiva aquí adotada força-nos a restringir nosso campo de
análise á segunda das questões: aquela que nos leva a refletir sobre a tarefa a
ser desempenhada pelo operador do direito em vista da função humano-social do
jurídico. E sendo a nossa uma perspectiva de historicidade, e considerando que
no tempo presente uma época humana se consuma e outra se anuncia, deixaremos de
dispor daquele sempre invocado tipo de operador que se manifesta como o
racionalizador do social mediante esquemas transacionais impostos á ação.
Tais esquemas , quando não cedem á tentação de um dogmatismo puramente
sistemático e formalizante, contróem um "demi monde" completamente
descomprometido com o fato de que é o tipo de natureza humana implicado em uma
determinada proposta teórica que define e circunscreve não somente as condições
de possibilidade das sociedades humanas como, e muito particularmente , o
desenho do conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais
comunitárias , assim como o caráter das normas e dos valores produzidos pelo
homem no percurso do incessante processo de adaptação ao complicado e cotidiano
mundo em que plasma sua secular existência.
De fato, pressupor este tipo de jurista e perguntar através dele que tarefa
terá o operador do direito no nosso tempo parece-nos como algo culturalmente
inválido e humanamente inútil, na medida em que se insiste em um perfil de
operador jurídico proclive ao automatismo, ao isolamente teórico, a uma
ortodoxa rigidez interpretativa e enclausurado ao muito limitado esquema do
silogismo interpretativo do direito positivo ( e isto qualquer que seja o
mérito ou demérito desse tipo como estrutura redutiva dos juristas oferecidos
pela história até os nossos dias).
Mas ainda porque aceitando a eternidade de um tipo de operador jurídico ( e a
correlativa concepção do próprio Direito), cuja viabilidade ( e até mesmo
validade e legitimidade) é hoje duvidosa, prepararíamos a tentação da renúncia
desesperada - "contra o impossível não há que lutar" - ou do isolamente
orgulhoso de uma disciplina que não somente não teve ainda consciência de sua
autarquia intelectual, senão que teve um êxito relativo como ciência e até
mesmo enquanto "arte" . Se bem pensado, até hoje o direito segue á deriva, com
sua enorme massa de observações e construções mal digeridas, com um
considerável corpo de generalizações normativas e com um mais que considerável
número de teorias e metodologias de nível médio entrelaçadas que se expressam
em léxicos (técnicos ou não) imensuráveis e babélicos.
Por outro lado, não se olvida que no próprio seio do Direito, nas suas
intenções e no método de seu pensamento , repercutem já, e fortemente, as ondas
revoltas da extraordinária proliferação de investigações e publicações que nas
duas últimas décadas dirigem seus interesses a reflexionar sobre as relações
entre as ciências sociais normativas e os espetaculares logros dos recentes
estudos provenientes das ciências cognitivas, da psicologia evolucionista, da
antropologia e biologia evolutiva, da primatologia, da neurociência, entre
outras, e que tem posto em um sério aperto a defesa teórica de uma inexorável
fragmentação do território da Ciência e de que não existe uma realidade
independente de causas sociais, senão que toda ela está socialmente construída.
E nem haveria de ser diferente , pois o Direito não poderia decerto ficar imune
a esta nova realidade inter e multidisciplinar ( a qual, dito seja de passo,
permanecem ainda, em sua miopia, inadvertidamente alheios uma boa parte dos
cientistas sociais e, em especial, em sua quase totalidade, os operadores do
direito ) que não somente põe em cheque uma grande porção dos logros teóricos
tradicionais das ciências sociais normativas - nestas incluída, claro está, a
ciência jurídica -, como , e principalmente, oferece razões poderosas que
poderão vir a dar conta da falsidade da concepção comum da psicologia ( e da
racionalidade) humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual
edifício teórico e metodológico da ciência jurídica , para a concepção acerca
do homem enquanto causa e fim do Direito e, conseqüentemente, para a tarefa do
jurista-intérprete de dar "vida hermenêutica" ao direito positivo.
Há , pois, que inserir aí mesmo, no próprio momento dessa mutação e dessa "crise",
o problema do Direito, na tentativa de encontrar para ele uma solução á altura
de nosso tempo, sem excluir uma possível e necessária conversão do próprio
operador jurídico, nas suas intenções e nos seus métodos. Afinal, o ter sido
não se mostra como garantia de continuar a ser; é possível algo de novo, ainda
que só a novidade da ausência.
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